sábado, março 29, 2008

Um cidadão exemplar e a eterna espera dos comboios

O relógio da placa de desembarque da estação do Oriente, marcava 18 horas e 07 minutos. Era habitual ter que esperar um determinado comboio rápido, naquele horário e naquela estação, dez, quinze, vinte minutos, devidamente assinalados no painel electrónico, pelo que daquela vez estranhou a falta de informação adicional sobre o provável atraso. E o pacato cidadão, abrindo as comportas do seu optimismo impenitente, diz para os seus botões: - “Querem ver que, desta vez, o comboio cumpre o horário!...”

Mal houvera tempo de acariciar tão gratificante ideia e uma voz feminina, aliás agradável e bem timbrada, solta-se dos altifalantes, ecoando no branco-sujo da tarde e da espera : - “Senhores passageiros por motivo de avaria eléctrica entre as estações x e y, o combóio que tinha a sua hora de chegada prevista a esta estação às dezoito horas e sete minutos circula com atraso”...

Repetiu duas ou três vezes, a menina dos altifalantes, na sua voz aveludada e impessoal, com o correspondente pedido de desculpas “pelo incómodo causado” a informação, sem qualquer outro esclarecimento que pudesse atenuar a angústia da espera, já que proclamado atraso tanto poderia ser de alguns breves minutos, ou de horas ou – sabe-se lá! - ter a dimensão da eternidade...

Nos altaneiros painéis, também nada!... Lá continuava, gloriosa e seca, a indicação do horário oficial : 18 horas e 07 minutos!...

Que pode um cidadão fazer em semelhante emergência?!... Ou aceita paciente o seu destino, ou contraria a incomodidade, procurando saber o tempo disponível para o ocupar, de forma mais agradável do que percorrer, de um lado para o outro, a plataforma de desembarque duma estação dos caminhos-de-ferro...

Aliás, “ver passar os comboios”, como os leitores bem sabem, pode provocar vertigens perigosas. E, por enquanto, o pacato cidadão em causa não quer correr o risco de apanhar o primeiro comboio e nunca mais regressar, em desencantada imitação do “Homem Que Via Passar os Comboios”, tão brilhantemente descrito pelo escritor belga George Simenon... Eis, portanto, a razão íntima, por que desceu ao piso inferior, procurando indagar “de quem de direito” o tempo de previsível de atraso do comboio.

E, nestas coisas, há sempre que começar pelo princípio, sabido como é, de ciência certa, que ultrapassar, na cadeia do poder burocrático, um escalão, por pequeno que seja, queimar uma etapa, por irrisória que apresente, pode deitar por terra o paladino esforço de pretender, não melhor o mundo, mas tão só o modesto dever de emergir do caos...

À bilheteira, pois! - esse local mítico e (in)humano, aberto a todos os destinos e possibilidades. Felizmente, àquela hora havia pouca afluência. Que não, que não poderiam esclarecer, porém, metros adiante, encontraria o cidadão o “Gabinete do Utente (?)”, onde ficaria devidamente informado...

Agradeceu, então, como o melhor dos seus sorrisos, ao funcionário que o atendeu e seguiu, passos à frente, conforme indicado, para o reluzente e aprumado Gabinete do Utente.

Atravessou as portas envidraçadas, num estranho mal estar de quem pressente o seu estatuto de cidadão (embora pacato) degradar-se em simples utente e, à menina emoldurada em luzidia farda, que passados minutos se perfilou à sua frente, disse das razões da sua vinda, isto é, pretendia “saber qual o tempo previsível de atraso do comboio, que tinha a sua hora de chegada para ás 18 horas e 07 minutos, pois que...”

Preparava-se o pacato cidadão para aduzir razões, não sei se reais se inventadas, da sua vida pessoal para tornar mais premente a necessidade do esclarecimento, mas foi abruptamente interrompido, numa voz de falsete, deslocada naquele corpinho bem apessoado:

- “Então o senhor não ouvi os altifalantes?.. Se estivesse estado atento, saberia que se verificou uma avaria no sistema eléctrico...”

- “É justamente isso... – atalhou, num sorriso divertido o cidadão– o que pretendo saber é quanto tempo vou ter de estar à espera do comboio, já que os painéis de informação não esclarecem e a sua colega do microfone nada disse sobre o assunto...”

