terça-feira, março 25, 2008

"O Tecido do Diabo"...

Sabemos que o traje faz o monge, ou que quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. Por outras palavras, o vestuário “fala” de nós e a moda é uma linguagem, a exprimir pulsões, desejos e interdições, individuais ou colectivas, explicitando tantas vezes o inconsciente na afirmação do gosto e das formas escolhidas, ou revelando as margens subversivas das atitudes públicas...

Com Barthes, (entre outros) aprendemos que todas as coisas “significam” e o mundo é uma linguagem ávida de decifrações: na arte, na política, na literatura, na música, na cozinha, no desporto...

Desde confins da Idade Média, as riscas transversais nas peças de vestuário – “o tecido do diabo” – tem uma explosiva carga simbólica, que apesar das múltiplas transmutações de sentido ao longo da história, ainda hoje se encontram impregnadas de múltiplas significações.

Deixaram de ser diabólicas, mas as riscas permanecem, como marca desvalorizante e, como tal, exibi-las, sobretudo no corpo, é ainda acto de “escândalo”, ou pretexto e estímulo de transgressão. Enfim, o “tecido do diabo” é manifestamente subversivo...

Dispenso-vos da longa itinerância das significações dos tecidos listrados. Limito-me a referir alguns dos aspectos mais marcantes...

A partir de meados do Séc. XIII, a longa lista de personagens (necessariamente más”), vestidas de riscas horizontais englobava todos aqueles que eram colocados fora da ordem social, quer devido a uma condenação (falsários, falsos moedeiros, perjuros, etc.), quer em virtude de enfermidades (leprosos, sarnentos, pobres de espírito, loucos), quer os que exerciam uma profissão inferior (lacaios, criados) ou profissão infamante (jograis, prostitutas, carrascos, ferreiros - que são feiticeiros! – carniceiros – que são sanguinários! – moleiros – que são armazenistas e causadores de fome!).

Todos estes indivíduos, por razões diversas, transgrediam a ordem social, “como a risca transgride a ordem cromática e a ordem do vestuário”.

Na heráldica, os escudos e brasões listrados são quase todos testemunhos de valores “negativos” e atribuídos a cavaleiros desleais, a príncipes usurpadores e aqueles cujo comportamento é cruel, desonesto ou ímpio... No Antigo Regime, a risca vertical torna-se aristocrática, enquanto a risca horizontal continua servil e infamante...

Tudo muda a partir de 1775. Com a revolução americana, a risca invade o universo do vestuário, da decoração e dos emblemas. É o início a risca romântica e revolucionária, nascida no Novo Mundo, mas que breve se expande a Europa, onde encontra terreno fértil, como símbolo de liberdade e ideias novas...

A bandeira “tricolor” é um tecido listrado... Esta qualidade nova, perdura até nossos dias, sem que, no entanto, a risca má desapareça. Bastará, a propósito, lembrar as riscas nos uniformes penitenciários. E, por outro lado, não é verdade, que tantas vezes riscamos de nossas vidas aquilo (ou quem) que nos faz mal, ou quem simplesmente nos é incómodo?...

Quer dizer, portanto, que hoje em dia, as riscas poderão ser valorizantes ou desvalorizantes, mas nunca serão neutras. Diz-se que Picasso, iconoclasta e subversivo, gostava de se exibir vestido de riscas e proclamar alto e bom som que, para boa pintura fazer, era necessário suar as estopinhas, em francês “se zébrer le cul” (à letra, “zebrar” o cú).

Adiantando caminho: o significado das riscas não desapareceu nos nossos dias. Já não designa o Diabo, como na Idade Média. Mas evoca, ainda o perigo (nos sinais de trânsito) e mantém a sua marca de exclusão, transgressiva da ordem e dos valores dominantes, quer na moda, quer na política, que em outras esferas sociais.

Recordo, por exemplo, o ineditismo do presidente da Bolívia, o cocalero Evo Morales, que tomou posse do seu cargo com as coloridas vestes da sua origem ameríndia e da etnia aymará. E levou a ousadia do gesto, ao ponto de ser recebido nas capitais europeias, não de casaca ou smoking, nem sequer de fato e gravata, mas com de vistosa camisola listrada com as cores de seu País...

(Em contraponto, lembram-se, porventura, de Sócrates na suas "corridinhas"?! Tão asséptico que ele corre!...)

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Na falta de melhor inspiração, depois das amêndoas da Páscoa, deixo-vos este texto, vagamente herético, inspirado na leitura do livrinho “O tecido do Diabo – uma história de riscas e dos tecidos riscados" - Michel Pastoureau – Editorial Estampa.

27 comentários:

SILÊNCIO CULPADO disse...

Herético
Como sempre os teus posts são profundamente didácticos e bem suportados no rigor histórico.
Nunca tinha pensado na história das riscas mas penso muitas vezes em como a sociedade procura através do poder e dos seus privilegiados, fabricar símbolos de diferenciação.

Um abraço

Oliver Pickwick disse...

Também li, é um livro curioso. De fato, as listras do Evo nada tem de diabólicas. Mas, não se impressione com o sorriso de alguns dirigentes de nações chiques, alguns deles vêem nessas cores berrantes algo similar à uma atração zoológica. Afinal, todos sabem que os Mefistófeles e Belfagores de hoje em dia não usam mais listras. Não é verdade que eles usam Prada?
Abraços!

mdsol disse...

Gostei muito de ler o texto...
Ainda bem que as riscas do FCP não são horizontais eheheh
:))

jawaa disse...

