domingo, janeiro 10, 2010

“A Geografia da Fome...”


Segundo Josué de Castro, a apropriação injusta e ilegal da abundância dos recursos da natureza é responsável pelo subdesenvolvimento, gerador de miséria e a fome. E afirmava que a fome não era fatalidade da natureza, ao contrário, era fruto de acções dos homens e das suas opções...

O que divide os homens não são as coisas, são as ideias de que eles têm das coisas, e as ideias dos ricos são bem diferentes das ideias dos pobres”, proclamava, com preclara lucidez.

Josué de Castro, que em 1946 escreveu o livro "Geografia da Fome" foi um percursor do salário mínimo, porque compreendeu que uma das causas da fome era os baixos rendimentos dos trabalhadores. Sabia dos males que a nutrição deficiente, nas crianças, poderia acarretar para o futuro da humanidade e ajudou, por isso, a formular políticas de apoio social escolar.

Considerava, por outro lado, que a agricultura familiar seria o melhor método de fixar o homem à terra e possibilitar a sua alimentação. Combateu, assim, o latifúndio e defendeu a reforma agrária. Percebeu as agressões que sofria o meio ambiente e perfilou-se como combatente ecológico, em tempos em que a expressão ainda era novidade.

Foi capaz de prever a amplitude da chamada globalização, na qual a vida económica é comandada pelas empresas multinacionais, sendo os Estados meros executores da política económica, definida em fóruns que ultrapassam a acção dos governos. Este processo globalização, como preveniu, aumenta a concentração geográfica da riqueza e acentua as desigualdades sociais e regionais, contrariando o desenvolvimento humano.

Entretanto, a modernidade e a globalização por que Josué de Castro se bateu era aquela em que a tecnologia mais avançada poderia ser utilizada para melhor distribuir a riqueza, quer do ponto de vista geográfico, quer na perspectiva social e, assim, construir uma era de bem-estar e verdadeiro progresso para a humanidade.

O ano de 2008 assinalou o centenário de nascimento de Josué de Castro. Um insigne brasileiro cuja trajectória de vida merece ser lembrada. Médico, escritor, político, professor, cientista social, homem de múltiplos saberes que sempre visaram satisfazer os anseios dos mais pobres, especialmente daqueles que enfrentavam o problema da fome e suas consequências.

Será necessário lembrar que o problema da fome e das desigualdades sociais e territoriais no Mundo, não diminuiu e, em muitos aspectos, se agravou, desde a data em que o livro “Geografia da Fome” foi escrito, em 1946?

Bastará recordar que, actualmente, segundo a Agência das Nações Unidas para o Ambiente e para a Agricultura e Alimentação, quase 900 milhões de pessoas no Mundo estão subnutridas ou, porventura ainda mais chocante que, de seis em seis segundos, morre no mundo uma criança devido à fome...

E, no entanto, segundo as mesmas fontes, mais de 50% dos produtos alimentares produzidos em todo o Mundo, não chegam às pessoas que deles necessitam. “Entre o que se desperdiça e o que se come a mais nos países desenvolvidos há comida para alimentar o mundo inteiro e ainda sobra” – dizem os especialistas.

E porquê então não fazer o essencial – dar comida a toda a gente? Não há que procurar razões piedosas que podem apaziguar consciências, mas nada resolvem. A pobreza e a fome são congénitas ao modo de produção capitalista. Distribuir os excedentes alimentares não dá lucro. Tem custos e não tem retorno imediato...

E, noutro plano, o “progresso” introduzido pelo colonialismo foi sempre a serviço dos lucros capitalistas, sabendo envolver as elites locais, que cedo se desinteressaram das aspirações políticas, sociais e culturais dos povos emancipados.

Daí que, nas economias emergentes do colonialismo, seguindo o modelo capitalista, o desenvolvimento seja anómalo, sectorial, limitado a certos sectores mais rendosos e mais atractivos para o capital especulativo, deixando no abandono sectores básicos, indispensáveis ao verdadeiro progresso social.