Que não sabia a hora da chegada, nem ninguém, naquelas condições, poderia desejar conhecer, mas ela “podia garantir que logo que a avaria fosse reparada os comboios entrariam de novo em circulação”, preparando-se a menina com voz de falsete para debitar, mais uma vez, a razão do atraso do comboio, que estava na avaria do sistema eléctrico...

- “Muito bem! – ironizou o cidadão – fico confortado com a ideia de que logo que a avaria esteja reparada os comboios voltarão a circular, mas há ainda um pequeno detalhe para esclarecer: qual o tempo previsível da reparação da avaria?!...E se a menina não tem essa previsão, faça o favor de a solicitar, pois não saio daqui sem ela ... “ – acentuou firme, num sorriso felino, o pacato cidadão...

Nesta fase do diálogo, a menina da reluzente farda, virou costas, balbuciando, por entre dentes, que não estaria para aturar não se sabe bem quem e desandou para o interior das instalações.

Resumindo, que o tempo não é elástico, nem a vossa paciência infinita: saiu, então, das alfurjas do Gabinete do Utente, um engravatado e distinto cavalheiro, que em roncar de mastim mal adestrado, se propunha “esclarecer de vez o assunto”, repetindo, “de uma vez por todas”, que não podia fornecer a informação solicitada sobre a hora de chegada do comboio e que, depois disso, o pacato cidadão sairia daquele espaço, “nem que fosse pela gola do casaco”...

Houve então necessidade de esclarecer o simpático cavalheiro, que cidadão em causa tinha carne velha e rija, pelo que, se fosse engolido, seria, necessariamente, muito indigesto;

que a empresa, com o atraso dos comboios, prestava mau serviço público, pelo que qualquer pessoa tem não só o direito, mas o dever de protestar;

que ele funcionário estava ao serviço dos passageiros e do público em geral, que não era dono daquele espaço e que tem o dever de tratar com urbanidade todos os ditos utentes, sendo certo que, no caso, apenas com firmeza, mas com correcção, foi pedida uma informação razoável...

E, afivelando o nó da gravata (que raramente usa) o pacato cidadão, saiu calmamente, não sem antes esclarecer que a comunicação social iria ter conhecimento do incidente.

Pasmem, criaturas! Momentos depois, gloriosamente, os painéis electrónicos anunciavam que o atraso do comboio seria de 40 minutos... Uma vitória de pirro?!.. Nem isso. Passaram de 40 para mais 40, os minutos, antes do comboio chegar...

-“Haja Deus!... Valha-nos a eterna espera dos comboios!...”, - desabafou para si, rendido, o pacato cidadão!...
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Bom fim-de-semana! Não percam a pacatez!... Caminhem a pé e por perto. Sem a espera de míticos comboios, que não há maneira de chegarem...

22 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

:) este post não faz tremer a paixão que tenho por comboios...:)

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embora reconheça que não sei mt bem como funcionam os de cá...
.

mas na tal de europa (tamos lá?) costumam funcionar bem depressa e super cómodos.

.

e assim como assim...vou. na espera exemplar.
votos de excelente fim de semana.

abraço.

Unknown disse...

Uma bela história... que infelizmente acontece imenso.
Quantas vezes espero pelo comboio e ouço uma vozinha maquinal a anunciar que devido a nem sei quê (raramente se percebe) os comboios estão a circular com algum (?) atraso. Brevemente serão fornecidas novas informações... Está última frase então, não sei porque a dizem! É que nunca ouvi nenhuma informação adicional... Mas devo ter problemas de ouvidos...

Beijinhos

bettips disse...

Pois..utente a gente!
Sempre.
Saberias que os sistemas, nomeadamente os informáticos, eléctricos, telefónicos, por rede, por cabo, sem fios, manuais e pessoais, estatais, "empancam" sem qualquer aviso, nas câmaras, nos cemitérios, nas finanças, nos centros de desemprego e tudo o mais onde a gente cede o flanco utente. E os guichets com flausinas são sítios a evitar, bem como "a sua chamada encontra-se em lista de espera", o "volto já" etc etc.
Em vez do sorriso amarelo pedias o livro amarelo ou verde-esperança, o de reclamações. Ou dizias "O senhor por acaso sabe com quem está a falar?" e viravas as costas. Na dúvida, o homem insultava-te mais para sair no "nós por cá"...
Enfim, caro eclético, é o que temos e nem o tempo está à façon de o suportarmos.
Abraços

M. disse...

Adorei!

