quinta-feira, outubro 01, 2009

Os homens, as coisas e os nomes...

A Revolução liberal de 1789, como se sabe, aboliu os privilégios pessoais. E, na sua pulsão libertadora, fundou uma nova ordem social e proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão para a qual “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser baseadas senão na utilidade comum.” Em consequência, o direito ao nome, no conjunto dos direitos de cidadania, não será mais objecto de outorga, mas antes considerado como direito natural, inerente a todos os indivíduos.

Sinal imprescindível da personalidade, o nome pessoal extravasa, porém, a palavra que o enuncia. Representa, sobretudo, aquilo que somos; ou seja, o nome é o símbolo de que reveste seu titular e unifica o indivíduo: estrutura corpórea, mas também a dimensão psíquica e conjunto de valores éticos, políticos, intelectuais e morais, que definem o carácter.

Por outras palavras, o nome constitui o sinal mediante a qual a sociedade nos interpela, a evocação pelo qual somos reconhecidos durante toda a vida e, de alguma forma, nos propaga no tempo, pois que, como símbolo da identificação e da individuação pessoal, nos vincula à nossa vivência e ao mérito (ou demérito) da nossa participação colectiva.

Na sua dimensão simbólica, o nome pessoal é também expressão de uma ideologia: de classe, de grupo ou de uma família. Os nomes pessoais falam para além das pessoas que designam. Revelam mais do que afirmam. Desde logo porque, hoje em dia, para as grandes massas aculturadas pela ideologia dominante são um fenómeno de moda (“Maria Albertina porque foste nessa/ de chamar Vanessa/ à tua menina?”).

Noutros casos, sobretudo, nas classes dominantes, o nome pessoal é a projecção social de um futuro que proclama, por isso, no nome de baptismo se inscrevem as referências familiares dos antepassados mais distintos, num processo que (dir-se-ia) da mesma natureza com que os primitivos usurpavam o nome dos animais ou fenómenos naturais que os seduziam. Em boa medida, é verdadeira a expressão “diz-me como te chamas dir-te-ei quem queriam que fosses...”

Este fenómeno é replicado nos processos democráticos ou revolucionários, em que os nomes de líderes e de vultos destacados, são assumidos pelas massas e os inscrevem no registo dominante dos nomes próprios em determinado momento histórico. Por exemplo, na geração do post 25 de Abril, são frequentes os nomes de “Vasco” e de “Catarina”, como homenagem a dois mitos maiores da revolução – Vasco Gonçalves e Catarina Eufémia.

Acontece que, na sua expressão simbólica, os nomes podem ser manipulados como instrumento de luta ideológica. De facto, como se referiu, o nome é direito natural de que todos homens, sem distinção, são sujeitos. Quer dizer, portanto, que o nome igualiza todos os homens, colocando-os, ao menos no plano formal (deixando por agora de fora as desigualdades derivadas da situação concreta de cada um no sistema de produção), em lugar idêntico perante o direito e a sociedade.

Mas se o direito igualiza, a ideologia distingue.

Vejamos. Os nomes produzem um efeito especular, unificador das características pessoais de cada um, que no seu conjunto definem a sua individualidade própria. É mediante esse efeito que os indivíduos em concreto se reconhecem e a sociedade os interpela como homens e cidadãos. Eliminar ou elidir alguma das características individuais expressas simbolicamente no nome, será diminuir a personalidade do indivíduo. Ignorar deliberadamente o nome de uma pessoa é, de alguma forma, decretar a sua “morte civil”...

Quem seguiu atentamente os debates entre os líderes políticos, no contexto das recentes eleições para a Assembleia da República e verificou a persistência da dr.ª Ferreira Leite, presidente do PPD/PSD, em não pronunciar o nome de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do Partido Comunista Português, compreenderá o que pretendemos dizer.

Na boca da ilustre senhora, Jerónimo de Sousa foi sistematicamente nomeado como “senhor deputado”, privilegiando, do efeito especular do nome, o lugar institucional em que o Secretário-geral do Partido Comunista se move.

Com um duplo efeito ideológico. Por um lado, negando o nome próprio, negava também a igualização social, no igualitário contexto do debate. Por outro, distinguindo a qualidade de deputado elidia outras notáveis características que irradiam da personalidade Jerónimo de Sousa – p. ex., a sua historia de vida, a sua militância política e a sua condição de comunista.

Na melhor tradição dos tempos da “velha senhora”...

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Eu sei que não faltam motivos para crónicas mais divertidas e algumas farpas. Afinal o homem "que nunca se engana e raramente tem dúvidas" cultiva suspeições e trapalhadas.

Mas não perde pela demora. Ainda a procissão vai no adro...

10 comentários:

luis lourenço disse...

dar o nome às coisas é um teste difícílimo...E teu texto é uma verdadeira semiologia...quanto ao demasiadamente humano...por vaidade excessiva ou fraquezas patéticas... Excelente. tudo muito bem observado...E a política que deve ser a mais nobre das actividades humanas escorrega tantas vezes para trapalhadas que se não fossem tão sérias, só nos fariam rir...
abraços,

Véu de Maya

dona tela disse...

Desculpe a ausência, devida ao circunstancionalismo dos períodos de reflexão.
Cumprimentos.

jrd disse...

"O homem que nunca se engana" ou "Ele" como dizia o "Outro".

Excelente poste.
Um abraço

© Maria Manuel disse...

eu gostei muito de ler este texto. de assunto interessante, sempre actual (com algumas farpas também...), muito bem escrito e argumentado.

um abraço.

Mar Arável disse...

MUITO BOM O TEU TEXTO

também não gostei

que um tal Socrates

se tenha dirigido ao Jerónimo

- ó Jerónimo.

Sem réplica.

Frioleiras disse...

por acaso, Jerónimo era para mim o candidato mais simpático, mais doce e mais puro.
(num mundo em que nada de ideológico já existe e muito menos a pureza...)

Por acaso, simpatizo muito com ele.
Por acaso fui aluna (de literatura inglesa) da irmã da Dra Manuela F.L. A Dra Julia qualquer coisa...
(semelhantes... de cátedra e de pouca prática. Arrumadinhas mas sem chama nem raça).

Mas, por acaso não votei Jerónimo.

Votei porque devia votar. Porque admiro em quem votei, pela raça, pela garra e pelas características de animal político. Por mais nada.

E sinto-me desalentada por toda a vergonha que se exibe no palco da governo/república.

lastimável!

e agora, nas autárquicas ainda estou pior.

porque.............. vivo na região de Oeiras e embora tudo esteja impecável, não consigo votar em quem roubou embora saiba que ele roubou para os seus bolsos. Os outros, TODOS eles ... roubam para os seus partidos.

Lamentável.

Acho que não sei se conseguirei voltar a votar.

E as minhas ideologias não têm nada a ver com as tuas, querido Herético mas, admiro a tua coerencia...

beijinhos, muitos!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

excelente poste, como já nos habitou.

bom fim de semana.

beijo

bettips disse...

O homem não é marcelo? é martelo? é rombudo? trombudo? velhaco? um fraco?
Onte esteve muita bem,
em escuta do povo,
na residência apalaçada que lhe deu a Républica - e pagamos todos, uns mais que outros.
Abç

bettips disse...

Ré-publica foi mesmo assim, é muito atrás de ser Pública e Democrata - e o dó-ré-mi, a mimi, mi-fá-sol pelo sol... etc. Ah quem me dera uma cunhinha ou uma cunhada decentes!

jawaa disse...

Gostei muito de ler-te aqui.
Também dos comentários...

Abraço

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