domingo, junho 18, 2006

O Futebol e os Poetas...

Clamando por “um golo português” insinua o nosso deputado-poeta, num belíssimo artigo, publicado no jornal “Público” de 17-06-2006, que o Mundial, transmitido pela TV, ajusta contas com a globalização, nas suas manifestações de patriotismo à volta das selecções de futebol. Em tom épico, que define um estilo e um talento, escreve o poeta que “mesmo que as elites se esqueçam das raízes (...) os povos, instintivamente, através das suas selecções, dizem o seu nome e a sua identidade...”

Bem sabemos nós que os poetas pressentem percursos e sendas, desvendando o sentido encoberto na gramática do tempo e dos lugares, em luminosos lampejos de clarividência... Assim, gostaria que o poeta M. Alegre, que merece da minha parte a maior admiração - para além do gosto comum pelo futebol – pudesse ter razão.

Mas a globalização tem armadilhas que os incautos poetas, por vezes, se deixam enredar...

O Mundial de Futebol, mais que a amável imagem dos povos, reacendendo, com seus ícones e ritos, o fervor do patriotismo aviltado, cumpre exemplarmente a sua função de “re-estruturação ideológica” requerida pelos interesses do capital internacional, na sua expressão globalizadora.

O neoliberalismo económico, o conservadorismo da lei e da ordem, o post modernismo cultural suscitam novas práticas de produção simbólica, face a volatilização das “paixões ideológicas” que a globalização capitalista dinamitou. Assim, surge ao nível mundial uma nova retórica (ideológica) - lúdica, jubilosa e turbulenta – cuja principal função consiste em obstruir a compreensão das lógicas de exploração contemporâneas, ocultando os verdadeiros antagonismos sociais, em cada País e à escala mundial.

Mais que um mero “escapismo”, como por vezes se admite, os grandes eventos desportivos (para além do negócio que lhe está associado) têm a função estruturante de imprimir no imaginário colectivo a aceitação do estado das coisas existente. Numa ideologia difusa que se apresenta na sua pureza como essencialmente não ideológica.

Mas a noite é de festa! As cores nacionais ganharam ao Irão. Celebremos, por isso, a festa. Com um poema de Ricardo dos Reis, que não dizendo o que escrevo, diz sobre o assunto, mais do que imaginar se poderia.

“Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo....

(...)

Ardiam as casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes
Violadas, as mulheres eram postas
Contra muros caídos,
Trespassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez...

(...)

O jogo de xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

(...)

Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro
Imitemos os persas desta história
E, enquanto lá por fora
Ou perto ou longe, a guerra, a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença...

15 comentários:

Maria P. disse...

A orquestra continua a tocar e o navio a afundar.

Um abraço.

Licínia Quitério disse...

Tenho dificuldade em entender toda esta dinâmica patrioteira que o Mundial de Futebol alimenta a níveis de autêntica demência colectiva. Parece-me mais orgia do que festa. Que os Poetas se deixem contaminar, dá que pensar. Mas, ao menos, que salvem os poemas do naufrágio.
Um beijo.
Licínia

Sentires Cruzados disse...

Karl Marx,em 1844, escreveu:
«A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo.»

Se substituirmos o substantivo "religião" pelo de "futebol", temos, 150 anos depois, um pensamento bem actual.

Um sorriso e um beijo*

M. disse...

Que dizer? Partilho da opinião da Licínia... E incomoda-me este exagero todo que se faz à volta do futebol. Onde fica então o "eu" de cada um? Perdido, esquecido no meio dessa ânsia de afirmação da tal identidade nacional que se procura reforçar nestas ocasiões? Para quê esta ilusão, passageira, de alegria de massas e de país, assim deste modo? E o resto, o mais importante?
Um abraço.

Ant disse...

Siga para bingo... depois cá estaremos para continuar a pagar tudo isto.
Mas... e se eles ganham isto?

Já tenho passado sem comentar porque não iria acrescentar nada ao que dizes.
Gosto dos teus textos e o respeito que merecem não permitem comentários muito tolos ;)

Diafragma disse...

Eu tenho muita dificuldade em aceitar este fenómeno de histeria colectiva, sob muitos e variados aspectos. Por exemplo, que não se ligue nenhuma às medalhas dos para-olímpicos portugueses, ou à nossa primeira medalhada de ouro no mundial de Judo.
Há tempos li um texto que não consigo reproduzir, e que começava assim: "Colocarei bandeiras na minha janela quando Portugal deixar de ter analfabetos, quando ultrapassar os problemas de saúde, de educação, de desemprego, etc. etc." e por aí fora.
E custa-me ver isto. Ver o presidente da Comissão Europeia ir cumprimentar os jogadores, os presidentes das empresas que já admitem encerrar "no dia em que Portugal vencer o Mundial". Parece que estou num filme do David Lynch.

ps: Por acaso até acho que o Ricardo Reis também diz o que tu escreves.

lique disse...

