sábado, maio 27, 2006

“ A Aventura” de um par de Sapatos ( do Vale do Ave)...

Qual a distância do vale do Ave a uma loja Zara na Grã Via, em Madrid, medida pelos dedos tenros de uma criança portuguesa, cozendo uns sapatos de moda?!... Certamente que uma distância inimaginável dos sonhos caídos de menino. Quarenta cêntimos, por cada par, é uma verdadeira “fortuna”. Que o diga a mãe da criança na conquista da sobrevivência. A família (mãe, pai, duas crianças e dois velhos) poderá cozer uns cinquenta pares, serão vinte euros ao fim dia. Lemos, no entanto, que cada par de sapatos, na venda ao público, não terá preço inferior a quarenta euros...

(“Se não fosse isto só teríamos o abono de família dos miúdos e a reforma de meu pai para vivermos”... Quem atirará a primeira pedra a esta mãe, que assim desabafa e se justifica?!..)

Os despedimentos nas fábricas de calçado e de têxteis na região do Vale do Ave e do Vale do Sousa têm obrigado muitas famílias a recorrer a este tipo de trabalho. Quem desta vez o anuncia é o semanário “Expresso” que titula a notícia afirmando que “Crianças do Norte Fazem Sapatos da Zara”. Ganham miseravelmente, em precariedade absoluta, pois as famílias não têm qualquer vínculo às empresas, mas este é muitas vezes o único sustento de famílias inteiras – refere o jornal, citando fontes sindicais e acrescenta “que não há dados oficiais sobre a quantidade de crianças envolvidas nestas tarefas”.

Não releva nesta questão a circunstância de a multinacional - conforme o jornal também refere - prometer medidas duras contra a fábrica de Felgueiras, que alegadamente subcontratou o trabalho. Nem a notícia aqui viria se não fosse tão demonstrativa da desordem do capitalismo actual.

Do meu ponto de vista, não se pode tratar apenas de “bons sentimentos” perante as crianças “que nunca chegam a ser meninos”... “Um horror!... “ – gritam, por certo, as nossas boas consciências, perante a “loucura quotidiana” da sociedade capitalista, que entre outras indignidades, coloca os indivíduos perante a absurda alternativa de sacrificar a vida ao trabalho, a qualquer preço ( “perder a vida a ganhá-la”! ) e sofrer as consequências de não ter trabalho. A alternativa entre “seres descartáveis” e o infortúnio de trabalho de quase escravo...

Contudo – importa dizê-lo – os horrores que nos escandalizam são simplesmente as consequências visíveis do funcionamento quotidiano da sociedade de mercado. Como escreve um autor que muito aprecio “tais horrores existirão enquanto existir a sociedade que os produz, pela simples razão de que decorrem da própria lógica dessa sociedade” ( Anselm Jappe – in “As Aventuras da Mercadoria – Para uma Nova Crítica do Valor” – Ed. Antígona)

E, acrescenta: “É portanto necessário desocultar essa lógica! ...” com uma crítica às categorias de base da sociedade capitalista: o valor, o dinheiro, o trabalho abstracto, o feitichismo da mercadoria. Ou seja, retomando Marx e a crítica “ao núcleo central da modernidade” que, na perspectiva do autor, é hoje mais actual do que quando Marx o concebeu, “uma vez que esse núcleo existia apenas no estado embrionário...”

Quem diria que se iriam publicar, com tanto êxito, livros desta índole, quando tudo parecia acreditar ter chegado o “fim da História” e a vitória definitiva da economia do mercado, após a derrocada soviética?!... A História por vezes vinga-se, dir-se-ia...


Nota: estarei ausente uns dias, que presumo breves. Levo na bagagem Anselm Jappe – e as suas “As Aventuras da Mercadoria”. Tem sido muito gratificante este meu diálogo convosco. Grato.

13 comentários:

Licínia Quitério disse...

Que faças uma boa viagem. Aguardo o teu regresso para voltar a ler as considerações tão lúcidas a que nos habituaste. Sem pieguices, abordas hoje este tema pungente do Vale do Ave. Bem hajas.
Abraço.
Licínia

Peter disse...

