domingo, fevereiro 04, 2007

Uma "crassa asneira"...

Consta por aí que o primeiro ministro, em debate parlamentar, terá deixando cair, visando o senhor Cravinho, deputado da República e personalidade de largo currículo, que as suas propostas de lei sobre o combate à corrupção, seriam, em aspectos decisivos, uma “asneira”...

Entretanto, também o senhor Pacheco Pereira, comentando a decomposição da Câmara Municipal de Lisboa, sujeita a investigação policial, a que não escapa o próprio presidente, com uma vereadora e altos quadros da administração municipal constituídos arguidos em processo de corrupção, terá desabafado que “o PSD até hoje na Câmara de Lisboa só fez asneiras” (DN – de 01.02.07, pág.13.).

Temos, pois, que dois dos mais altos expoentes da política nacional, com indiscutível influência na modelação da sociedade portuguesa, (quer por força da acção governativa, quer por força da opinião publicada), erguem a “asneira” como categoria significante no léxico político.

Claro os políticos se dão, por vezes, ao luxo de “asnear”. Quem o não sabe?!... Julgo, porém, que esta irrupção, no espaço político, de um certo desbragamento do discurso, não engrandece a política e os seus agentes. Enfim, parece que os nossos políticos (teóricos e práticos), teimam em empurrar-nos para uma espécie de “grau zero” do discurso, onde o “sentido” (nobre) da política é evacuado em nome do “efeito” mediático da palavra vazia...

Procurarei ser mais claro. É sabido que um dos factores que acentuam os sintomas de crise da democracia representativa reside naquilo a que alguns autores designam pela “captura do poder de sufrágio”, querendo com isso significar que o poder, assente no conceito de soberania popular, acaba por ser “aprisionado” pelos interesses mais poderosos da sociedade. Nos alvores da democracia representativa eram práticas como o caciquismo, o voto de “cabresto”, a falsificação dos cadastros, o voto dos mortos ou os diversos compadrios políticos, que mantinham à tona os mesmos interesses, pessoas e grupos.

Entretanto, estes métodos refinaram. Hoje, os mesmos objectivos estão presentes no financiamento do partidos, na sofisticação do marketing, na osmose entre a política e os interesses económicos, nos custos financeiros das companhas eleitorais, etc. etc., podendo, certamente, afirmar-se que o paradigma da “captura do poder de sufrágio” se mantém, ainda mais vivo e actuante que há um século ou dois atrás.

Tanto quanto me é dado compreender, é neste fenómeno, inerente ao funcionamento da democracia representativa, que residem o gérmen e o caldo de cultura, onde a corrupção viceja. Por mais e melhores leis que a República produza, serão sempre os homens a aplicá-las. O impoluto Catão, em Roma, acabou mal, como se sabe; e, hoje, mais do que nunca, os tempos não estão de feição para políticos impolutos...

E, assim, emerge, ao que julgo, o cerne da questão, ou seja, a fiscalização e o controlo democrático de exercício do poder, como elemento essencial do regular funcionamento das instituições, acima de quaisquer interesses privados. Como a natureza humana é aquilo que é e, como diz o Povo, “a ocasião faz o ladrão”, imaginem o regabofe que seria (ou teria sido), se a Câmara Municipal de Lisboa não tivesse composição plural, ou seja, se o seu funcionamento não pudesse ser permanente escrutinado e participado pelas forças políticas da oposição...

A verdade, porém, é que, quer o PS, quer o PSD, têm anunciado projectos de lei que subvertem completamente o funcionamento das Câmaras Municipais e a sua composição plural. Fundamentalmente, o que está em causa nesses projectos de lei, é eliminar o direito das populações a elegerem directamente os seus mandatários naquele órgão autárquico, ao atribuir ao cidadão eleito para o cargo de presidente da Câmara o poder absoluto de escolha dos vereadores, naturalmente, da mesma cor política.

Parece evidente, que a promiscuidade entre os interesses económicos e a actividade autárquica, terá melhores condições de germinar, quando apenas uma única força política exerce, sem controlo efectivo, os momentos cruciais das decisões políticas e administrativas.

Sendo assim, porquê, então, manter estes projectos legislativos?! O senhor primeiro ministro, na sua fogosa intervenção, nada esclarece sobre este candente tema e, também, sobre o assunto, o senhor Pacheco Pereira nada diz, apesar da sua qualificada (e escutada) opinião.

Perante a realidade que nos cerca, não será “crassa asneira” aprová-los?!...

19 comentários:

Lord of Erewhon disse...

Concordo... mas não chamaria a nenhum dos dois «altos expoentes da política nacional»...
Primeiro, porque não há política nacional; segundo, porque são ambos baixotes... :)

Abraço.

António Melenas disse...

É asneira, e é da grossa. Do ponto de vista do interesse nacional, claro. Acontece porém que o interesse (os interesses) desses senhores não coincide exactamente com o da maioria da população. Entre ambos existe um desfasamento que tais senhores se empemham alegremente em aprofundar. Explêndida a tua análise. Belo regresso.
PS. Há aqui um problema. Não consigo comentar neste blogue, nem como "blogger", nem como "other"
Vou experimentar como anónimo
António Melenas
http://escritosoutonais.blogspot.com
Um abraço

António Melenas disse...

