segunda-feira, julho 10, 2006

Os irmãos da caridade...

Assiste-se, hoje em dia, a uma empolgante cavalgada filantrópica, anunciada com fanfarras tais que até parece que uma nova aurora se desenha no horizonte da humanidade, sob a consigna “milionários de todo o Mundo, uni-vos!...”

Ao serviço dos pobrezinhos, está bom de ver...

Como sabem, o exemplo vem de Bill Gates, urbe et orbe considerado o “homem mais rico do Mundo” e, como tal, o “maior filantrópico do Mundo”, a que agora vem juntar-se Warren Buffet – “o segundo homem mais rico do Mundo!...” – e, como tal, também filantropo de primeiríssima água, que terá oferecido à Fundação do primeiro qualquer coisa como 30 mil milhões de dólares. Para quê? Para que a caridosa Fundação Gates faça cada vez mais e melhor caridade...

Por cá, também temos os nossos filantropos! Inspirados no caridoso desígnio presidencial da “inclusão social”, onze empresários portugueses - da melhor nata (como se compreende) e, como tal, comovidíssimos com o insucesso escolar - apresentaram um projecto que irá salvar o País de semelhante drama. A fazer fé no solícito “Público”, o Presidente da República terá tido uma “reacção extremamente positiva”. Como seria de esperar...

Estes os factos. Agora a ideologia!

Sobre a matéria, um dos intelectuais orgânicos do nosso liberalismo caseiro, escreve, empolgado, que “a luta contra o socialismo tem de ser a demonstração de que, também nas áreas sociais, os privados são mais eficazes e produtivos na gestão dos sistemas que o Estado”. E esclarece, definitivo, que “bem mais importante do que isso é o sinal ideológico que está subjacente a iniciativas deste tipo”.(JMJúdice – in “Público” de 07.07.06)

Ao fim e ao cabo, se bem reparamos, o que está implícito em tais palavras (e, sobretudo, em semelhantes práticas) é que, para o capitalismo, a exploração e a caridade são as faces da mesma moeda: a exploração para fazer as grandes fortunas e a caridade para justificar a exploração, pois apenas é filantropo quem pode ...

Em verdade vos digo, que as fortunas de todos os filantropos do mundo “custam” centenas de milhões de explorados e esfomeados – a morte por falta de comida e cuidados de saúde de dezenas de milhares de pessoas por dia.

E quanto aos privados serem mais eficazes e produtivos estamos conversados. Quem poderá esquecer as endémicas doenças do sistema capitalista nas suas falcatruas e falências, com as brutais consequências económicas e sociais para milhares de pessoas.

Quem não se lembra, por exemplo, do enorme colapso da multinacional Eron e do seu presidente, Ken Lay, fanático da liberalização dos mercados e amigo de Bush (pai e filho), cuja falência fraudulenta deixou um monte de papel sem valor aos seus accionistas, dívidas no valor de 32 mil milhões de dólares e mais de 21 mil pessoas desempregadas, que para ela trabalhavam em todo o mundo.

Porventura, se tivesse tido sucesso nas suas falcatruas, Ken Lay seria hoje um emérito filantropo!... Na realidade, os seus crimes em nada buliram com o sistema que produz Bill Gates e Warren Buffett e, entre nós, os ilustres “empresários para a inclusão social”...

Almeida Garret, no século XIX, perguntava, quantos pobres seriam necessários para fazer um rico. Alguém hoje saberá responder?!...

10 comentários:

M. disse...

Fazes bem em nos falar destas coisas, e do modo como o escreves. Gosto desse modo lúcido e sem escorrer ódio em que sinto no entanto um certo sofrimento teu perante as coisas e o mundo. Ainda bem que vais partilhando connosco o teu pensamento e o teu saber, é que às vezes ando na lua e esqueço-me do que se passa na terra.
Um abraço e o meu apreço.
P.S. - Agradecida pela visita a Ljublyana numa noite de Verão. ;-)

Sentires Cruzados disse...

É com prazer que volto a ler-te.
Gosto da tua escrita critica e contundente..
Com lucidez, apontas os erros e a hipocrisia reinante.
Vens revigorado das férias. Risos.
Um beijo*

Maria Azenha disse...

quantos pobres para fazer um rico?!
que verdade tremenda!

Como se fosse inevitável alterar a distribuição da riqueza!

Cinismo puro.



***maat

lique disse...