A problemática social abordada no teu blog,leva-me a inclui-lo nos n/links.
De vez em quando ando pelos Espaços infinitos, é verdade, mas não descuro os problemas sociais, terrenos sim, e , por isso mesmo, mais merecedores da minha atenção. Ao longo dos anos que a série já leva, eles sempre têm merecido o nosso interesse.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Subscrevendo a Licínia Quitério, acrescento que os "textos elaborados" que referes algures é daqueles que tenho lido, nos últimos tempos, com mais atenção, pela fluidez e cristalinidade do raciocínio e da exposição.

Não são trocas de galhardetes, nem se trata de vãs louvaminhas.

Vim até cá sem conhecer - nem por leve suspeita - a cara do autor. E assim me mantive, atento, ao longo de vários dias. E tão rapidamente me identifiquei com o conteúdo, como me deslumbrei com a forma.

Foi, por isso, com toda a naturalidade (ainda que "embrulhada" em papel de surpresa) que apurei "o homem por trás da máscara".

Há, na verdade, empatias que nos transcendem...

Depois, nada como uma bela prosa para sustentar e dar força a um poema.

Um abraço, meu caro Herético. Que a Vida assim te conserve por muitos e bons anos, que o que se precisa mais neste baço cinzentismo é mesmo de heresias.

(Quanto aos sapatos que a Zara abusa, fazer o quê? Não comprar na Zara, entre outras possíveis coisas que o pudor me inibe de listar aqui...)

Klatuu o embuçado disse...

Só heresias! JAJAJAJA!!!

batista filho disse...

Boa viagem, amigo.
Por cá ficamos, cada um, à sua maneira, travando a luta cotidiana em prol da Utopia: o sonho bom!
Um abraço fraterno.

Maria P. disse...

Boa viagem, regressa depressa, já estou viciada na prosa que por aqui nasce.
um abraço.

Diafragma disse...

E o que é curioso é que esta notícia circulou em mail haá já bastante tempo. Desta vez era verdade.
Pois como todos os outros teus leitores cá te espero, e arrisco sugerir-te mais uma leitura antiga mas recente. "A era do vazio" de Gilles lipovetsky" da Relógio de Água.
Um abraço e até breve.

M. disse...

Boa viagem, então. E volta com mais escritos que nos ajudem a pensar.
Um abraço.

lique disse...

Bolas, só tu para me fazeres remorsos por comprar qualquer coisinha na Zara! :)
Falando sério, o teu texto põe o dedo na ferida. Podemos abordar este assunto pelo lado piegas ( afinal, quem não lamenta uma infância interrompida e a miséria que obriga os pais a entrarem neste jogo?), ou pela identificação dos maus da fita.
Mas, na verdade, o que existe aqui é uma lógica de sistema político e social que torna isto possível. Afinal, se calhar tudo começa porque o emprego que existia naquela região abalou para zonas mais atraentes em termos de "trabalho escravo". E quem lá fica, sujeita-se a equiparar-se a essas zonas ou a passar fome.
Espero que voltes depressa. Estou a viciar-me neste teu registo de escrita. :)
Beijos

JPD disse...

Olá Herético

O celebrado »Fim da História» terá aver apenas com o recuo da impoirtância da pol+ítca e o recrudescimento de um novo dogma: o liberalismo, os negócios a preponderar sobre a economia e a arrogância dos patrões perante os economistas a desem+enhar funções no Estado, apesar de não poderem dispensar-se reciprocamente.
Nos tempos que correm, os factores de produção, sobretudo o custo da mão obra são determinantes na deslocalização das empresas. Por maiores que sejam os avnços técnicos, onde houver mão obra disponível e miseravelmente remunerada as empresas terão campo de acolhimento. Essa mão de obra disponível está-lo-á sempre porque a seguir a essas oportunidades de exploração hiante nada mais resta.
O consumidor comum da Zara quer lá sbaer desses casos de exploração. Pensar nneles até o oncomodarão! -- Por isso jamais deixará de comprar.
Um abraço
Bom texto

Nilson Barcelli disse...

Sociedade de mercado?
Eu definiria o que expões como ó resultado de uma mistura miserável do capitalismo selvagem, que é mundial, com o xico-espertismo nacional. Pois, pelo que me pareceu da leitura, não é a Zara que encomenda directamente às famílias o trabalho a fazer em casa.
Para além de ilegal, esta atitude é moralmente condenável.
Abraço.

batista filho disse...

"Fim da história"?... é se ver o quanto artigos como os teus suscitam comentários acalorados - é bom saber que não estamos sós!
Um abraço fraterno.

folhasdemim disse...

Entretatno o Desfolhado fez 2 aninhos.
Beijokas :)

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