Por todo a parte, pois, os sintomas visíveis do colapso do sistema capitalista, que ultrapassando o quadro da crise económica e financeira, em que o Mundo mergulhou, alguns referem como crise civilizacional. De facto, não há civilização, nem progresso possíveis quando grande parte do mundo morre de fome e aumentam as desigualdades sociais e territoriais.

Por toda a parte, o mundo nos interpela também - ao esclarecimento, à intervenção e à luta!

Não queiramos nós culpar os pobres pela sua própria pobreza...

17 comentários:

Paula Raposo disse...

Concordo. Um alerta, este teu post, para uma realidade crua.
Beijos.

Mel de Carvalho disse...

Um tema a que nenhum de nós se pode alhear e que em boa hora nos trouxe aqui, caríssimo Herético.
Em certos momentos chego a questionar-me se, por tanto olharmos o nosso "umbigo" em busca de uma ruga ou celulite, seremos ainda capazes de olhar o outro, o que vivendo ali ao lado vive a séculos, anos-luz de nós ...
E se, na eventualidade de os conseguirmos VER, conseguimos FAZER algo para ajudar a romper os ciclos da pobreza.

O fenómeno da fome generalizada, extravasa os continentes, estimado Heretico, como sabe.
Se Josué de Castro colocou a sílaba tónica do seu estudo no continente americano, e no Brasil em particular, a“globalização” veio, ela mesma, tornar este assunto realmente global e, hoje em dia, falar da Geografia da Fome é falar do Mundo inteiro e implica necessariamente perceber os Ciclos da Pobreza e repensar seriamente a forma quase anacrónica dos nossos comportamentos sociais (a generalidade de nós)...

Reconhecer que cada individuo é único e que, sob ele, recaem em simultâneo direitos e deveres, reconhecer que todos somos parte de um todo interligado, implica a elevação ética e responsável de cada um, conducente a uma real mudança de atitude.

Porque, caro Herético, os pobres do mundo são também seres a quem o direito à vida digna é, obviamente, um direito inviolável.

 "Não queiramos nós culpar os pobres pela sua própria pobreza...", de todo não! Mas façamos deles intervenientes processuais.

Bem-haja pela sua constante atitude reflexiva sobre o mundo.

Fraterno abraço
Mel

Cristina Fernandes disse...

Um texto para ler com atenção, pois temos que estar atentos ao que quase sempre é esquecido.
Um beijo
Chris

O Puma disse...

Os pobres mais desgraçados

são os indiferentes

os que dizem sim mas talvez

e cruzam os braços

Sempre a alertar e a estimular

os teus textos

Abraço amigo

São disse...

É por concordar plenamente com Castro quando diz que a fome não é um drama sem remédio que tenho na barra lareral do meu blogue principal a gravura de Jesus( "Creaciones).

Esperemos - e lutemos - para que diminuam substantivamente as desigualdades injustificáveis que devastam a Humanidade.

Felzi semana.

~pi disse...

haveríamos de ser mais que

alertas da palavra,

eu haveria...




beijo



~

Licínia Quitério disse...

Lembro-me bem dos anos em que a leitura deste livro era "obrigatória" entre sectores da nossa sociedade que já sentiam a indignação pelo avanço da fome, dentro e fora de portas. É triste saber que, tantos anos depois, essa geografia se alargou, a fome se intensificou. A avidez dos homens pelo lucro maior e mais urgente, resguardada pelo processo capitalista feroz, conduziu ao próximo esgotamento dos bens naturais, às migrações de exércitos de esfomeados, às guerras mais sujas e mais cruéis. E, no entanto, a saga continua, com o banquete para alguns e as débeis consciências apaziguadas por campanhas mais ou menos mediáticas de "solidariedade", palavra hoje tão usada eufemisticamente para designar a velha e beata caridadezinha.
Belo post o teu, Amigo, arauto incansável das urgências deste nosso mundo.

Um abraço.

jrd disse...

