segunda-feira, maio 19, 2008

"Os deuses das pequenas coisas..."

Há uns dias que tenho um “cliente” muito especial à minha janela. Um pardalito desajeitado e ladino (ou será pardaloca?) teima em fazer-me negaças. Com regularidade de fazer inveja, salta para o parapeito e põe-se, de fora, a olhar-me em desafio...

Se me levanto, ou lhe falo, arranca de lá um grosso manguito e desanda. Se me concentro e finjo não lhe ligar, trata de me provocar com um atrevimento inaudito. Suspendo, então, as teclas e os códigos e, impávido, fixo-me nas suas cabriolas...

Olha-me então (pressinto-o terno) de cabeça inclinada, dá umas bicadas imaginárias, “amanda” uma substancial borradela e... asas para que vos quero! Como um risco de fogo, atravessa a poalha doirada e, entre guindastes e fios, lá vai ele, perdendo-se, sobre o Mar da Palha!...

E, assim, por dias sucessivos. E, quando me falta, confesso, dou comigo a cismar tragédias...

Para me ver livre desta “praga”, pensei oferecê-lo a alguns blogs “filosófico-rokeiros” (da pesada), que por aí vicejam. Ou talvez a alguma menina mais doce, que, no intervalo dos seus desenfados poéticos, dos seus amores e desamores (ou de suas dores e paixões) pudesse afagar-lhe as penas e apurar-lhe o luzimento...

Mas não posso. Que droga!... Estou acorrentado à minha danação. Tenho que aguentar o meu calvário. Sussurram-me os deuses das coisas simples ser o espírito de uma jovem rapariguinha drogada que, com a minha moedinha diária, ajudei a matar...

Seja para desconto dos meus pagãos pecados! Que são muitos...

31 comentários:

Unknown disse...

Que história com um final tão triste e tão, infundadamente, "culpado"...

Não foste tu... foi ela!
Vá lá saber-se por onde o deus, das coisas maiores, andava!

Pois, se andasse...
Não eras tu... mas ele!

Os pardais aqui de casa são como o teu.
Cada vez se aproximam mais, na medida do calor das manhãs e dos fins de tarde. Cada vez mais gordinhos e descarados.

[Mas, voltando ao deus, das coisas maiores, não posso sentir-me responsável pelos inúmeros sem abrigo, que recolhem os "meus" restos de comida, quiçá estragada, dos contentores do lixo da esquina do costume... Também não sou eu...]


[Beijo amigo]

manhã disse...

deve ser a alma de uma fã, incógnita que por artes mágicas virou pardal...bem...

Manuel Veiga disse...

manhã,

não percebo a acrimónia do comentário? que se passa consigo, amiga?

Frioleiras disse...

um presentinho para ti ...


http://www.ipetitions.com/petition/manifestolinguaportuguesa/index-722.html

bj

jrd disse...

O registo era outro, mas dizia-se que dar "esmola" era atrasar a revolução.
Não é fácil lidar com o tema.

Maria P. disse...

Os pardais por aqui também tem essas reações...!

:)Beijinhos*

Mar Arável disse...

Força camarada

aos pássaros

só falta

falar

se forem pardais

Bloga Comigo disse...

Um texto para pensar. Inicialmente lembrei-me do primeiro voo do Ladino de Miguel Torga. Teria voado até à sua janela. Não! Deve ser pardaloca que lhe "atormenta o juizo" pela simpatia que de si irradia.
Venha blogar comigo e com as rosas.
Bjo

mdsol disse...

gostei do texto...apesar do final ser tal como a um ar de diz ... "exageradamente" culpado.
:)

Justine disse...

"Isto" hoje está um bocado surrealista - começa com passarinhos a pipilar e acaba com jovens toxidependentes a morrer de overdose!!???!!
Ou então sou eu que estou ensonada e não consegui entrar no espírito da "coisa".
Vou tentar amanhã outra vez :))
beijo

Manuel Veiga disse...

mdsol,
justine,

vós sois ateias!... como podereis, pois, compreender o "peso" dos meus pagãos pecados? rsss

pentelho real disse...

senhor,
tão mal vos conheço que não esperava tal maravilha saída do vosso punho. com que ternura descrevesteis a ladina avesita. e o vosso receio quando ela falta...

sois um homem sensível,mereceis um grande beijo.

São disse...

Texto admirável!
Serás tu algum escritor (re)conhecido escrevendo aqui sob pseudónimo?!
Fica bem!

Anónimo disse...

uma mensagem para dizer que adorei o livro que inspirou o título do teu post :) e que tomava conta do pardalito se mo oferecesses :) um grande beijinho.

isabel mendes ferreira disse...

só para desejar longa vida ao seu pardal...

aves particularmente esvoaçantes.

.


texto alegórico?
embora eu deteste pássaros :( reconheço aqui um "contar" algo queiroziano.

bom dia .

abraço.



(este comentário não sofre de nenhum tipo de ironia...apenas traduz a dor de quem ainda não pode voar)...
____________________

Maria Laura disse...