Dizes tu: "Mais que um mero “escapismo”, como por vezes se admite, os grandes eventos desportivos (para além do negócio que lhe está associado) têm a função estruturante de imprimir no imaginário colectivo a aceitação do estado das coisas existente"

E eu pergunto: isso é de hoje ou, na verdade, desde que conhecemos algo sobre as diversas civilizações, sempre foi assim? Os "jogos" não tiveram sempre essa função? E, falando da importância que lhes é dada, não eram, na antiguidade, os vencedores considerados heróis? Pois, a gobalização talvez agrave as coisas. Porque estes fenómenos se estendem para lá das fronteiras de um país ou até de uma civilização.
Todos lamentamos que estas energias não sejam canalizadas para os reais problemas dos povos, do nosso país em particular. Sabemos que não são. Ficam por ali mesmo, na euforia da vitória ou na frustação da derrota.
Verdade, verdadinha, eu gostava que o orgulho que sentimos quando os vemos a cantar o hino ou a marcar um golo fosse transposto para o nosso dia a dia. Independentemente de (não) passar o meu tempo a pensar nos verdadeiros antagonismos sociais. Forma prática de também evitar a acção possível, ou não será?
Xii... isto hoje está quase um testamento. Isto é, concerteza, da claridade da manhã.
Beijos

batista filho disse...

Lique lembrou bem a função dos "jogos"... escapismo? também... sem sobra de dúvida, o atual estado "evolutivo" da ciência, voltado para o estudo do comportamento das "massas", potencializou em muito a manipulação, a opressão.
Tua postagem?! - uma gotinha a se somar tantas mais quantas sejam necessárias para que se forme uma boa chuvarada a se derramar sobre as mentes entorpecidas.
É isso aí!
Um abraço fraterno e solidário.

alice disse...

boa noite,

a janela da minha vizinha tem uma bandeira nacional pendurada... e este símbolo repete-se pelas varandas do páis... ninguém pendura bandeiras contra sida, nem paga bilhetes para portugal ser maior noutros domínios além do futebol... mas que a bola corra triunfante, apesar de tudo!

um beijinho,

alice

JPD disse...

Há quanto tempo se organizam estes torneios da UEFA e FIFA? A globalização é um fenónemo que está em marcha desde quando. Comparativamente com aqueles eventos, há relativamente pouco.
À volta do desporto e daqueles eventos o que se promete às pesoas: alguma ocupação durante a preparação das instalações dos torneios e outra durante a sua ocorrência, cessando aí o propósito. A globalização, este movimento imparável das empresas em busca de melhores e mais alargados mercados garante a precaridade e uma nova filosofia de vida para quem precisa de trabalhar uma vida.
O HOmo faber e o Homo lúdico ainda estão longe de uma oportuna e fiável convivialidade.
Um abraço

Anónimo disse...

Ok amigo!A correcção funciona...
Quando digo que gostaria que a selecção ganhasse ...mas espero que isso não aconteça...significa que corremos o risco de esquecer outras coisas mt importantes...mas se calhar esquecer faz bem e umas alegrias de vez em quando...
Um abraço
Morfeu

Menina Marota disse...

Eu não gosto de futebol.
Mas gosto de Poetas, direi antes...de Poesia...

Existiram sempre jogos, desde os sangrentos jogos da "arena"...

... ao jogo da "roleta"...

enumerar mais? Não é preciso, sei que os conheces de cor... o meu jogo são as letras, na simplicidade que as uno, elas tornam-me feliz...

Mas, que o "jogo" continue... acalma os espíritos, esquecem-se os problemas, o dinheiro até dá para as viagens, depois? Que interessa o depois? Com tanta coisa para contar... ou chorar?

Um abraço. Gostei muito de ler este texto, .)

Andre_Ferreira disse...

Estes campeonatos são uma boa forma de desviar a atenção das pessoas dos problemas que as rodeiam.
Que o mundial "ajuste contas com a globalização" parece-me uma espécie de atirar areia aos olhos das pessoas, o seu nome, a sua identidade? Será que se por dizer muitas vezes um nome nos aproximamos mais da identidade? Não será isso a velha história de uma mentira repetida muitas vezes acaba por se tornar verdade?
Todas as manifestações de patriotismo me arrepiam, as bandeiras nas ruas os hinos...

O poema do Ricardo dos Reis diz tudo de uma maneira exemplar, parece que pouco mudou no mundo!

Um abraço

´P.S.- Parece-me também bastante curiosa a seguinte frase:mesmo que as elites se esqueçam das raízes (...)!!!!! Um senhor que representa o poder há 30 anos vem falar de instintos do povo?

Peter disse...

Já o disse aqui e não me canso de repeti-lo, que o teu blog tem artigos de muito interesse, actuais e muitíssimo bem escritos.

Klatuu o embuçado disse...

Bom!... o patriotismo à volta do futebol, ainda que sincero, é bacoco e alienado!

P. S. Espreita aqui, o blog do meu mano:
http://gothland666.blogspot.com/

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