quarta-feira, março 25, 2009

"Crónicas de um tempo perdido" - A Merência...

Recordo-me da Merência, espigadota, de cabelos ruivos e sardas dispersas pelo rosto leitoso e bem desenhado. Um pouco misteriosa nos seus silêncios, arredia às brincadeiras mais ousadas dos rapazes que, com ela e outras rapariguinhas se juntavam no adro da Igreja, depois das aulas, como poldros selvagens, nos fins de tarde daqueles longínquos meses de Primavera. E quando algum, mais afoito, lhe levantava a ponta da saia ou, no pretexto das brincadeiras, atrevia a mão aos seios púberes e, ela soltava, numa indignada recusa:

- “Vê lá se apanhas um estalo!...”

Junto ao adro, descaindo um pouco para oeste, rematando o pequeno largo, como vértice da rua da Igreja e a rua mais estreita da Calheta, era a forja do Ti´ Alípio. De essencial direi agora apenas que o “Tio” Alípio, viúvo, criava dois filhos ainda tenros, à força de marteladas na forja e do esgravatar de uns alqueires de centeio, em terras arrendadas, nas ladeiras íngremes dos rios da minha infância.

O Manuel, o mais velho, - em estrita divisão social do trabalho (isto sou eu agora a falar...) - fora destinado às agruras do centeio inóspito e ao cultivo de uma pequena horta a uns escassos quilómetros da povoação, a qual, por razões que não antecipo, irá ser o mítico lugar do desenlace desta “estória”.

Para o filho mais novo, o Tio Alípio havia decidido que seria ferreiro e continuar assim a tradição da forja, apontando relhas e aguçando enxadas ou, quando necessário, ajustar as ferraduras de alguma besta. Pensaria o bom do “Tio” Alípio, que reservar para o seu benjamim a tradição da forja seria, certamente, a maneira certa de homenagear a mulher, falecida no momento do parto, de cuja família recebera a oficina.

Acontece, porém, que o Zé - é esta a sua graça, embora mais conhecido por Zé “Sugão”, já que em criança compensou, durante largo tempo, a carência de afectos maternais com os dedos na boca, hábito que pela adolescência se prolongou, mediante a substituição dos dedos pelo permanente sugar de figos secos – acontece, dizia, que o Zé não tinha nem físico, nem vontade para a violência da forja, a que fora acorrentado ...

Era, pois, com manifesto regozijo que, espreitando pela fresta da porta da forja, acompanhava as nossas brincadeiras no adro. Uma vez por outra, quando o pai, por qualquer outro afazer, se ausentava, era certo que Zé, a quem a vida reservara mais agreste passatempo, subia a curta distância das nossas correrias.

Quando assim acontecia, a Merência de olhar fixo no chão, sentava-se no muro do adro, ajeitava a saia, esticando o tecido até à extensão das pernas, cobrindo a penugem incipiente que as adornava e que os últimos raios do sol, descendo no horizonte, davam tonalidades delicadas.

O Zé, a uns palmos de distância, encostado ao muro, sem uma palavra, olhava-a de soslaio, mal disfarçando o pudor do êxtase num pontapé ou outro, como quem enxota visita indesejada, quando inadvertidamente a bola lhe chegava aos pés...

E assim ficavam aquelas duas alminhas, mirando-se, sabe-se lá a que alturas transportados, até que o adro da igreja ficava deserto ou, antes disso, o Ti´ Alípio, qual trombeta do juízo final, reclamava a presença do filho, bem sabendo então o Zé que o deleite do paraíso iria decair no ardor infernal de um bom par de estalos. É que Ti´ Alípio, rigoroso “padre padrone”, não admitia transgressões na ordem familiar e, muito menos que o filho, herdeiro designado de seu brioso ofício, andasse “metido” com a “galdéria” da Merência...

Importa esclarecer que o Ti´ Alípio , ainda que vagamente aparentado, não falava com a família da Merência. Uma antiga rixa sobre partilha de águas com a propriedade confinante à horta que o filho mais velho, o Manuel, zelosamente granjeava, alimentava entre eles um verdete de ódio, que nem festa ou morte, alguma vez poderia limpar. Toda a aldeia o sabia. E respeitava na profundeza (ou insensatez) da sua autenticidade...

Passaram anos. A infância esgotou-se como um suspiro de Primavera. Com o alvor dos anos sessenta a aldeia despovoou-se com emigração para França e outras araganças. Entretanto, o Ti´ Alípio falecera. O Manuel largou a junta das escanzeladas mulas e as agruras da horta e do centeio e enfileirou na emigração a salto. O Zé, porém, por lá se deixou ficar, acantonado ao fervor da sua devoção maior...

