domingo, janeiro 21, 2007

Outras Leituras XI - "O aborto, a tragédia grega e o coro..."

1 – “A tragédia grega é a imagem do conflito moral do aborto. Princípios e personagens em recíproca contradição. O dilema entre a intransigência e a reconciliação serena recomendada pelo coro (...) Na tragédia de Sófocles, o coro repete constantemente que a fonte de todo o mal é a ausência de medida. Verdadeiramente, a agonia da solução final da tragédia resulta da irredutibilidade cega das partes em confronto, à margem da orientação do coro.

A questão do aborto surge numa situação de conflito moral. Um conflito moral e constitucional – porque o sistema constitucional é um sistema moral. O conflito dá-se entre o principio de vida em formação e o princípio da autonomia da mulher (...) É a afirmação de princípios universais contrários na complexidade da vida concreta que exige à justiça a determinação da justa medida.
(...)

2 – O dilema moral em que se confrontam os princípios de vida e da autonomia (da mulher) exige uma solução do legislador e faz apelo ao senso comum e ao consenso amplo. A justiça aqui está longe de consciência isolada do herói da tragédia grega. Ela convoca a sabedoria prática para uma decisão justa (...) A proporcionalidade é a verdadeira máxima, o mais alto valor. ”O mais que possas pondera-me, pondera tudo bem” (o coro em Filoctetes).

Porque o sistema constitucional é um sistema de princípios morais, tem o legislador garantir-lhe a máxima eficiência. A questão do aborto não é pura questão de consciência. O Parlamento está obrigado a legislar, a definir limites. Bem vistas as coisas, os limites definidos para o aborto na pergunta do referendo evidenciam já o pensamento do legislador sobre esses limites.
(...)

3 – E, no entanto, o aborto clandestino não é a justificação decisiva para a descriminalização do aborto. Um crime, se é crime, não se apaga porque sistematicamente desafia a lei e se esconde. A justificação decisiva está nas próprias premissas da justiça. Está a montante, nos valores chamados a decidir o conflito moral do aborto (...) O aborto clandestino constitui o teste à lei em vigor, à sua capacidade de composição da ordem do mundo. Ele confronta-nos a todos com a necessidade de perguntar se, ao menos em certos limites, a autonomia da mulher não é também susceptível de valoração moral. Afinal, é o conflito íntimo e trágico do aborto em supremo risco e suprema dor que é patenteado na especifica provação da sua clandestinidade. E, uma coisa é certa : não há regra justa se ela não passa a prova das circunstâncias e das consequências.

4 – E rejeitemos a falsificação do debate. Descriminalizar o aborto em certa medida, não é liberalizar o aborto. A liberalização do aborto consideraria, numa visão parcial, empobrecida e, por isso mesmo injusta, a pura subjectividade da mulher. A criminalização do aborto que abstrai inteiramente dessa subjectividade será, do mesmo modo, parcial, empobrecida, simplificada e injusta. A justiça estará aqui “na renúncia efectiva de cada facção à sua parcialidade” (Hegel). É esta conciliação que a tragédia é incapaz de produzir.

Mas uma comunidade constitucional não é uma comunidade de heróis, nem a sua justiça admite a intransigência altiva das personagens da tragédia grega. Ao invés, ela exige medida da conciliação e o justo reconhecimento dos valores que aqui estão verdadeiramente em causa. De todos os valores em causa. Ora, no universo moral dos valores em causa que justificam a descriminalização do aborto, a actual lei não reconheceu, como devia, o direito da mulher formar opções sobre a própria vida e é nesse sentido que ela é injusta. A vida que se forma e a autodeterminação da vida plena (a da mulher) são ambas expressões de um radical humano que se impõe, inteiro, aos critérios de justiça. Para que esse valores subsistam em conjunto, a cedência na sua existência concreta é o preço a pagar.
(...)

5 – O conflito moral do aborto é, porventura, o mais gritante dos conflitos morais. Ele perturba-nos na nossa consciência íntima e desafia-nos para a compreensão da justiça, na ligação estreita entre natureza e civilização.
(...)

No dia do referendo, vou dizer “sim”! não por razões de solidariedade ou de piedade. Por razões de justiça. Mesmo com a possibilidade de optar até às dez semanas, a mulher ficará sempre com a sua impossibilidade de evitar a dor...”

Assunção Esteves – in jornal “Público” de 13.01.07.

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Estarei ausente do vosso convívio durante alguns dias. Regressarei certamente a tempo de votar. Pelo “sim”, naturalmente! Como afirmação do primado do “reino da liberdade”, sobre o “reino da necessidade”. Como expressão de racionalidade e de cultura, sobre a “escravidão” da natureza e o atavismo da religião.

23 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Parabéns pelo teu ponto de vista sobre o aborto.
Também votaria pelo sim, mas não estarei no país na data do referendo... espero que o meu voto não faça falta...
Um abraço.

vida de vidro disse...

