segunda-feira, janeiro 01, 2007

Passo a passo?!...

Sabemos que na vida tudo é mais ou menos relativo. Pelo menos, a afirmação permite-me dizer que, no meu País, sou um privilegiado. Os rendimentos do meu agregado familiar ultrapassam a miséria dos € 860 euros mensais que me dizem as estatísticas serem o rendimento mensal médio das famílias portuguesas. Porém, como bem sabemos, as pessoas não alimentam de ”médias”, mas de rendimentos reais. Assim, dada a enorme concentração do rendimento disponível nas mãos de uns poucos é fácil concluir que a maioria das famílias portuguesas tem rendimentos bem inferiores aos míticos € 860 euros mensais, que as estatísticas lhes atribuem. Para quem, por estas coisas se interesse, poderei acrescentar que, em 2004, na Comunidade Europeia, a relação entre os 20% dos rendimentos mais altos e os 20% dos rendimentos mais baixos foi de 4,8 e que, em Portugal, essa mesma relação era de 7,2 com tendência para entre nós se agravar ainda mais.

O salário mínimo, apesar da euforias do último aumento, fica-se em 2007, apenas em € 403 euros, com a previsão de € 500 euros no ano de 2011, longe, portanto, dos valores praticados em países europeus, com níveis de desenvolvimento mais próximos do nosso e cujos padrões de vida tanto invejamos, como a Espanha ou a Grécia.

Rendimentos reconhecidamente baixos para a generalidade das famílias portuguesas. Porém, nunca como agora as grandes catedrais de consumo foram tão prósperas, alimentadas pelo vórtice do crédito e pela alienante febre consumista que impregna os interstícios mais íntimos das relações sociais. Religião, cultura, divertimento, festa ou convívio são imolados na ara do consumo, como se a ilusão dos sinais de “ter” fosse sinónimo de “ser”...

O tímido crescimento da economia, que tanto empolga o Governo, esvai-se assim neste equívoco de uma economia distorcida, que se alimenta do crédito, mais que da produção, da especulação financeira, mais do que da eficiência do aparelho produtivo. Interrogo-me, por vezes, como será possível substituir, autonomamente, quando, no nosso País, o endividamento médio por pessoa é superior ao seu rendimento. De facto, as estimativas de endividamento dos portugueses apontam, para 2006, valores da ordem de € 145.599 milhões de euros, enquanto o valor do rendimento disponível será apenas de € 110.398 milhões de euros.

Claro que tudo é relativo. Na relatividade das coisas, Portugal é um país rico. Porque verdadeiramente pobres são os outros. Calcula-se que, hoje em dia, 800 milhões de pessoas sejam, em todo o Mundo, vítimas de subnutrição crónica. Morre-se de fome na Etiópia, na Eritréia, na Somália e no Uganda. E aqui, mesmo ao lado da anafada Europa, morre-se de fome na Mongólia, na Arménia, na Geórgia ou no Afeganistão...

E há também a guerra, o racismo e o genocídio. Dados da Organização Mundial de Saúde salientam que, ao longo do Séc. XX, os conflitos armados provocaram a morte a mais de 200 milhões de pessoas, drama aliás que se prolonga pelo Séc. XXI adentro, já que tudo permanece na mesma, senão pior. A antigos males outros se juntam. Como a cereja no bolo das desgraças mundiais surgem, prementes, as questões da sustentabilidade do ecossistema Terra. A não se tomarem medidas drásticas, por todos os governos, no sentido de se travarem as emissões de gases poluentes e se controlar o efeito de estufa, a temperatura global poderá aumentar indefinidamente, provocando a maior das catástrofes que alguma vez ocorreram no planeta.

Corremos, pois, passo a passo (de caracol ou de lebre) para o abismo?!...

Procuro manter-me, saudavelmente, no registo de “pessimista da razão e optimista da vontade”. Sei que os problemas genericamente enunciados ganham progressivamente raízes na consciência dos Povos e que, por esse Mundo fora, milhares de pessoas anónimas lutam e trabalham em prol de um Mundo mais justo e solidário. Sei que um outro sistema económico e social é possível, por vontade dos Povos. Sei que no devir histórico há avanços e recuos...

