quarta-feira, maio 03, 2006

" O Grande Homem " ...

O primeiro discurso do Presidente da República, enquanto tal, coincidiu com as comemorações do “25 de Abril”. A comunicação social exultou, antevendo um “puxão de orelhas” aos deputados. Depois do discurso, a mesma comunicação social, devota, teorizou sobre os méritos e deméritos políticos do cravo (ou não cravo) na lapela. Porém, o novel presidente, imaculado, pairando sobre as miudezas da política, colocou de lado o “economês” dos sacrifícios em curso e surpreendeu com o anúncio do proclamado “compromisso cívico para a inclusão social”.

Entendamo-nos. É insuportável que as sociedades modernas aceitem, no seu seio, o fatalismo da miséria humana, das crianças com fome, da violência doméstica, do desamparo na velhice, ou de tantas outras situações de abandono e marginalização social. Por isso, a minha “alergia” deve procurar-se noutra instância.

Sabemos que, nas entrelinhas do discurso, tantas vezes, inadvertidamente, se revela o falante. Insisto que a gente fala e denuncia-se. Assim, ganha uma inusitada dimensão o “eu não me resigno”, como se a vontade autocrática do Presidente fosse o eixo sobre o qual giram todas as respostas, perante as graves injustiças que grassam no País.

Nesta perspectiva, importa assinalar a habilidade do discurso que desloca as fracturas sociais para o paradigma do binómio “exclusão/inclusão social”, como se fosse possível dar resposta aos excluídos, mesmo numa dimensão meramente caritativa, quando entre os incluídos se encontra tanta gente descartável, na precariedade das suas vidas...

A (des)propósito, escutemos Sigmund Freud, nas comemorações dos 150 anos do seu nascimento:

“ ... preferimos afirmar que não vale a pena procurar uma definição inequívoca para o conceito de grande homem (...). Aliás, reflectindo, tanto nos interessa a natureza do grande homem como o conhecimento dos meios e condições que lhe permitem influir sobre os seus semelhantes (...). Aceitemos, pois, que o grande homem influencia de duas formas os seus semelhantes: mercê da sua personalidade e por meio da(s) ideia(s) que sustenta (...). Em todo o caso, a razão por que o grande homem adquire, a dado momento, a sua importância, não nos levanta dificuldade, pois sabemos que a grande maioria dos seres necessitam imperiosamente de uma autoridade, a qual possam admirar, à qual se possam submeter, pela qual possam ser dominados e, eventualmente, maltratados... “ (S. Freud – in “Moisés e a Religião Monoteísta”)

É, pois, desta argamassa que se constrói o grande homem: a vontade de poder e a orfandade das massas, tanto mais imperiosa quanto mais intensa é a crise económica, política e moral da sociedade.

Por outras palavras, são os momentos de crise que propiciam, num jogo perverso, que grande homem alimente a sua grandeza nas pulsões e anseios colectivos e as massas depositem no grande homem as suas esperanças e o seu destino social...

Alguns artigos de opinião, publicados na imprensa, dizem-me que o nosso Presidente não tem pressa em assumir-se em toda a sua verdade. Por mim acredito, meditando na actualidade de Freud...

7 comentários:

M. disse...

... E é que gostei mesmo deste post.

JPD disse...

Gostei do texto.
É importante que haja renovação nos temas dos discursos oficiais em datas como as do 25 de Abril, na Assembleia da Republia.
É bom, ytambém, que seja recordado que o político que falou do Roteiro para a Inclusão é omesmo que há uma década, procurou criar uma «home novo» e deu a oportunidade a uma elite egocêntrica que apenas olhava para o seu umbigo exponenciando a sua cupidez.
Esta geração de políticos está cnfrontada com dois problemas sérios: o próprio esgotamento e descrédito e a desmobilização social para questões básicas de solidriedade e equilíbrio social; não tendo cuidado da sua regeneração temem-se as consequencias.
Um abraço

lique disse...

Um texto como poucos se lêem por aqui (entenda-se este mundinho da blogoesfera). Uma análise inteligente e muito bem desenvolvida. Estás de parabéns. :)
Beijos

Diafragma disse...

Exactamente. Um texto como se vêem pocos por aqui, como disse a Lique.
É uma análise profunda da natureza humana vista em duas vertentes; a do grande e a do pequeno homem.

ps: temos no entanto que ter cuidado em não confundir estes grandes homens com os Grandes Homens.

Maria P. disse...

Foi um prazer esta leitura, certamente vou voltar.

batista filho disse...

O texto é bom, oportuno, assim como vários comentários atestam.

Sendo de uma geração que viu a ditadura militar ceifar muitos sonhos, assim como muitos de vós d'além mar -, sem nunca desistir de lutar! - quando do processo de redemocratização, ora em curso, vejo sonhos se tornarem pesadelos e a Esperança definhar... definhar, mas não morrer!!!

Parabéns pelo texto. Deixo um abraço fraterno.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Nesta peregrinação "relógio-de-pêndulo" fora, a que me propus, não pude deixar de vir aqui dar o meu aplauso, mais um, à clareza do expendido. Um aplauso prolongado!

Abraços.

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