Excelente. O mapa da "Geografia da Fome" é, hoje, ainda mais dramático. Por isso, a denúncia desta situação imoral, continua a ser um imperativo de todos os que recusam aceitar, que a terra continue a ter os seus condenados..
Um abraço

Gabriela Rocha Martins disse...

mal vai o mundo ,quando ,em 2010 ,ainda se confunde progresso e globalização com desenvolvimento....


.
um beijo solidário

lino disse...

Excelente texto. Um gigante cidadão do mundo. Há poucos feitos da mesma massa e a esses poucos é feito um autêntico bloqueio comunicacional internacional.
Abraço

Anónimo disse...

gostei muito de ler. desconhecia o autor que citou, e que achei muito correcto. de facto, somos nós quem criamos as nossas condições de vida, melhores ou menos boas, e é urgente conscencializarmo-nos do efeito das nossas acções no meio envolvente. uma reflexão deveras pertinente. um grande beijinho.

MagyMay disse...

Um ser humano com fome...a morrer com fome... é um "peso" demais.
Enquanto a olhar o Sol, estão os senhores do lucro, das riquezas, das ambições desmedidas.
A mancha alastra....

Nilson Barcelli disse...

Confesso que se me dessem plenos poderes para resolver o problema da fome de um modo consistente e continuado, não saberia o que fazer, porque teria a convicção de que ao fim de algum tempo tudo voltaria à estaca zero (ou quase).
E já nem falo da reacção dos povos que vivem melhor quando lhes dissesse que teriam de prescindir de parte da riqueza...
Tudo isto porque, segundo um artigo que li há uns meses de um autor qualificado a nível mundial (não me lembro o nome), a riqueza tem muito a ver com o clima e a cultura dos povos.
Por outro lado, afirmava que a felicidade (ou pelo menos a alegria) variava de modo inverso com a riqueza.
E dava exemplo da tendência Norte/Sul que há na variação desses parâmetros.
A globalização é boa para os pobres... pelos menos em certos aspectos... que o digam as populações que receberam empresas "deslocalizadas" da Europa (e também de muitas sediadas em Portugal...).
Mas o problema é bastante mais complexo do que tudo isto e não cabe num post e muito menos num comentário...
Caro amigo, gostei de ler mais este teu post.
Abraço.

Frioleiras disse...

Infelizmente............... não acredito no Homem.........
Não acho que alguma solução possa dar o q quer que seja porque se tentou tudo e....
o Homem não soube nem sabe distribuir, dividir, democratizar.

O Homem é o único responsável pela destruição de tudo ... do Mundo, dos Outros homens, dos Outros seres, do Ambiente..................

NÃO acredito que haja alguma vez solução.

E sabes que é assim.

Globalização????

E a parte aterradoramente negativa dela?

Os ideais, quando concretizados, instituem-se precisamente ao contrário do que preconizaram....

o Homem é um ser Egoista

O Egoismo nunca permitirá nada!...........

bjnhs

Anónimo disse...

Um alerta à triste realidade que o planeta atravessa!

Tanta fome escondida em sorrisos envergonhados...

Um planeta com os novos pobres e suas carências escondidas... como se fossem eles ( os novos pobres), os culpados!

Gostei do teu tema..

Beijos.

Oliver Pickwick disse...

Globalização, sim. Mas de costumes, de amizade, de conhecimentos. Porém, da economia, jamais. Não é justo que um espirro de uma empresa baseada na Malásia resulte em crise na Argentina, por exemplo. Este sistema de economia global que rege o mundo hoje, nada tem a ver com o verdeiro liberalismo de Locke, Smith, Ricardo e outros mais contemporâneos. Por sua vez, o socialismo também mostrou-se como um sistema incapaz de gerir o mundo. Temos que procurar outros híbridos, selecionando o melhor dos dois sistemas. Mas, seja qual for, desprovido de ganância. Esta sim, é a genitora-mor da fome.
Um abraço!

luis lourenço disse...

Realmente a distribuição da riqueza no Mundo é muito cruel...Mas quando gera fome e miséria provoca-me uma profunda tristeza...e até indignação.
abraço

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