Algumas questões:

1- Pareces defender a intervenção estatal, em desfavor da privada (já lá vamos às razões...). E quando o Estado falha redondamente? (parece ser o nosso caso), o que resta?
2 - Dizes que "as fortunas de todos os filantropos do mundo “custam” centenas de milhões de explorados e esfomeados". Desculpa se considero esse discurso um pouco radical e datado. E, mesmo que assim seja, desculpar-me-ás (mais uma vez) que prefira que, como "compensação", dêem aos expoliados uns milhares de milhões de qualquer moeda sonante (no caso de Warren Buffet foram 37,4 mil milhões de dólares e a fundação Bill e Melinda Gates tem um orçamento de cerca de 30 mil milhões de dólares), do que gastem esses milhares de milhões em puro consumo ou os amealhem para os descendentes.
3 - Não concordo, isso não, que a actividade filantrópica seja usada para "lavar imagem". Sei que, de facto, a tentação de a usar para isso é grande. Mas talvez seja essa uma das funções das instâncias estatais competentes e dos atentos investigadores do jornalismo: garantir que o que fazem de ilegal não passa impune. Ingenuidade? Talvez...
Beijos

Maria P. disse...

Que excelente regresso!

Os nossos ilustros, a nata da nata, ou as natas que irão azedar?

alice disse...

bom dia, herético,

agradeço o teu comentário e fico feliz com o teu regresso

aqui faço uma leitura culta e premente que muito me agrada

um grande beijinho

alice

folhasdemim disse...

Olá :)
Finalmente voltei.
Entretanto perdi os meus links e estou a tentar recuperá-los :(
Quanto aos irmãos da caridade...
Eu acredito que nem tudo é mau.
No meio da hipocrisia de uns está a bondade de outros.
Beijokas grandes e até breve.
Betty

Anónimo disse...

Todos os sonhadores de um mundo fraterno sempre destacaram a cooperação em lugar da competição.

Com relação à filantropia... não esqueço de um fato, dentre tantos: reunidos num restaurante de fino trato, representantes do comércio, indústria, religiões e políticos do lugar, discutiam a melhor forma de, chegado o frio rigoroso, como deveriam proceder para minorar o sofrimento dos "descamisados". Entre boas garfadas, vinhos entornados, muita conversa edificante, finalmente chegou-se a uma conclusão: seria criado um fundo para aquisição de agasalhos a serem distribuídos com os pobres da periferia, cujo valor total chegou a "X" dinheiros. Aplausos, sorrisos de orelha a orelha, consciências imaculadas a caminho de casa. Quando foi contabilizado o custo do restaurante, ironia das ironias: "X" + "X" dinheiros!

Das lições de um certo Nazareno, lembro de um tal "óbolo da viúva"... ou ainda "... onde o homem tem o seu tesouro, aí jaz o seu coração"... ou, como tu tão bem lembraste - "quantos pobres seriam necessários para fazer um rico?".

De todo modo, é uma pena que as mais diversas experiências socializantes, com o passar do tempo, estejam soçobrando pela falta de empenho pessoal/coletivo dos seus executores, seduzidos pelo canto neoliberal.

Um abraço fraterno.

Peter disse...

Concordo inteiramente com o que escreves e que se situa na minha maneira de encarar a vida e a sociedade injusta em que nos integramos.

Gostaria de salientar um aspecto que não é, de modo algum, contrário ao teu excelente texto:

- Warren Buffett deixou, julgo que 80% da sua imensa fortuna, à Fundação Bill Gates. Isso implica que a mesma irá ser aplicada, de acordo com os Estatutos da mesma e não delapidada pelos seus descendentes.

Abraço

Diafragma disse...

Ora bem, em primeiro lugar é bom ter-te de volta. Já tinha saudades destas reflexões e análises.
Agora o conteúdo.

A minha primeira sensação foi muito coincidente com o teu texto. (Tu pensaste na Eron, eu na Bhopal por exemplo). Porque me é muito difícil acreditar neste tipo de viragens mais ou menos súbitas. São pessoas especiais, extraordináriamente inteligentes, excelentes profissionais, e que sentem um prazer enorme no seu jogo.
Portanto custa a crer sobretudo tendo trabalhado muito de perto com eles, independentemente de admirar as suas espantosas capacidades.

Quem ama o próximo e se preocupa tanto com a sociedade não espera dezenas de anos a passar por cima de tudo e todos para depois, já podre de rico, se tornar altruista.

Em "second thoughts" porém, para usar a expressão deles, acho que não posso pôr a ideia de parte.
E neste dilema me fico, caro herético, sem saber para que lado cair.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

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