quinta-feira, janeiro 21, 2010

SEARA NOVA

Foi publicado o nº 1710 da Revista “SEARA NOVA”– Inverno/2009

De destacar neste número, entre outros, para além do Editorial, o artigo de André Freire sobre “As opções eleitorais e a incongruência dos eleitos perante elas”, o artigo “Modernidades” pelo historiador Hugo Hernandez, bem como o artigo “A actual Justiça em Portugal – breves notas de diagnóstico”, pelo Juiz Conselheiro de Tribunal Constitucional, Guilherme da Fonseca, ou ainda o artigo “O Novo Paradigma Mundial”, pelo coronel António Pessoa.

Pela sua oportunidade e clareza merece, especial referência o texto de Professor Borges Coelho sobre “O Mundo e os dias”, de que me permito transcrever alguns extractos...
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“O Mundo e os dias"...

"Mundo sangra por velhas e fundas feridas no Próximo e no Médio Oriente. Todos os dias, há gente que explode, aviões que se enganam no alvo. O povo pobre lambe as feridas. Soldados camuflados explodem também com as suas armas mortíferas. No regresso, há muitos que chegam mutilados ou ensandecidos. Nós não vemos, mas eles viram os corpos desmembrados, o olhar dos vi vos a recolher os farrapos. Para eles, a festa da vida ficou para sempre ensombrada.

Nós também vimos, virtualmente, e vemos os carros e as casas destruídas, um rasto de sangue, a tortura na prisão de Abu Gharib, a corda no pescoço de Sadam. Há um Tribunal em Haia, mas é para os vencidos. Como é que apagamos as fogueiras do ódio? Construindo muros ou vindo à fala, fechando as chagas, recompondo o futuro?

Outras feridas abrem e fecham no Cáucaso, em África, na América, na China. Há países sem lei, devorados pela fome. Meninos escravos. E jovens que demandam o paraíso com sacrifício da vida ou a prisão e a venda dos corpos.
(...)
O motor da economia global desacelerou. Não consegue libertar-se da droga da especulação financeira, da batota no mercado, da guerra, dos privilégios de casta. O sistema não garante a milhões e milhões de mulheres e homens de todo o mundo a dignidade e a segurança do trabalho. Deita-os fora aos quarenta e cinquenta anos. Para ganhar mais e pagar menos, salta de terra em terra, fecha e abre empresas. Propaga a precariedade e a insegurança. Aumenta o tempo da jornada de trabalho.

O sistema não está ao serviço da comunidade mas do lucro máximo para aqueles que detêm o poder. Num tempo em que alcançamos uma capacidade extrema de produzir riqueza, os gestores e políticos subordinam a produção dos bens indispensáveis à especulação, ao lucro fácil e caem nas armadilhas da riqueza virtual.
(...)
Repetidas até à exaustão, as imagens digitais informam, escondem. mentem, encaminham, adormecem. Os olhos seguem o insólito, o fútil (...) bebem o crime até ao sangue. A bola rola, toma a rolar. Imagem e som oco preenchem o vazio, perturbam a lógica e a fala. Haja máquinas que recolham e transmitam imagens e sons. Abençoadas. Penduradas nas mãos, nos ombros, nos ouvidos, no pescoço. É com elas que falamos. Não, boca a boca, mão a mão.
(...)
Em Copenhaga, os governantes de todo o Mundo vão falar do planeta. A Terra aquece, os gelos do Árctico e da Antárctica derretem, os oceanos sobem, o clima altera-se, a vida periga. Temos de mudar o rumo: produzir menos dióxido de carbono, poupar e limpar a água, conter o desperdício e os lixos tóxicos, suster as armas.

O petróleo intoxica o ar e a política, traz o conforto e a guerra. Todos somos responsáveis. O consumo devora-nos. Na ida e no regresso de cada jornada, milhões e milhões de homens e mulheres, sentados ao volante, isolados pelos sons e o conforto, propagam o fumo tóxico, empestam, estoiram o planeta.