Maria Laura disse...

Ora, bem me parecia que devia haver uma razão para raramente andar de comboio... :) É que também, sinceramente, não gosto nada de "míticos comboios". Prefiro os reais que andam a horas. Coisas! :))

Unknown disse...

O pacato cidadão eras tu?
Só podias ser... Eu estava a ler e a imaginar-te.

Conheço muito bem esse "Gabinete do Utente"!...
Se mudassem a designação, como uma vez sugeri, para "Gabinete do Cliente", talvez nos tratassem com outro "tom".

O problema é que já compraste o bilhete. E queres é regressar. E não há alternativa.

......

- Caíu um poste na cantenária. Vamos parar em "still" - que chique, pensei eu, já falam em inglês, deve ser uma paragem lenta e suave...

Qual "still"?
Parámos em Setil e daí, só saí, horas mais tarde, da 1ª classe do Intercidades, para o único comboio que me levaria ao destino [para trás não havia linha disponível], vindo da Beira Interior, com uns cubículos como antigamente, cheios de gente a abarrotar, com farnéis e galinhas em cestos, que teimavam em espreitar tal agitação. [E eu em pé, colada às janelas, tal era o "trânsito"!]

Bem, fiquei a conhecer todos os apeadeiros até à capital!...

Quando cheguei, a pensar que 4 horas de atraso me fariam voltar para trás e só iria marcar o ponto, eis que me esperavam e adiaram para a tarde todos os "trabalhos"... e cheguei ao Porto lá para a 1:00 hora da manhã!

Foram tantas nesse ano, da Expo 98!... E tantas foram as idas e vindas... e os destratanços no "Gabinete do Utente" e tantas solidariedades, partilhadas com desconhecidos!...

Inesquecível!

[BEIJO]

mdsol disse...

é por essas e outras que às vezes era preferível "ir de poste" ehehehe
:))

Maria P. disse...

E com ou sem comboios vamos entrar numa nova semana!

Beijinhos*

Unknown disse...

Não resisti e li o teu post aqui à família. [E por alguma razão o fiz...]

Foi depois de o ler, em voz alta, com a devida entoação, que percebi um grave "esquecimento" meu.

Há qualquer coisa [ou muita coisa]na tua escrita que me faz lembrar grandes autores da minha predilecção.

E tinha que te dizer. E está dito.

[BEIJO]

Oliver Pickwick disse...

Este relato é uma versão ferroviária daquele famoso romance de Kafka, O Processo.
Ao menos a menina dos altifalantes tinha voz aveludada. Já pensou, se fosse do tipo esganiçada?
Abraços!

hfm disse...

É nestas ocasiões que, normalmente, me "passo". O texto - exemplar!

Maria disse...

Felizmente o cidadão era, é, pacato...
Uma estória bem contada, com temas que são diários e à boa maneira portuguesa...

Abraço

Mar Arável disse...

Afivelado

no pescoço

mas pacato

Bem pode esperar

São disse...

Haja Deus!
Feliz semana!

Condor disse...

http://nacionalistas.wordpress.com/2008/04/01/o-bolhao-e-nosso-o-bolhao-e-do-povo/

Carla disse...

não seria culpa do relógio certamente...pacato cidadão que tão bela história nos trouxe
bjs em desalinho
boa semana

José Leite disse...

Comboios míticos é o que há mais!...

São disse...

Vim reler-te.
Abraços.

Justine disse...

Belo pedaço de prosa,a ilustrar com muita ironia a burocracia e o abuso do poder em todo o seu esplendor. E assim, a rir, se vão denunciando estas situações. A alguém aproveitará...

Licínia Quitério disse...

Utente sofre!!!
Muito bem descrito. Fiquei até um poucochinho angustiada. Mesmo assim, continuo a esperar os comboios.

Graça Pires disse...

É uma história? Acontece imensas vezes. Mas "o povo é sereno"...
Um abraço.

Vladimir disse...

Por essas e por outras, cada vez mais o comboio vai perdendo a corrida..

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