terça-feira, maio 29, 2007

Razões de sobra para a Greve Geral...

Com insistência de picareta, uma frase teima em moer-me. “O Mundo está perigoso”, dizia Victor da Cunha Rego nas suas celebradas crónicas “os dias de amanhã”, que durante anos subscreveu no “Diário de Notícias”. Jornalista da velha guarda e inabalável defensor da democracia portuguesa, os seus apontamentos eram de grande lucidez, que, em muitos aspectos antecipavam, o curso da nossa vida colectiva. Que excelentes crónicas se perdem, com a sua falta...

Escrevo assim, em plena consciência das minhas limitações, impressionado pelos mais recentes sintomas de degradação da nossa democracia. Como admitir-se, por exemplo, que a delação constitua fundamento de procedimento disciplinar, no âmbito da administração pública?!...

Refiro-me, como por certo advinham, aos lamentáveis práticas, que a comunicação social refere estarem a passar-se na Delegação Regional do Porto, do Ministério da Educação. Não entro na discussão de detalhes. Basta-me a génese: a delação e o “zelo” dos poderes subalternos em agradar aos chefes... Será que teremos regressado práticas de “bufaria” de má memória e ao espírito “pidesco” que enegreceram anos da nossa vida colectiva?!...

A questão é tanto mais relevante quanto é certo que o próprio Governo não tem pudor em entrar nesta pulsão autocrática de limitação das liberdades cívicas. O despacho do Ministro das Finanças sobre as listas dos funcionários públicos que entrem na greve geral de amanhã é eloquente. Determina o Ministro a criação de uma base de dados para inscrição na Internet com o “número total de trabalhadores e o número total de trabalhadores ausentes por motivo de greve”, sendo que a determinação de Sua Excelência deverá ser cumprida até às 11,30 horas de cada dia de greve, com actualizações, até ás 16 horas, do mesmo dia...

Estranhas medidas estas. De facto, ao arrepio da Constituição da República e da lei da greve, o despacho do Ministro tem como pressuposto que os trabalhadores sejam obrigados a informar se aderem ou não à paralisação. O que não corresponde nem ao espírito e letra das leis da República. Assim, apenas numa perspectiva de intimidação, se pode compreender este afã controleiro do Ministro, pois não impendendo sobre os trabalhadores o dever de informação, às 11.30 da cada dia não poderão os serviços da administração pública concluir os motivos da ausência dos funcionários: se por motivo de greve ou qualquer outro...

Trata-se de uma lista numérica e não nominativa, dir-me-ão - parecendo ser essa a argumentação do Governo – pelo que, não sendo conhecidos os nomes dos funcionários abrangidos, estará salvaguardado o direito individual de cada um poder ou não aderir greve geral. Será?!...

Pois bem, será concebível que os serviços da Administração Pública, em dia de eleições, promova a organização de listas dos funcionários que pretendam exercer o seu direito de voto? Não neste ou naquele partido, mas o exercício do direito de voto, simplesmente... Seria considerado uma aberração democrática, sem dúvida!...

Pois, “mutatis mutantis” é o que acontece no caso - uma aberração democrática! Na realidade o direito à greve e o direito de sufrágio têm exactamente a mesma dignidade constitucional. Um e outro estão incluídos no mesmo acerbo de direitos, liberdades e garantias, que o Estado de direito deverá respeitar e promover e que a Constituição da República Portuguesa consagra no seu Título II, sob a epígrafe, exactamente, de “direitos, liberdades e garantias”.

E que, portanto, deverão ser exercidos em plena liberdade de juízo pessoal, sem interferências ou limitações dos governos ou quaisquer outras...

Parece pois óbvia que esta ânsia do Governo em pretender, antes de tempo, conhecer o número dos trabalhadores em greve, mais não foi que uma inadmissível intimidação (por certo vã) com objectivo de procurar impedir os funcionários públicos do seu legítimo direito à greve...

Outras razões não houvessem, seriam razões de sobra para se ser solidário com a greve geral, declarada e promovida pela Confederação Geral do Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional!...

O Mundo está perigoso, de facto!...

7 comentários:

Unknown disse...

O Mundo está mesmo perigoso, meu amigo...
Sabes o que me parece? Que vivemos numa ditadura mascarada de democracia. Cada vez com menos direitos e mais deveres...

Um beijinho grande

Licínia Quitério disse...

Sob o manto diáfano da democracia a nudez forte da ditadura.

Abraço.

vida de vidro disse...

A cena da base de dados parece que foi chumbada pela Comissão da Protecção de Dados, o que convenientemente só se soube ontem. Obviamente isso não invalida a intenção de quem nos governa.
Entretanto, a questão da definição dos serviços mínimos, desta vez ultrapassou todos os limites. Intimidação pura.
Razões de sobra para ter feito greve. Eu também achei. Por isso, fiz. **

Anónimo disse...

minha solidariedade e abraço fraterno a todos vós, amigas, amigos além mar.

batista filho

Maria disse...

Sem dúvida, razões de sobra.
Mas fiquei tão chocada com o despudor dos nossos governantes quando, à noite, fizeram a pseudo-análise da greve, e avançaram com as percentagens que todos ouvimos nas notícias...
Esta falta de vergonha ultrapassou todos os limites do razoável. Todos.

Beijinhos

JM disse...

Pois é... contra este estado de coisas e as coisas deste Estado parecemos estar cada vez mais indefesos... arremessemos cocktails 'molotov'de sarcasmo e ironia... combatamos a delação com a denúncia... façamos também greve à voz passiva com piqetes de voz activa.

Um abraço ;)

Jorge Castro (OrCa) disse...

A coisa anda, na verdade, muito enegrecida... apenas para não dizer que está preta de todo - haja résteas de esperança e nichos de combate.

Lamentei, entretanto, profundamente que esta não tivesse sido uma acção conjunta das forças sindicais em presença. Há muito aprendi ser determinante, em política, definir o inimigo principal... e, daí, partir para a contagem das nossas forças, mais nucleares ou mais acessórias, mas com um inimigo comum.

Nem sempre tal é exequível em situações extremas. Mas nem a situação é (ainda) extrema, nem os demais companheiros de caminhada serão tão poucos que não sejam importantes.

E o culto da divergência quando o "inimigo" é tão óbvio quanto consensual parece-me um lamentável desperdício de forças.

É este um comentário lateral, meu caro, suscitado pelo tema que nos trazes e que em nada colide com o que deixas dito.

Um grande abraço.

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