Ora não querem lá ver o diabo do pardalito(a) a desassossegar-te as horas tranquilas... :) E ainda por cima o pressentes terno. Isso é fixação. :) Mas sabes que, embora entendendo o peso dos teus pecados, não me parece que mereças um pardal malicioso como expiação. Até porque nisto de expiações, deuses, céus, etc... lembra-me sempre alguém que eu conheci que dizia que o céu dos pardais era a barriga dos gatos. Não sei bem porque é que me lembrei disto... :))

un dress disse...

adorei a versão

da manhã!! :)







beijO

Anónimo disse...

Há dias assim...

Bloga Comigo disse...

Não fique com má consciência. Quando o nosso bom coração dá uma moedita a alguém é sempre com a melhor das intenções. Essa pardaloca está seduzida pela sua escrita. E pela leitura. O prazer dela.
bjo

Bloga Comigo disse...

Não fique com má consciência. Quando o nosso bom coração dá uma moedita a alguém é sempre com a melhor das intenções. Essa pardaloca está seduzida pela sua escrita. E pela leitura. O prazer dela.
bjo

pardal de telhado disse...

voando por aqui~~~~~~~~~~~~~~~~

~~~~~por aqui, por aqui~~

Jorge Castro (OrCa) disse...

O pardal, esse tupamaro emplumado, se te visita, alguma graça te achará, que a bicharada não é dada a favores desconchavados.

E quem nos dirá não ser ele (ela?) reencarnação da tal jovem que tu e - sem hipocrisias - todos nós ajudamos a matar, ao permitirmos mais um alento de «desvida»?

Algumas almas piadosas (não é erro, é propositado... por vir de pia clerical mais do que piedade) perturbam-se ou indignam-se quando se recusa uma esmola, alegando o bom cumprimento de impostos. Mas pouco ou nada utilizam essa perturbação ou indignação para cobrarem ao Estado a mais justa redistribuição desse Evarest de taxas que nos assolam.

Enfim, no meio de tanta pretensa dureza, lá vou, também, estendendo o óbulo a quem me pareça mais desgraçado, como forma imediata de apaziguar a consciência. Mas sempre com a convicção profunda de que esse acto (afinal de cobardia) só agrava o problema... Contradições insanáveis!

Um grande abraço perante mais um belo texto. Para quando um livro?

Jorge Castro (OrCa) disse...

Rectificando: Everest, pois.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Mau!... Óbolo, claro! Isto está difícil... Deve ser da humidade da manhã, desajustada do calendário. Ou da falta de um pardal.

Por aqui só tenho o azul arroxeado das buganvílias a concorrerem com o céu.

MS disse...

Bem... devo dizer-te que me deixei enlear completamente por este teu jeito que desconhecia, 'Herético'!

Belíssima prosa poética aqui vim encontrar!
Soberbo e doce! Como deve ser um texto intuitivo e sensível como este!
E até temos direito a uma pequena 'pitadinha' de humor... isto para não nos deixar cair na 'tentação' de pensar que afinal és um poeta-prosador :)

O final dramático, será talvez o único aspecto que nos liga aos teus anteriores textos de intervenção social!

Mas, aqui te presenteio com um poema que 'rezo' quase todos os dias antes de enfrentar a minha 'jornada':

Lição


Oiço todos os dias,

De manhãzinha,

Um poema

Cantado por um melro

Madrugador.

Um poema de amor

Singelo e desprendido,

Que me deixa no ouvido

Envergonhado

A lição virginal,

Que é sempre o mesmo, e sempre variado.


Miguel Torga, Diário X, 2ª edição, Ed. do Autor

Um beijo

...ah! Sensibilizada pelos teus olhares afectuosos em 'fragmentos'!
:)

luis lourenço disse...

Gostei imenso do talento do escritor e do cultivo nobre de sentimentos valiosos.

aceita um genuíno abraço.

Klatuu o embuçado disse...

Trata-o bem, pode até ser Deus ou um dos seus emissários alados.

Abraço!

Mel de Carvalho disse...

Meu caríssimo amigo Herético,
não pude de deixar de rir com este seu ensaio/conto? - reposição entre o imaginário e alguma verdade, quiçá.

Quem mora por perto do Mar da Palha acontece-lhe tantas coisas... desde andorinhas migratórias a aves d'arribação, a um "sei lá" de pássaros estranhos de que nem nome se sabe ... a habitar os nossos quintais.

Eu tenho andorinhas. Voltam sempre todos os anos e adoro-as. E num outro "poiso", tenho gaivotas ... Não as ofereço, não, não. São as minhas "musas" favoritas.

Enalteço a sua prosa, Herético. Excelente.

Um óptimo fim de semana.
Mel

Licínia Quitério disse...

Aquela comichãozinha atrás da orelha que nos leva a perguntas como: "mas que raio fiz eu de errado?"
Afinal é só um pardalito curioso.

Gostei, mesmo.

Eme disse...

Por sinal, um livro na minha prateleira esperando ser lido. Devo começá-lo? Só por isto..

:)

Beijo

Ouçamos o pardal

M. disse...

Belo e subtil. Gostei muito.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...