Tenho alguma dificuldade em comentar o teu post, não porque a minha posição não esteja completamente decidida mas porque me interrogo se é a este nível que é necessário pôr a discussão, neste momento.
Claro que se trata de um texto muito bem argumentado e fundamentado, vindo, ainda por cima, de quem vem. Óptimo para uma discussão intelectualizada e, certamente, perfeito para o nível a que este blog nos tem habituado.
Mas, para o português comum que lê o jornal (existem ainda portugueses comuns que lêem outros jornais além dos desportivos e dos grátis?), o texto não adianta muito. E, neste momento, é necessário que adiante. Olhando para a campanha do NÃO, diria que, ou o SIM acorda, ou perde outra vez. Então, há que ser simples e exacto nas mensagens que se deixam.
Entendo que este não é um texto de campanha, é um texto de reflexão. Perfeito. Também percebo que, quem defende o SIM porque pretende que que exista a possibilidade de decidir de acordo com a consciência de cada um, sem penalizações legais, tem alguma dificuldade em entrar no nível de demagogia pelo qual o NÃO enveredou. Mas... há que acordar para a realidade e dar tudo por tudo para que a situação injusta e indigna em que as mulheres portuguesas se encontram não permaneça assim.

Que grande discurso. Desculpa. Claro, eu voto SIM! **

Peter disse...

É um excelente texto. Fizeste bem em o publicar.

Licínia Quitério disse...

Noutro registo, elogiando de qualquer modo o altíssimo nível do artigo que transcreves, eu digo:

Pelo respeito pelas crianças.
Pela dignidade das mulheres.
Pelo fim do negócio obsceno dos abortos clandestinos.
Pelo fim da hipocrisia de quem defende interesses obscuros e fala de amor à Vida.
Pela educação responsável sobre sexualidade e maternidade.
Pela consciencialização dos homens como parte integrante do processo.
Pela claridade contra o obscurantismo.
Pela verdade contra a manipulação de consciências.
Pelo fim de uma lei que é de facto um aborto jurídico.

Voto SIM.


Até breve.

Anónimo disse...

Caro amigo,

Na minha opinião este assunto carece de um debate amplo, desprovido de políticos, que constantemente o usam como arma de capitalização de créditos, mas provido de especialistas de várias áreas como por exemplo: médicos especialistas, psicólogos, cientistas e filósofos.
Não me importo de expor aqui pontos que o meu senso comum me diat e que fazem com que minha opinião que, relativamente ao referendo, ainda não está sequer direccionada.

- Existem sem dúvida situações que justicam o aborto.
- O aborto nunca poderá (nunca deveria) ser usado como mecanismo de planeamento familiar.
- o facto de um crime ser constantemente praticado não é motivo para deixar de ser crime.
- Uma vida não tem menos direitos a nível intra-uterino que depois de nascer nem menos direitos que a mãe.
- o déficite de informação/educação é o maior problema problema no caso das adolescentes grávidas.
- para mim não é uma questão de consciência individual (decisão da mãe) porque existe mais que um indivíduo (o embrião).

Questões que não tenho resolvidas:
- em que ponto é que o embrião passa a ser um indivíduo?
- quais são as situações já contempladas para a realização de um aborto?
quais as propostas concretas que resultam de uma vitória do SIM (já que em caso de vitória do NÃO nada se altera, me parece).

Um abraço

Cris disse...

Eu apenas faria um aborto em ultima instância, e se calhar talvez não. Mas por pensar assim, não me cabe julgar a consciência de outros e muito menos negar as condições dignas em termos médicos e sociais para quem o queira ou precise de fazer.

Voltai depressa!!

Beijinho

C.

Diafragma disse...

Eu já tinha apostado em como este tema ia aparecer aqui, ou tu não fosses "o Herético" que eu tanto respeito e aprecio!
Olha, gostei da escolha do texto assim como do inteligente comentário da Vida de Vidro, (a que também já estamos habituados).
E embora esteja mais de acordo com este último, em parte até pelo seu pragmatismo, há um aspecto que é lateral, eu sei, mas que gostava de compreender melhor. Refiro-me ao tal limite temporal das 10 semanas. Talvez por (de)formação profissional, não consegui ainda perceber porque não 10,4, ou 9,75...

Maria disse...

Eu assino por baixo do comment de licínia quitério e voto SIM!

M. disse...

Apreciei a lucidez do artigo. Que o "Sim" possa contribuir para uma maior dignidade humana no nosso país, a todos os níveis.

disse...

Estamos nós Portugueses, realmente libertos de tantos anos de obscurantismo bafiento?

Espero que a maioria dê esse sinal.

isabel mendes ferreira disse...

pelo sim!!!!!!!!!!!!


sem tragédias!!!!!!!!!!!!!


beijos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

até já!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


Obrigada.

JPD disse...

Esta edição está excelente.
Considerções:
1/ Sejam quais forem os dilemas morais que desafiam a nossa consciência, só nos assiste discuti-los, debate-los, fazendo-o em total liberdade de pensamento e opinião em plena liberdade.
2/ A defesa do «SIM» e do «NÃO» estão a condicionar as escolhas dos indecisos; estão a contribuir para a diminuição da abstenção; respeitam a angústia de dicidir interromper uma gravidez; separam as obrigações legislativas dpo respeito que as leis impõem a todos; evitam a clandestinidade?
3/ O que se vai votar dia 11 é a despenalização da IVG até às dez semanas; não se vai votar sobre a defesa ou recusa do aborto. Muito menos sobre questões morais à volta de.
Um abraço

António Melenas disse...