A forja morreu de estertor natural. O estiolamento, por falta de braços, da produção agrícola tornou-a supérflua. Nem o Zé com isso se importou. Respeitava o nome do pai, mas odiava o seu ofício... E a Merência lá continuava, firme, como estrela polar, marcando-lhe o rumo e a vida...

Por essa ocasião, nas minhas subidas à aldeia, em tempo de férias, ia sabendo de Zé, por quem tinha sincera amizade, caldeada (no mais lídimo sentido da palavra) nas minhas escapadelas para à oficina de Ti´ Alípio, onde, deslumbrado, acompanhava o contorcer do ferro em brasa e a metamorfose de sons na bigorna sob a força do martelo, donde saltavam fagulhas patéticas, que a meus olhos eram fadas ou estrelas caídas de um céu por mim inventado...

Sabia, por isso, que o Zé ia sobrevivendo, jeira aqui ou ali, ou como criado de lavoura por um período mais ou menos longo, de algum lavrador mais teimoso, resistente aos caminhos da emigração, para quem o cuidado das terras não lhe permitia partir, nem o fruto do trabalho lhe permitia ficar.

Tempos negros esses!...


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Continua, se for o caso...

19 comentários:

Licínia Quitério disse...

Mas tem de ser o caso! E eu ficava lá sem saber do merenciano destino...

Belo retrato.

Um beijo.

Carla disse...

esperemos que continue...esta história que quase podia ser a de moemntos de um país...este
beijos

São disse...

Continua se for o caso?!...
Mas claro que é o caso!!

Um abraço.

vieira calado disse...

Como o tempo mudou, meu caro!

Hoje as meninas já não prometem estaladas...
Já nenhum rapazote levanta um pouco da saia da menina.
É ela que o faz, com despudor.
Tudo se banalizou.
É o "princípio de Lucas" que por aí anda, à solta...

Um forte abraço

hfm disse...

Venho só deixar um abraço depois desta minha longa ausência com um pouco mais de tempo voltarei para ler tudo.

Maria disse...

Bonita estória... retratando o tempo que já foi.
Claro que espero continuação...

Beijos e beijos

Mar Arável disse...

A substancia e a forma

colaram-me ao teu texto

memória de vida

a preto e branco

Obrigado amigo

mariam [Maria Martins] disse...

Herético!
.belíssimos retratos.
tem que continuar!!! (aqui) e quero reler esta escrita, folheando...

olhe, não leve a mal o que vou 'dizer'... gostei muito de 'cal' do J.L.Peixoto, e, vou adorar este seu também!

um sorriso :)
mariam

jawaa disse...

Pois podes (e deves!)continuar, que vais tendo quem se prenda nessa bela prosa já arcaica de conteúdo, como diz muito bem Calado...
Abraço

mariab disse...

deliciosa crónica de duros tempos. tem mesmo que continuar... beijos

vida de vidro disse...

Uma realidade, talvez antiga,mas não menos realidade. As rixas de vizinhos, os amores envergonhados... quem cresceu afastado das cidades sabe o que isso era. Tempos duros, pois. E que tu nos trazes numa prosa que nos convida à leitura. Mais e mais. Então não há-de ser para continuar? **

Peter disse...

Claro que é de continuar. Lembro com saudade esses tempos e escrevi alguns artigos sobre eles.

Aos 21 anos, independente dos pais, comecei a ganhar a vida por esse mundo fora.

Por acaso amanhã regresso às origens, mas só de passagem, pois já não conheço quase ninguém.

The Perfect Stranger disse...

Tem de ser o caso...de continuar.
Excelente texto, digo eu.

um comentador fala em Cal de José Luís Peixoto, a analogia é perfeita.
Gostava de ver a continuação.

Bom fim de semana

Manuel Veiga disse...

duas referências a JLPeixoto que me obrigam a esclarecer:

1 - não conheço o escritor, nem a sua obra; acrescento que o vejo tão publicitado que afasta o meu interesse.

2- o texto em não tem outra inspiração que não sejam acontecimentos vividos, naturalmente "transfigurados" pela fantasia de quem escreve.

beijos e abraços

mdsol disse...

Que seja... o caso

:))

luis lourenço disse...

"ninguém se banha duas vezes na mesma água do rio".o teu texto é um rio de águas cristalinas.

abraços

bettips disse...

Um cadência de tanta aldeia longe, escrita com mais poesia que poema...! Gostei muito e acredito que se "ajeitarão" essas duas almas da terra. A seguir...
Bjinho

Arábica disse...

Se for o caso? :)


Alguma vez seria caso em contrário?


Beijo (mas só se tiver continuação)


;)

jrd disse...

Não podia perder este conto e não quero perder a continuação, que "exijo" e mais o Zé e mais a Merência e, acima de tudo, o teu talento.
Um abraço

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