De corrida por aqui deparei-me com mais um belo texto. Deste-me que pensar, gosto de ler o que escreves.
Obrigada pela sugestão de leitura.
Um abraço do meio da neve.

hfm disse...

E que bela ideia! Gostei destas referências. Do asséptico é que já estou muito farta... da política, à ASAE, passando pelas não-conversas e por outro rol infindável de pormaiores.

Unknown disse...

Regressaste!...
E com um texto muito peculiar.

Acordou-me, deste meu cansaço, que mais parecia doença!...

As riscas e as marcas...
As riscas e a diferença...
A diferença parece sempre assustadora. Há que marcá-la. Há que "riscá-la".

Já agora, há que pensá-la como a marca do Diabo...
O Diabo tem as costas largas.
Provavelmente, às riscas!...

O Deus é branco e imaculado...
Ou negro, quando castiga.

Bom regresso.
[BEIJO]

Graça Pires disse...

Curioso. Riscas e riscados. Horizontais. Verticais. De Deus e do Diabo...
Um abraço.

hora tardia disse...

e o mundo é uma linguagem ávida de decifrações: na arte, na política, na literatura, na música,

___________cito-te.


para que venha o diabo tecer as malhas de um deus qualquer.

.


beijo.

Maria Laura disse...

Então e o vestidinho de riscas que eu ia comprar? Não sei, tenho que pensar bem... :)

Como sempre, transmites-nos o teu conhecimento, duma forma agradável e acessível. Indispensável.

Paulo disse...

Mostra-me a tua roupa interior e eu dirte-ei quem és!
Que "zebras" padronizarão a roupa interior de Sócrates, Paulo Portas, José Castelo Branco e David Motta?
Certamente em nada se comparam aos efeitos da colecção de gravatas do saudoso magistrado Maximiano (ex-inspector geral da Administração Interna)...
Havera algum nexo de causalidade entre o "inferno" das Estradas Portuguesas com as "riscas" das passadeiras para piões?
Abraço
Paulo

mdsol disse...

gostei mesmo do comentário lá no meu cantito
Autenticas riscas verticais ...

:))

Isabel disse...

Primeiro quero agradecer-te as palavras que anotaste no meu Bloco; não estou certa que as mereça.

Deixaste-me aqui uma sugestão de leitura que muito gostava de fazer mas o tempo tem sido tão curto; mas o texto está fantástico, como é costume.

Bjt

CC disse...

Bela abordagem.

Grande abraço.

Frioleiras disse...

caro Amigo,
confesso que mal te li (ainda....)pq cheguei recentemente...
venho só agradecer a tua visita lá ao meu "canto".

Dp volto.....

(apenas te digo que fui e vou sp à missa em alemão, no Dom. de Páscoa, às 9:30 na catedral de Salz. ... Sp ao som da missa da coroação de Haydn (que gosto mais do q mozart). Ficaste zangado???? por isso?...

Licínia Quitério disse...

Mas eu sabia lá o significado das riscas... As de Deus, as do Diabo e as chamadas "em diagonal" que são as que mais me afligem: ora pendem para um lado, ora para o outro.

Abraço.

Unknown disse...

As riscas em diagonal...?

Bem pensado!... E essas, hem?

Não serão o resultado daqueles entendimentos tácitos entre Deus e o Diabo...?

Sim, porque o que seria Um sem o Outro?

Com quem conversariam dois "entes" tão transcendentes?

Afinal, o assunto é sério: para que lado tombam as riscas em diagonal!...

O melhor é sair debaixo!

Justine disse...

E eu que gosto tanto de me vestir de riscas - verticais, horizontais, tanto faz! Será que estou possessa do diabo?? :))
Texto excelente, informação muito interessante!
Abraço

O Jacaré 007 disse...

Só hoje fiquei a saber porque não sou do Sporting.
Haja Deus.

o Reverso disse...

é engraçado que nunca consigo ligar a pessoa que elabora os posts do teu blog à pessoa que deixa comentários no meu: diria serem duas pessoas diferentes.

dupla personalidade?

um abraço.

Isamar disse...

Gostei de ler esta história das riscas tão bem contada e sempre com tanta eloquência. E lembrei-me que os presidiários vestiam de riscas e viam o mundo aos quadradrinhos.E para estes, tens história? Há muita mente quadradinha por aí.Por aqui, há uma mente lisa, clara, objectiva.Estou a falar da tua.
Beijinhosssss

Carla disse...

imagina o que fizeste: de cada vez que pensar usar riscas pensarei certamente no teor do teu post;D
bom fim de semana
beijos em desalinho

M. disse...

E eu que adoro riscas! Agora não sei como escolhê-las. Venha o diabo e escolha...

São disse...

Que interessante : eu não sabia desta maldição sobre as risca...
Bom, não se pode saber tudo, não é?
O meu "bejinho" de gratidão para ti, que aumentaste os meus conhecimentos!!

un dress disse...

diabólico e ris ca do o tecido do diabo!! :)






beijO

PintoRibeiro disse...

http://suckandsmile.blogspot.com/2008/03/exemplar-de-amado-caniche-pequimns.html
Bom fim de semana.

manhã disse...

e os irmãos metralha, hein!? Interessante o texto e o tema!

velha gaiteira disse...

Caro amigo, creio que o habito não faz o monge!

Os meus amigos sempre mo disseram e repara , gostam mais de ver as moças com poucos hábitos do que com muitos!

Abração para ti

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