É de excelente qualidade o artigo cujos excertos transcreves.
Ao contrário do que tinha incialmente anunciado, a Igreja portuguesa portuguesa está-de envolvendo de uma maneira indecorosa na campanha pelo não, sobretudo por parte de alguns dos seus dignatários que tem proferido palavras de uma violéncia e de uma grosseria inqualificáveis contra os que defendem a DESPENALIZAÇÂO do ABORTO. Porque é apenas disso que se trata. Também eu abordo este tema no blogue "enquantoenao" e tambéu eu irei votar SIM, pelo direito à dignidade da mulher.
Um abraço

batista filho disse...

não sabia que irias te ausentar.

tem um recado pra ti numa certa ilha.

um abraço fraterno.

PintoRibeiro disse...

Pelo NÃO, naturalmente. Um abraço,

Conceição Paulino disse...

muito obrigada por este belíssimo, inteligente e lúcido texto k não havia lido e traz, para o debate, aspectos k não costumam ser ponderados.
Estejas omnde estiveres: k estejas bem.
Bj.
Luz e paz em teu caminhar

Anónimo disse...

Em qualquer lugar do planeta será sempre um tema a mexer com as consciências... vi uma bela homenagem que está sendo prestada a ti. Parabéns!

Anónimo disse...

Passei para ver os amigos, apreciar o blogue, sempre com bom-gosto e qualidade, factor que me leva a visitá-lo para deixar o desejo dum óptimo fim-de-semana, apesar deste frio que enregela, mas como diz o povo «mãos frias, coração quente».

uivomania disse...

Tirando um ou outro caso de leviandade e, pondo de parte más formações congénitas, violações, risco de vida... o aborto é quase sempre um acto desesperado.
Seria desejável que este referendo fosse mais além do sim ou não à despenalização, e servisse para reflectir sobre os motivos que levam alguém a abortar.
Temo, que a despenalização possa servir para tapar o sol com a peneira e nunca se venha a reflectir, sobre as verdadeiras razões para que tantas mulheres optem pelo aborto. È que, a ser feita essa reflexão... muita da hipócrisia, da falta de justiça social, da falta de cumplicidade, de humanidade, a ignomínia... teria de ser posta a nú. Quer dizer... teriam de se chamar os bois pelo nome!
Assim sendo, talvez que a despenalização - sendo quase um paradoxo -, seja o ùnico passo possível. È que uma mulher (um casal?!) desesperada, perante um beco escuro e imundo, carregado de hipócrisia e perfídia, para o qual se recusa trazer um filho... com ou sem penalização, enchendo ou não bolsos besuntas, vai continuar a abortar.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Quando começa a vida? Não constituirá esta própria pergunta um sem-sentido dramático? Ou não é a vida o resultado de um encadeamento cósmico, porventura sem princípio nem fim?

Ser-se um "defensor da vida" pugnando pelo Não neste referendo, no preciso momento em que milhões de vidas são trucidadas pela lógica do lucro sem fronteiras, sempre me pareceu, no mínimo, uma desfocagem na análise e na postura. No fundo, um desperdício de militância, ou uma incoerência da mesma.

Claro que respeito as demais opiniões. Mas reservo-me o meu direito de opinar, indissociável daquele.

Porventura já tudo foi dito sobre este tema e, afinal, a tua achega é mais um dado precioso.

Porque existe esta inevitabilidade de se discutir o "sexo dos anjos" em matérias de consciência individual... que tenho a certeza de que os próprios defensores do Não não consideram tolerável - para outras circunstâncias e matérias, claro.

Não deixa de me surpreender ver o grosso dos defensores do Não coincidirem fisicamente com os apologistas e acérrimos defensores da "livre iniciativa" e outras quimeras ditas "liberais".

Então em que ficamos? Há o livre arbítrio... ou nem por isso?

E, como perguntei lá pelo meu canto, onde fica, no meio disto tudo, a decisão da mulher, individualmente considerada?

Nesta irreal sociedade de hipocrisias, fica uma provocação: a bem da democracia, creio bem que este referendo deveria ser vedado aos homens enquanto votantes, já que, no fundo, não têm por que opinar sobre o assunto.

Entretanto, como até lá não conto que o mundo dê alguma volta de baixo para cima, eu votarei SIM, com certeza.

Um grande abraço.

PintoRibeiro disse...

Passei, um abraço,

Nilson Barcelli disse...

Mas que grande ausência...
Um bom fim-de-semana.
Abraço.

mjm disse...

como o meu nome indica... (rsss)... sou a favor de qqr interrupção, desde q seja voluntária.

Agora, como num jogo de matrioskas, experimentem ver se o NÃO não cabe dentro do SIM. Cabe, não cabe? Pois é. Mas o contrário, já não...

E, pleeeeeeeease, acabe-se com os moralismos! Os debates já se começam a parecer com aquele jogo do «se fosse um animal, era...»
:Sqltg

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...