sábado, agosto 26, 2006

Os "gloriosos" anos 60...


Jornais, comentadores e até programas musicais, afadigaram-se, durante o mês de Agosto, em trazer para a ribalta os “anos sessenta” e a sua famosa “mistica”. Confesso que, inicialmente, o fenómeno me surpreendeu. Compreendi depois que se tratava de preparar terreno para voos mais altos. Afinal, o objectivo era, a propósito do centenário do seu nascimento, recordar Marcelo Caetano e chamada “primavera marcelista”, numa estratégia subliminar de “branquear” a sua figura...

Se bem compreendo, trata-se, então, de colher, dos anos 60, o “romantismo” das lutas académicas e o folclore dos slogans “make love, not war”, para neste quadro agigantar a personalidade de M.C e o gesto de rebeldia ao regime ao demitir-se de reitor da Universidade Clássica de Lisboa e validar assim os seus alegados propósitos de abertura política, quando mais tarde é nomeado Presidente do Conselho.

E, na lógica deste pensamento, fazer-nos também acreditar que as transformações societais dos anos 60, que desembocaram no “25 de Abril”, foram meros acontecimentos “românticos” espontâneos e naturais e não consequência da resistência daqueles que, vencendo o medo e correndo riscos de desterro, de prisão ou de morte, combateram activamente a ditadura. Fossem quais fossem as simpatias políticas...

Relevando a importância das lutas académicas - elas próprias consequência do trabalho político e de militância nas universidades - importa reconhecer que a vida do País real não se compaginava de todo com fervor político e a vida estudantil e que houve vários “anos sessenta”, para além das míticas “ilhas de liberdade”, que para alguns terão, porventura, sido.

Quem, oficial miliciano, preparou, nesses anos de chumbo, os soldados “carne para canhão” para a guerra colonial conheceu bem a distância entre o “universo” das associações académicas e o “mundo” de analfabetismo e de pobreza que lhes chegava de todo o País, como “matéria prima” de futuros “heróis”.

Entre outras desgraças nacionais, importa recordar que, no longo período da guerra colonial, mais de 800 mil jovens foram mobilizados, milhares deles mortos e estropiados, engrossaram o caudal de dor e de tragédia em inúmeras famílias portuguesas.

São também dos anos 60 os assassinatos da Pide, entre eles o de Humberto Delgado, a emigração a salto para França e outros países europeus, o trabalho “sol a sol” nos campos, de repressão violenta nos campos e fábricas...

Será, pois, de elementar bom senso não ignorar lado negro, quando, dos anos sessenta, nos pretendem apenas pintar o quadro idílico da “revolução” e da libertação sexual e as formas, mais ou menos espalhafatosas, de seus ícones.

É que o “marcelismo” e a sua fachada de “abertura” política falharam, fundamentalmente, na sua impossibilidade genética. Quem poderá (poderia) ignorar que M. Caetano foi, como estadista e universitário, um dos principais doutrinadores do Estado chamado “Estado Novo”?! O criador nunca se rebela contra a criatura...

Assim, não há gesto teatral que lhe valha, nos tardios anos sessenta, perante os cargos e a acção política como Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, dirigente da União Nacional, Ministro das Colónias e Ministro da Presidência de Salazar, autor da famigerado Código Administrativo e a sua assinatura em diversa legislação repressiva.

Compreende-se, humanamente, que amigos e familiares respeitem a sua memória. Não pode, porém, consentir-se que apaguem a nossa e que o centenário do seu nascimento constitua motivo de glorificação e de branqueamento do fascismo, a que M. Caetano esteve umbilicalmente ligado.

Como é notório, até à sua morte, Marcelo Caetano manteve, no Brasil, um arrogante desprezo em relação a Portugal e ao regime democrático saído do 25 de Abril. Os seus livros o testemunham. Mas se tal não fosse conhecido, bastaria escutar um dos seus familiares, em entrevista, em prime time, no canal um, da televisão pública, esclarecendo, em pose de dignidade ofendida, que “sendo necessário um requerimento nunca Marcelo Caetano o quis fazer para poder regressar a Portugal...”

Julgando-se acima da Pátria e do regime democrático, não aceitou “curvar-se” às leis da República. Na sua arrogância desdenhosa, tal requerimento seria, certamente, uma ofensa...

O povo português festejou a sua partida. Mas, pelos tempos que vão correndo, não estranhemos que, um dia destes, nos caiam em cima os ossos...

15 comentários:

Maria P. disse...

Bela lição. Fico sempre impressionada com as leituras, boas, que por aqui se fazem.

Bom fim de semana

M. disse...

Será sempre mais sensato nunca se agigantar ninguém, para que os homens sejam vistos na sua justa medida terrena. Mas os nossos media têm esse tique do viés...

Sentires Cruzados disse...

Grandioso texto que tu escreveste! Parabéns.
Não retiro uma vírgula. Concordo na integra.
Há muito que determinado tipo de forças tentam branquear tanto Salazar, como M.Caetano.
Nasci nos anos sessenta,fui para a universidade nos anos 80, mas devido à minha vida activa estudantil, organizei, na altura um coloquio sobre as chamadas crises estudantis de 62 e 69, onde os oradores foram elementos das direcções da A.A.C. da altura. Aprendi muito. Sei que de romanticas nada tiveram.
A maior parte dos rapazes foram expulsos da universidade e «embarcados» para o Ultramar. Foi um dos erros do regime fascista. Pois foram estes rapazes, estudantes esclarecidos,que mais tarde,como capitães, fizeram o 25 de Abril.
Um sorriso e um beijo..com amizade.
Bom fim-de-semana

Klatuu o embuçado disse...

Marcelo Caetano foi, durante muito tempo, mantido por Salazar àparte de funções de maior peso no regime... simplesmente porque Salazar não lhe encontrava a dureza necessária!
Ser «mole» não é ser democrata!