Mas confesso o meu desgosto, quando, no meu País, o primeiro ministro de um Governo, que se proclama socialista, afirma que “em 2006 as coisas começaram finalmente a melhorar”, sem uma referência sequer às dezenas de milhares de postos de trabalho destruídos ou sem qualquer menção aos mais de dois milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar de pobreza...

Enfim, não há “melhoras” no meu País, enquanto for possível morrer-se, em naufrágio, a vinte metros da praia, cujo drama assume a força de um simbólico ...

Votos de Bom Ano. Apesar de tudo...

21 comentários:

Bandida disse...

passos tão grandes

ou tão curtos.








Bom Ano!






B.
_____________________

M. disse...

Tens razão.

Licínia Quitério disse...

"O barco ali a uns metros do cais e a ponte recolhida..."
Isto escrevinhei eu há tempos num poema. Dele me lembrei ao ler o teu texto. Tempo incrível este em que as palavras oficiais nos doem porque não somos imbecis, amorfos e conformados .
Felizmente há um (pelo menos um) Herético.

Abraço de ano novo.

vida de vidro disse...

Triste, não é? Tão triste que até o champanhe sabe mal e as passas perdem o doce. E, passo a passo, caminhamos para anos de incerteza, sem grande esperança, mau grado os discursos oficiais.
Bom Ano, apesar de tudo! **

Peter disse...

NÚMEROS

Em Dezembro, os portugueses gastaram em prendas de Natal:

1.000 €/segundo

Sim, leram bem. São 160 milhões €/dia.
Gastámos mais 30 milhões € que em 2006.
Crise? Onde está a crise? Onde vão estas pessoas buscar o dinheiro?

É melhor ficar por aqui ...

disse...

Como desabafou o Paulo do 2 Rosas
“Porra 2007 só trás promessas para 2008”

hfm disse...

Apesar de tudo... bom ano!

JPD disse...

O conjunto de países que formam a Europa, sobretudo os 27 que agora integrama UE desde o dia 1 de Janº 2007, desenham uma área geográfica onde o desiquilíbrio de rendimentos, sendo preocupante, não deixa de ser o menos severo.
É certo que existe na Europa muita pobreza; as medidads tomadas no âmbito da solidariedade social, no esforço de igualdade de oportunidades estão longe de ser bem sucedidas, até de amenizar o problema. Sabemos tudo isso, lemos, ouvimos, vemos. Não podemos ignorar. Apesar disso -- o que escrever a seguir não escaoteia a realidade -- a Europa ainda é a zona do globo onde as desigualdades menos pesam, apesar da violência do quotidiano de milhões de pessoas por esses continentes fora.
A comunicação de Sócrates é tão equívoca quanto a esquizofrenia comportamental de imensa gente. Tanto no Natal como no final do anos, cometaram-se exageros que não só se repetem de ano para ano, como pior do que isso, parecem suplantar cada ciclo.
Eu sei que muita gente que aparece nos noticiários da TV não constituirá uma fidedigna representação sociológica. Nas festas promovidas pelas CMunicipais encontram-se muitas famílias com dificuldade. Na soutras, encontrar-se-ão muita representação...Digo eu!
Concluindo, acho que o teu texto está magnífico.
Um abraço

osangue / PR disse...

Na vida como em tudo. Bom dia.

Anónimo disse...

Olá, Amigo
Aqui está um texto magnífico com uma análise objectiva da realidade que nos cerca. Na verdade a fúria consumista que parece ter-se apoderado dos portugueses, não significa - ao contrário do que análises supérfluas ou mal intencionadas pretendem - que "a vida afinal não está assim tão má". Pelo contrário, é um sinal inquietante da falta de perspectiva das pessoas, lançadas num abismo de ruina sem esperaça de regresso e a quem tanto faz dever cem como mil.
E essa dos pescadores afogados à beira da praia, gritando durante horas pelo socorro que não chegou, é simplesmnete estarrecedor.
E nós, cá vamos indo..
è um desgosto tudo isto!
Um abraço

Isabel disse...

Eles veem os números, a maioria anda cego e quem vê como tu, como eu, como espero que cada vez mais alguns de nós entristecemo-nos.
Pobre pais.
Tantos pedindo socorro e ninguem acode.

A economia está a melhor dizem na televisão.

Que dirão os que perderam o emprego?
Que dirão os que não conseguem arranjar um?
Que dirão os que não conseguem viver com o que ganham?
Que dirão os sem abrigo?
Que dirão os com fome e frio?
Que dirão os que estavam no barco acenando?