Tal tá a moenga!!!!
Afinal também nem como anónimo entrou e... finalmente acabou, ap´+os muitas tentativas, por entra como "blogger" Vá lá
perceber isto!

mjm disse...

A cada "imo" se acrescenta um "ista"...
E vai-se a ler, está aqui um belo cronista! :-)

--
Acabadinha de sair do "Scoop", perdoar-me-ás a citação (de memória:
"
- Sim, sou católica. E o senhor?
- Eu provenho de antecedentes judaístas, depois pelos catolicistas, e agora sou egocentrista..."

--
Sem usar de politiquismos, como não ser-se politiquista?! ;-)

Um abraço

vida de vidro disse...

E as asneiras são tantas, todos os dias... Se há algo de que este país não se pode queixar é da falta de asneira. Sem aspas,é asneira mesmo.
Ainda bem que voltaste. Faz falta este acordar de consciências. **

batista filho disse...

Fico feliz com teu regresso. Nosso espaço fica bem mais pobre sem a tua presença.

Dizes de um texto que gostarias publicado fosse em teu espaço, é isso mesmo? Em assim sendo: qual ou sobre o quê?

Meu amigo: o texto de 23/01/2007, “Bote preço”, foi/é dedicado a ti e a Taís. Não de dar uma passadinha d'olhos, certo? rss!
Um abraço fraterno,

Batista

JPD disse...

Formalmente, estamos em democracia há mais de 30 anos.
Quotidianamente, praticamos pouco.

O plurar refere todos, instituições, particulares, todos.

A eleição dos órgãos de representação está inquinada por múltiplas suspeitas, muitas confirmações de falata de ética, desbragados escândalos e negociatas.

Os eleitos prometeram e não cumprirão as promessas; não levaraão o mandato até ao fim; anseiam por chegar a senadores para dizer de quem ainda está a exercer que a «asneira» substituiu o mérito e o interesse público.
estes num "certo" topo, vogando. Em baixo, escarnecendo, odiando, o povo gritando fúrias e ódios tremendos e acusando os residentes em cargos de incompetências inabaláveis.

Poderia esta situação desembocar numa ditadura? Há quem diga que o chapéu de chuva de Bruxelas nos protege dessa tragédia.

Signifique o que significar, Salazar e Cunhal estão à frente dos nomeáveis!

A regulação democrática ainda funciona, é certo. Mas é ou não preocupante o precário relacionamento entre os òrgãos de Soberania?
A resposta é óbvia.

(Belo post, amigo)
Um abraço

batista filho disse...

errata: "não deixes de dar uma passadinha d'olhos, certo? rss!"

Licínia Quitério disse...

E essas prática da promiscuidade, do uso e abuso do discurso vazio de sentido e recheado de palavras que são muros agrestes e nunca pontes, essa concentração de poderes autoritários e corruptos, vêm fazendo escola. Muitos são os aprendizes de feiticeiro que tentam expulsar os impolutos que os atrapalham. E isto verificamos até nas aparentemente insignificantes capelinhas onde ditadorzecos se põem em bicos de pés, abafando vozes incómodas e inviabilizando projectos sérios e generosos.
As tuas análises têm o condão de me fazer desatar a língua, melhor dizendo, de teclar com alguma fúria.

Bem vindo, sempre.

Bernardo Kolbl disse...

Cumprimentos da família PR. O primo.

Peter disse...

Aprecio imenso os teus escritos políticos porque vais sempre ao cerne da questão.

Não podemos esquecer, ninguém pode esquecer, que o estado deplorável em que nos encontramos são o resultado de 20 (?) anos de governos socialistas, ou sociais-democratas, ou "pseudos" uma coisa e outra.

O problema é que nos esquecemos.

Paulo disse...

Concordo.

Abraço
Paulo

Bernardo Kolbl disse...

Bom dia.

Diafragma disse...

Mais um belo "acorda-marasmos"!
De facto, e como diz o JPD, ainda começamos a ra os primeiros passos na democracia.
Já agora e a propósito de Câmaras Muncipais. Contou-me um colega brasileiro que, na cidade dele, o Presidente da Câmara (que tem lá outro nome) depois de eleito, tem uma reunião com um organismo representativo dos residentes para acertarem as prioridades de investimento na sua cidade!

M. disse...

Mais uma vez a inquietação do teu pensamento nos agarrou. Só temos a agradecer que nos espevites. Isso tenho eu a certeza que não é nunca asneira alguma...

Klatuu o embuçado disse...

Anões da política!

hfm disse...

Duma maneira geral estou completamente de acordo.

Há, contudo, um ponto que tenho de ressalvar - certa forma de falar, de descrer, de indiferença vem dessa "refinação" onde se esconde o vazio em que esses senhores se acoitam.

Às vezes é preciso gritar!

Cris disse...

Acho que sim, bute asnear-los!!!
Já não há pachorra para a dita asneira!!!!

Cris

JM disse...

Eu diria que os políticos já nem se dão ao trabalho de tomar cuidados para não "asnearem" tão vulgar isso se tornou e tão complacentes somos todos nós perante esse facto, tomando-o já como uma inevitabilidade.
Quando virá o dia em o povo acorda?
Um abraço

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