Mais uma vez dá para perceber que Portugal não é nem pode ser Lisboa!
O «zé-bimbo» que alimentava com o seu sofrimento os esforço de guerra... nada sabia de sandalinhas, guedelhas compridas, camisas às flores, Ginsberg ou Kerouac, das três Marias... e muito menos das rebeldias universitárias... esse país nunca chegava até à sua miséria e abandono rurais!

«Informação» de merda!!

Ant disse...

Os anos 60 não foram só beijinhos a braços e flores nos cabelos. O Vietnam, a "nossa" guerra e outras, os flipados, etc.
Estava eu a pensar no retorno que falas ontem quando via na tv o anúncio de mais uma corrida de touros qualquer, acompanhada ao fado.
FFF e touros?
Bem... já faltou mais...
Muito pertimentes estas questões. Ainda bem que alguém as põe em rede de forma tão frontal.
Será que vamos tentar recuperar a "nossa" África?

Licínia Quitério disse...

Que importante fazer uma análise destas. Os "gloriosos" anos em que o interior do País se despovoou. Para a França, no Sud, apinhados na gare d'Austerlitz, depois abandonados em qualquer "bidonville", os emigrantes eram o rosto da miséria de 60. Também para as franjas das nossas cidades grandes, para "servirem", nas obras ou nas limpezas. E a especulação bolsista do "capitalismo popular" a esvaziar os bolsos dos incautos e a engordar novas e velhas fortunas. E a Pide recauchutada em DGS. Ah como o marcelismo foi inocente!...
Quando um Povo renega a memória, mal vão as coisas.
Um bom fim de semana para ti.

Leonor disse...

ola heretico. venho da ranhette.
li com relativa atençao algoque o tempo nao me deixou ver embora tivesse 12 anos aquando do 25 de abril.
depois... o desinteresse cada vez maior pela politica que se mostrava caotica em quase todos os sectores.
dai nao saber comentar o que escreveste. contudo a tua perspectiva adicionou algo ao meu parco conhecimento sobre o assunto.

abraço da leonoreta

Anónimo disse...

já nasci bem depois do 25 de abril e sempre me ensinaram que as ditaduras são más. Que em Portugal houve uma ditadura. Que Salazar e M. Caetano foram presidentes.

Cof..e a minha surpresa quando vi na tv a homenagiarem o centenário do nascimento do M. C....

?!

vida de vidro disse...

Como sempre, analisas lucidamente e dissecas as ideias feitas para mostrar o reverso, aquilo que nem sempre convem ser mostrado ou lembrado.
Bom era, de facto, que os nossos media fizessem uma análise correcta e aprofundada dos anos 60 portugueses que, de românticos, tiveram pouco.
Quanto a Marcelo Caetano, as reportagens feitas estão bem na tendência actual de considerar que, se calhar, nem tudo era assim tão mau naquela época. Boatos, boatos... É uma forma de tornar tudo soft, meias tintas, sem dramatismos, esquecendo os reais dramas que existiram.
Valeu a pena ler, como sempre. **

alice disse...

boa tarde ;)

agradeço a sua visita e comentário no meu blog

bem haja pelas suas palavras!

votos de um bom domingo e um beijinho

alice

Diafragma disse...

Fundamental este teu texto, e deixa-me desde já dar-te os meus sinceros parabéns.
Para quem como nós provou esses tempos, é profundamnete irritante ver como os media os travestem. Mas infelizmente, por muitas e variadas razões, a juventude portuguesa sabe mais da guerra do Vietnam que da Guerra do Ultramar, e nem lhe passa pela cabeça que um país como o nosso tivesse mantido centenas de milhar de soldados a combater em 3 guerras simultâneas. Faltou-nos um Kubrik, para além de muitas outras coisas mais importantes.
Também ninguém sonha o que é sair despreocupadamente das aulas no tempo do MC e ser encostado à parede por 3 figuras sinistras para lhe perguntarem "de que se fala lá em casa ao jantar".
Abraço

batista filho disse...

A história, continuamente reescrita de acordo com as conveniências da elite de plantão, não encontraria eco se cultivássemos o interesse em buscar “enxergar” par’além do que nos é oferecido pela grande mídia, por exemplo; a par e passo mantendo uma postura crítica, não aceitando ser tratados como “massa”, mas sim como seres pensantes.
Nessa linha, caro amigo, os textos que nos são apresentados no teu sítio nos remetem a um questionamento salutar.
Grato.
Deixo o meu abraço fraterno.

JPD disse...

Sim, o regime não via (ouvia com bons ouvidos) a musica popular anglosaxónica porque tanto fulgor criativa -- quem esquece o rol infindável de músicas de então! -- por ele ser indissociável de uma geração que contestava valores retrógrados e apresentava uma prerrogativa indiscutível: liberdade.
O regime era reles e, contando com a igreja, torcia mentalidades e com imenso custo lá permitia pequenas aberturas.
O que realmente faria sentido nessas reportagens que tu citas é que a mesma música rock que tanto inibia o marcelismo também serviu de contestação à guerr do Vietname e tão eficazmente contribuiu para mobilizar acções de contestação.
Belo texto o teu.
Um abraço

Anónimo disse...

Sobre este escrito, é engraçado constatar as recordações quase simultâneas entre nós.
As letras até podem ser diferentes, mas o princípio acaba por ser o mesmo.
Só me apetece dizer, que felizmente o Marcelismo se finou no Largo do Carmo às mãos de um homem honrado.
Quanto aos ossos, até podem vir, ele há tantos cães abandonados que certamente fariam um festim…

Bel disse...

Os tempos são outros mas não dvemos esquecer o passado.
um abraço

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