Gostei desta visita herético.

Passo a passo voltarei.

Isabel

david santos disse...

Olá!
Este passo a passo está espectacular.
Até sempre

Unknown disse...

Verdade nua e crua.
2007 só traz promessas para 2020 ! ;)
Pois então : Bom 2007 !

uivomania disse...

Duas frases que retive: "Assim, dada a enorme concentração do rendimento disponível nas mãos de uns poucos...", e, "Sei, que um outro sistema económico e social é possível por vontade dos povos."
Sobre a primeira, e já que estamos numa de números, bem que podemos dividir a humanidade em três grupos:
1º-, 5 biliões de pessoas, que vivem com 17% do produto bruto mundial.
2º-, 1 bilião, a chamada civilização ocidental (Portugal incluído), vive com 83%!
3º-, algumas centenas de famílias espalhadas por todo o lado, vivem com mais de 70%!...
Já todos vimos, que estas assimetrias são perigosas e incomportáveis. Dos 5 biliões de miseráveis, muitos avançam desertos afora em busca de terras de leite e mel, invadem, fazem periclitar, segregados, revoltados, sem nada a perder... dispôem-se a matar ou morrer.
Escassas centenas de famílias, sentem o seu modo de viver ameaçado e, pedem-nos a nós (civilização ocidental, recém escravos libertados com direitos que consideravamos adquiridos) que paguemos as assimetrias, o desiquilíbrio, que renunciemos a conquistas, enquanto eles, ferram os cordões à bolsa e doentiamente sonham em ter mais!...
Depois, dizes: sei que um outro sistema económico e social é possível por vontade dos povos...
Realmente, assim seria, não fosse o bilião com peso suficiente para ser levado em conta, estar cego surdo e mudo, hipnotizado com o ordenado do Figo, com as façanhas da Floribela... vendido para poder comprar, poder disfrutar e ter poder, iludido em pertencer a um clube de ricos que o vai proteger, esperançado que o balde de merda a fermentar lhe não caia em cima.

batista filho disse...

nqob“Sei que no devir histórico há avanços e recuos...”

Dentre outros cuidados que não podemos descuidar é que nossa esperança e capacidade de trabalho coletivo apresentem mais avanços que recuos.

Mais que boas intenções salvacionistas, discursos caquéticos e hipócritas - é no dia-a-dia, nos pequenos gestos das pessoas que olham nos olhos, que se reconhecem iguais -, que a utopia se materializa... sem estardalhaço, sem foguetes, mas com sorrisos, por vezes tímidos, mas sorrisos francos.

Teu espaço, meu amigo, exemplo de ação concreta.

Deixo o meu abraço fraterno, pois eu também...

“Procuro manter-me, saudavelmente, no registo de “pessimista da razão e optimista da vontade”.

Anónimo disse...

sem palavras porque mas tiraste da boca.

ainda bem que o mundo não é só de ignorantes e de intelectuais passivos.

se me queres conhecer vai ao meu cantinho.

Dafne disse...

Passei para dar um olá, mandar um beijinho e desejar um Bom Ano de 2007.

damularussa disse...

Porque não anunciam eles, com o mesmo ar de satisfação que há quem viva com apenas 1 euro por dia, para comer e beber, Chamar-lhe-ão económicos? Gostaria de os ver tentar fazer o mesmo..bom, dar-lhe-ia mais 3 euros para não se sentirem ricos.
Excelente post, acutilante q.b, realista!

Abraços

Anónimo disse...

Passei para ver como ia o Ano Novo, e com agrado constato que a qualidade é a de sempre, igual ao ano anterior, sendo imprescindível vir aqui. Resta desejar Bom Ano e óptima semana, e já agora, faça o favor de ser feliz.

Flor de Tília disse...

Uns com tanto e outros com tão pouco!E passo a passo vamos caminhando para o abismo.O fosso entre os que tudo têm e aqueles que comem migalhas é cada vez maior.E vão-nos entretendo com as médias. Felizmente muitos de nós já temos os olhos bem abertos.
Beijos

jguerra disse...

Mas quem ficou eufórico a saber que até 2010 o salário mínimo passava para 500€??
Eu fico pasmo com a incultura... em 2010 os preços estarão como? Terão subido quanto?
Enfim, desculpa o desabafo.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...