Portugal está mais europeu, mais viajado, mais velho, mais emigrante, mais indefeso, porém pavimentado e digitalizado. A barriga encolheu tanto que hoje é quase só a coluna vertical da beira mar. No interior sucedem-se os campos abandonados e vilas e aldeias desertas, algumas que vêem do tempo dos Afonsiques.

Não há crianças, alguns velhos, casas vazias à espera dos fins-de-semana. Precisamos de novos forais para repovoar, cultivar, afeiçoar o bocado da Terra que nos coube e que partilhamos com os nossos mortos.

Nas cidades do litoral, particularmente nas duas grandes metrópoles, há as ruas e as casas altas iluminadas até ao céu. Templos de consumo. Gente jovem e cada vez mais bela. Tudo parece possível e ao alcance das mãos. Mas se entramos no miolo dos bairros e das casas, encontramos prédios abandonados e em ruína, famílias inteiras sem emprego ou com salários de miséria, velhos mergulhados na solidão, gente picada pela fome.

Ao longo da História não faltaram profetas a anunciar o castigo pelos nossos pecados e o advento para breve do fim do Mundo. Os profetas de hoje ocupam o púlpito das televisões e anunciam todos os dias, para amanhã, a catástrofe.

Assim, bombardeados pelo desemprego, pela vida difícil, pelos escândalos da vida pública, pelos maus augúrios, pelo resvalar de tantos sonhos, não é fácil sustentar a esperança. Sobram as queixas, o pessimismo, o não vale a pena. O melhor é comprar uma nova máquina que me aproxime mais da “notícia” e me afaste da vida real.

Vivemos, para o usar o tempo que nos coube. Por que não torná-lo mais justo e mais belo? Pela justeza dos nossos actos e pela união das vontades, em cada país e no Mundo. Derrubemos os muros, a exclusão, o não é nada comigo.

Hoje há mais jardins nas cidades, o rio está mais perto de nós. No centro, o movimento das pessoas, mesmo sem falas, mesmo desviando o olhar, dá-nos uma energia renovada. E se, de repente, cem mil mulheres e homens descerem a Avenida para dizerem não, é porque a alegria e a esperança continuam vivas (...) e continua a haver gente disposta a dar, até a própria vida, pelos outros homens”.



António Borges Coelho - Historiador
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Um arreliador problema técnico não me permite pubicar a imagem da revista, como se impõe. Pelo mesmo motivo também não tenho frequentado os vossos blogs, do que peço desculpa

Beijos e abraços

11 comentários:

São disse...

Aprecio quase sempre muito as intervenções de André Freire, sim.

Que tenhas seco fim de semana.

batista disse...

taí um material que poderei usar nas discussões populares. excelente!
grato, de coração.
abraço fraterno.

Nilson Barcelli disse...

É um excelente texto. Gostei de o ler.
Bom fim de semana.
Abraço.

Peter disse...

Um belo texto do Borges Coelho. Lá terei que ir comprar a revista.

A leitura do livro de José Rodrigues dos Santos, "Fúria divina", principalmente na parte para muitos mais aborrecida (mas para mim não, pois elucidou-me sobre o Corão) leva-me a pensar que os nossos políticos e intelectuais raciocinam como ocidentais, quando o verdadeiro perigo, mais à esquerda, ou mais à direita, não está entre nós, mas no extremismo radical do Islão, para o qual, até os islamitas moderados, são equiparados aos ocidentais ("kafirun") e, por isso, merecem a morte.

Mar Arável disse...

Imperdível

a nossa Seara

Abraço amigo

lino disse...

Obrigado pela informação.
Abraço

Nozes Pires disse...

Excelente texto de Borges Coelho. Gostei muito do texto sobre a tv, também. Recebe um abraço.

* hemisfério norte disse...

bom
como diz o batista...material bem cheiinho para mts discussões
:)

MagyMay disse...

Excelente!
Não encontro outro termo para definir este texto...
excelente...excelente...

Obrigado Heretico pela possibilidade de o conhecer, ler e reler.

Beijo e uma boa semana

Licínia Quitério disse...

É um texto lindo, diria mesmo terno no seu modo de falar da iniquidade.

bettips disse...

Gostei muito, lúcido e moderno, amargo e cruente como nos vemos.
Nas orlas do mundo.
Abçs

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