quinta-feira, julho 27, 2006

Outras Leituras III – Um Brinde em Tormes


“... e a tia Vicência espalhava aquele olhar, que prepara o erguer, o arrastar de cadeira – quando D.Teotóneo, erguendo o seu copo de vinho do Porto, com a outra mão apoiada à mesa, meio erguido, chamou Jacinto, e numa voz respeitosa, quase cava:

- “Esta é toda particular e entre nós... Brindo ao ausente! “

Esvaziou o copo, como em religião, pontificando. Jacinto bebeu assombrado, sem compreender. As cadeiras arrastavam-se – eu dei o braço à tia Albergaria. E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com sua chávena de café e o charuto fumegante, me disse, num daqueles seus olhares finos que lhe valiam a alcunha de “Dr. Agudo”:

- “Espero que ao menos, cá por Guiães, não se erga de novo a forca...”

E o mesmo fino olhar me indicava o D. Teotóneo, que arrastara Jacinto para entre as cortinas duma janela, e discorria, com ar de fé e de mistério. Era o miguelismo, por Deus! O bom Teotóneo considerava o Jacinto como hereditário, ferrenho miguelista – e na sua inesperada vinda ao solar de Tormes, entrevia uma missão política, o começo de uma propaganda enérgica, e o primeiro passo para a Restauração.

E na reserva daqueles cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio duma influência rica, nova, nas eleições próximas, e nascente irritação contra as velhas ideias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização tão superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela sandice. E retive o Dr. Alípio Mello Ribeiro, que repunha a chávena na bandeja, fitei, com um pouco de riso, o Dr. Agudo:

- “Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacinto veio para Tormes trabalhar no miguelismo?...

Muito sério, Mello Ribeiro chegou o seu grosso bigode à minha orelha:

- “Até corre, como certo, que o Príncipe D. Miguel está com ele em Tormes!...”

E como eu os considerava esgazeado, o Dr. Alípio – tão agudo! – confirmou:

- “É o que corre... Disfarçado em criado!”

Em criado? Oh, Santo Deus! Era o Baptista!

Justamente, Ricardo Velloso veio, puxando do seu cigarrinho, para acender no meu charuto. E o bom do Rebello logo invocou o seu testemunho – pois não corria, que o filho de D. Miguel estava em Tormes, escondido?

- “Disfarçado em lacaio! ...” – confirmou logo o digno Rebello. (...)

Jacinto, que se libertara do velho D. Teotóneo, e ainda conservava um resto de riso, de assombro divertido, vinha para mim desabafar:

- “Extraordinário! Vejo que, aqui, na serra, ainda se conservam, sem uma ruga, as velhas e boas ideias ... “

Imediatamente, sem se conter, Mello Ribeiro acudiu:

- “É conforme o que V. Exª chamar “boas ideias”...

E eu agora, furioso com aquela disparatada invenção, que cercava de hostilidade o meu pobre Jacinto, estragava aquela amável noite de anos, intervim, vivamente:

- “Tu jogas o voltarete, Jacinto? Não jogas. Então vamos arranjar duas mesas... O D. Teotóneo há-de querer cartas...”

Eça de Queiroz – in “A cidade e as Serras”
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“Empanturrados de civilização”, (e de blogs! ) não se atrevam os meus (minhas) amigos(as) à subir à serra para fazer política, neste tempo de pousio! É que, andam por aí, em cada esquina do País, muito esqueletos nos armários e briosos “Drs. Agudos” muito ciosos das (suas) boas ideias ...

Joguem antes o voltarete...

11 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Impagável o Eça.
Este excerto é um bom exemplo. Gostei de o reler.
Abraço e boas férias...

Maria P. disse...

Por isso é que eu ando a ler "O Mistério da Estrada de Sintra"!

Um abraço.

Diafragma disse...

Não sei porquê, mas "tempo de pousio" faz-me lembrar "The hidden Agenda"...

M. disse...

Já agora as regras do jogo, que eu não sei jogar o voltarete.

hfm disse...

Este é daqueles livros a que volto sempre e sempre me encanta.
E o mal é que as serras andam a ficar despovoadas!

vida de vidro disse...

Passo, passo... que eu não sou muito de jogos. E fazer política com este sol? Que cansaço... :))
Mas quanto ao Eça, alinho, pois. Deste-me vontade de reler. **

Anónimo disse...

E nesta época de férias e de fogos, não são as serras que acoitam os “lobos”…

Licínia Quitério disse...

Olá! Vim espreitar.
Mesmo de férias "postas" coisas bonitas. Obrigada. Eu volto muito brevemente a este serviço. Não é que já tenho saudades deste mundo?
Beijo.
Licínia

Anónimo disse...

caro heréctico,

vim ler e desejar-lhe um óptimo fim de semana

um beijinho

alice

Anónimo disse...

Como já o disse, amigo: se por aí o tempo das discussões políticas ora repousam... por cá mal e mal começaram!

Bom te ler, em textos selecionados.

Um abraço fraterno.

Klatuu o embuçado disse...

Excelente!
Abraço.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...