domingo, julho 20, 2008

“Longo Caminho para a Liberdade"...

Há muitos anos, quando era um rapazinho criado numa vila do Transval costumava ouvir os anciãos da tribo a contarem histórias sobre os bons velhos tempos antes da chegada do homem branco. Nesses tempos, o nosso povo vivia em paz, sob o governo democrático dos nossos reis e dos seus amapakati, que se movia livremente e cheios de confiança por todo o país, sem licença, nem impedimentos.

O país era nosso de nome e de direito. Ocupamos a terra, as florestas, os rios; extraíamos a riqueza mineral do solo e todas as riquezas deste belo país. Nomeávamos e organizávamos o nosso próprio governo, controlávamos as nossas próprias armas e organizávamos as nossas transacções e o nosso comércio. Os anciãos contavam lendas de guerras travadas pelos nossos antepassados em defesa da Pátria, assim como actos valorosos de generais e soldados nesses tempos épicos.

A estrutura e organização das antigas sociedades africanas neste país fascinavam-me muitíssimo e influenciaram grandemente a evolução dos meus pontos de vista políticos. A terra, na altura, o principal meio de produção, pertencia a toda a tribo e não havia propriedade individual de nenhuma espécie. Não haviam classes, nem ricos nem pobres e tão pouco a exploração do homem pelo homem. Todos os homens eram livres e iguais e nisto se fundamentava o governo.

O reconhecimento deste princípio geral encontrou expressão na constituição do conselho, conhecido como “Kgotla”, que governa os assuntos da tribo. O conselho era tão completamente democrático que todos os membros da tribo podiam participar nas suas deliberações. Chefe e súbdito, guerreiro e curandeiro, todos participavam e tentavam influenciar as suas decisões. Tinha tal peso e tal influência, que nenhum passo e alguma importância podia alguma vez ser dado pela tribo sem referência a ele.

Havia muito de primitivo e inseguro em tal sociedade e, certamente, não estaria à altura das exigências da época presente. Mas numa sociedade assim estão contidas as sementes da democracia revolucionária, em que ninguém será escravizado ou mantido em servidão e a pobreza, as privações e a insegurança não existirão mais.

É esta História que, ainda hoje, me inspira a mim e aos meus colegas na nossa luta política...
(...)
Diria que, neste país, a vida de qualquer africano o conduz continuamente a um conflito entre a sua consciência, por um lado, e a lei, por outro. Não se trata de um conflito exclusivo deste país. Ele põe-se a todos os homens conscientes, a todos os homens que pensam e sentem profundamente, em todos os países.

Recentemente na Grã-Bretanha, um par do reino, o Conde Bertrand Russel, provavelmente o filósofo mais respeitado do mundo ocidental, foi sentenciado e condenado por exactamente o mesmo tipo de actividades pelas quais me encontro aqui perante vós - por seguir a sua consciência em desafio da lei, num protesto contra a política de armamento nuclear implementada pelo seu próprio governo.

Ele não tinha outra alternativa a não ser opor-se à lei e sofrer as consequências do seu acto. Assim como eu. Assim como muitos africanos neste país. A lei tal como é aplicada, a lei tal como se desenvolveu durante um longo período da história, e especialmente a lei tal como é redigida e pensada pelos Nacionalistas é uma lei que, na nossa opinião, é imoral, é injusta e é intolerável. A nossa consciência manda-nos protestar contra ela, opormo-nos a ela e tentarmos alterá-la...
(...)
A lei transformou-me num criminoso, não pelo que eu fiz, mas devido àquilo que representava, pelo que pensava, por causa da minha consciência. Pode alguém admirar-se se tais condições transformarem um homem num fora-da-lei? Pode ser motivo de surpresa que tal homem, depois de ser posto à margem da lei pelo governo, esteja disposto a viver a vida de um marginal, como eu faço há vários meses, segundo as provas apresentadas a este tribunal?...

Não foi fácil para mim, durante este período passado, separar-me da minha mulher e filhos, dizer adeus aos bons velhos tempos em que, ao fim de um dia extenuante no escritório, podia animar-me com a perspectiva de me sentar com a família para jantar, e, em vez disso, encetar a vida de um homem continuamente perseguido pela polícia, vivendo separado dos que me são mais queridos, no meu próprio país...

Esta vida foi infinitamente mais difícil do que cumprir uma pena de prisão...

Nenhum homem no seu perfeito juízo escolheria voluntariamente tal vida, em vez da vida normal, em família e em sociedade, que existe em todas as comunidades civilizadas. Mas chega uma altura, como chegou no meu caso, em que em lugar do direito de viver uma vida normal, só pode viver uma vida de foragido, porque o governo decidiu usar a lei para lhe impor uma situação de marginalidade.

Fui forçado a esta situação e não lamento ter tomado as decisões que tomei. Outras pessoas serão forçadas de forma semelhante, por esta mesma perseguição policial e acção administrativa do governo, a seguir as minhas pisadas. Disso não tenho dúvida...”

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Extracto das alegações de Nelson Mandela, no julgamento de 1962, em que foi condenado:

. a três anos de prisão por incitar o povo à greve;
. a dois anos de prisão por ter saído do país sem passaporte;
. cinco anos de prisão ao todo, sem possibilidade de liberdade condicional.

Nelson Mandela – in “Longo Caminho para a Liberdade” – Autobiografia – Ed. Campo da Letras.

15 comentários:

Mel de Carvalho disse...

Li algures que as guerras e a poesia são, porventura, dos acontecimentos que mais irmanam os seres humanos…

Nelson Mandela, do alto dos seu quase noventa anos, será certamente das pessoas que mais poderá ter sentido o poder de ambos. O mundo necessita de lideres carismáticos como ele, capazes de deixar pegadas e olhares …

Porque a liberdade é um bem maior, porque o Homem tem uma missão no Universo, não esqueçamos quem é e quem foi Mandela e ão esqueçamos que, por “alguma razão” Mandela foi distinguido Embaixador da Consciência pela Organização de Defesa dos Direitos Humanos Anistia Internacional, qualificando-o de "revolucionário que pertence ao mundo inteiro". Assim seja. Que nos ajude a não perder a consciência!!!!

“...Nascemos para manifestar
a glória do Universo que está dentro de nós.
Não está apenas em um de nós: está em todos nós.

E conforme deixamos nossa própria luz brilhar,
inconscientemente damos às outras pessoas
permissão para fazer o mesmo.

E conforme nos libertamos do nosso medo,
nossa presença, automaticamente, libera os outros.”
- Nelson Mandela/África do Sul.

E de novo, Herético, lhe agradeço por me levar à reflexão…

Findo com as palavras de Mandela, nesta consciência que importa não perder de vista:

"Ainda há gente que não sabe, quando se levanta, de onde virá a próxima refeição e há crianças com fome que choram." - Nelson Mandela/África do Sul.

"Longo Caminho para a Liberdade". Ler e reler...

Fraterno e grato abraço
Mel

Klatuu o embuçado disse...

Sem dúvida uma das grandes personalidades do séc. XX, mas com muitos pontos de interrogação... há muita merda debaixo do soalho do ANC, cadáveres também.

Mas talvez seja só a política que é uma merda.
Abraço.

P. S. E não fizeram - ainda - uma África do Sul melhor... mas talvez seja só (este só é entre aspas) a morte das velhas ideologias, a necessidade de refundir a democracia e pararmos todos de repetir conceitos em que já não acreditamos... só porque sim, só porque temos uma memória e um passado, porque o mundo mudou, mas continuámos a frequentar as mesmas pastelarias.

mdsol disse...

Nelson Mandela: o meu herói. Acho que lhe posso chamar assim, embora seja pouco dada a estas "prisões"!
:)

Licínia Quitério disse...

São estes caminhos exemplares água pura, inesgotável, que outros homens beberão e por ela serão livres e libertadores. Faz tão bem atentar na fibra deste Homem.

Abraço.

Eme disse...

É sublime a história de Mandela.
mas o caminho continua, com muita ilusão pelo meio-a suposta aceitação-

Para mim ele será sempre lenda.tal como Martin Luther King.

beijo

éme. disse...

Talvez mais gente acorde
É preciso que muita gente desperte.
Talvez o aniversário relembre.
Talvez um novo alento ganhe forma e gente se faça Gente!
Devo confessar que me têm calhado dias de pouca confiança nas pessoas... mas não sou criatura de confianças fracas e, regularmente, escolho Acreditar:
Creio que mais Gente anda a perceber que é preciso tomar a vida pela mão e fazê-la ter lugar.
Há um provérbio (que aprendi com um antigo menino-soldado da Libéria que tinha "escapado" aos raptores nem ele mesmo percebia como) que conta assim:
"as pessoas só são Pessoas através de outras pessoas..." (Provérbio Xchosa) e explicou-me que isto queria dizer que só vale a pena ser Vida se se for vivo com O Outro para além de nós...

A lição da vida deste Homem...
Que se leia mais a sua história, que se ouça mais alto a sua voz, que chegue mais longe a sua força!

jrd disse...

Eis um Homem!
Um dos maiores da nossa contemporaneidade.
Uma referência para vida.

Leonor disse...

um post a guardar
beijinhos

M. disse...

Um homem fantástico de presença tranquila.

Maria Laura disse...

Uma lenda viva. Um exemplo que inspira muitos. Independentemente dos problemas com o país ainda se debate.

jawaa disse...

Um dos maiores do século XX. Indiscutivelmente.
Mas uma andorinha (ainda que enorme!) não faz a Primavera.
Há DDT a mais por aí... e sabemos que passa das folhas para os vermes, para os pássaros e chega aos humanos que se alimentam deles.
Um abraço

Maria disse...

Não tenho palavras para falar de Mandela.
Digo apenas que todo o livro é belíssimo...
Obrigada por este post

beijos e beijos

batista disse...

ah, meu Amigo: como é bom vir aqui! - apreciar teus versos com maior regularidade; ver, sentir a profundidade d'outros textos que publicas, que este de Mandela. Valeu, mesmo!
um abraço fraterno.

bettips disse...

Porque a poesia duma vida dedicada à Liberdade, não pode ser resumida num VIVA...
Bom que tenhas lembrado as palavras do Homem coerente.
Inspiração.
Abçs

Tinta Azul disse...

Longo foi o caminho. Mesmo muito longo. E o modo de chegar fora do comum. Sereno, sem ódio nem vingança, quando tinha todas as razões... Por isso digo que Mandela é um Homem Grande, Imprescindível.
Gosto dele. Muito.

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