domingo, março 21, 2010

"Abaixo a inteligência?..."

Como se conhece, a horda nazi-fascista tinha horror aos livros e à cultura. O mesmo é dizer, que abominava o progresso e a emancipação da Humanidade. Foi no seu seio que germinou a serpente da ignomínia e, sob as botas cardadas das milícias nazis, que arderam milhares de livros. Na esteira, aliás, do bestial grito “Abajo la inteligencia, viva la Muerte”, proferido pelo general fascista Milan Astray, na Universidade de Salamanca, em plena da Guerra Civil de Espanha, em 1936.

Claro que os tempos são outros. A dominação ideológica não se impõe, hoje, a pontapés, nem sequer aos gritos. O ataque à inteligência e à cultura são hoje mais subtis e sinuosos. Hoje em dia, os livros não vão para a fogueira, ora essa! Vão para a guilhotina!...

E impolutas consciências lembram-nos que os tempos não se compadecem com censuras e inquisições. Somos livres, enfim, nas nossas escolhas, - dizem-nos - designadamente, nas nossas escolhas culturais...

Seremos?...

Vejamos. Como os mais atentos sabem, recentemente, um “moderno” e poderoso grupo livreiro abateu dezenas de títulos de autores como Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Maria Velho da Costa, António Ramos Rosa, Manuel António Pina, Eduardo Lourenço, Maria Helena da Rocha Pereira, Camilo Castelo Branco, Urbano Tavares Rodrigues, (entre outros) bem acompanhados, aliás, por autores como Hölderlin e Goethe.

Saíram, assim, de circulação e dos escaparates das livrarias milhares de exemplares da obra de autores de referência da cultura portuguesa, com os quais muitos portugueses aprenderam não apenas o prazer da leitura, mas sobretudo, o exemplo de dignidade cívica.

Justificação para a moderna barbárie: “o desinteresse do mercado por estes livros!”... Como se não se soubesse como o “interesse do mercado” se constrói....

 As poderosas e agressivas campanhas de marketing formatam o gosto e decidem o que se vende e não se vende, com vantagem para a literatura cor de rosa ou esotérica, reproduzindo os modelos sociais dominantes, onde não cabem, naturalmente, os livros de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Maria Velho da Costa, António Ramos Rosa ou de Urbano Tavares Rodrigues. Ou Hölderlin. Ou Goethe...

Por outro lado, a sobreprodução editorial, a que a taxa marginal de lucro permanente obriga, determina a velocidade de circulação dos livros nos escaparates das livrarias, aumentando o refluxo dos livros com conteúdos mais exigentes, que assim são duplamente ostracizados – pelas opções editoriais e de marketing e pela procura do público.

Assim, nesta voragem do mercado, se abate a inteligência...

Sabemos que a actuação da editora em causa despertou as pusilanimidades e as irritações de costume. Mas não me recordo (e quem me dera estar enganado) de ter visto colocada a questão de saber  se os livros, como qualquer outro objecto cultural, poderão ou deverão ser considerados como mera mercadoria, sujeita à pura lógica do mercado e do lucro...

É que se a resposta for positiva, teremos então que reconhecer, invertendo lógica de um consagrado axioma capitalista, que a “má moeda expele a moeda boa...”

22 comentários:

hfm disse...

Da eterna formatação cultural - mas ela sobreviverá, tem de sobreviver.

Paula Raposo disse...

No comments.
Beijos.

Genny Xavier disse...

Caríssimo Herético,

As vezes eu o sinto arqueiro a lançar tuas palavras-flechas...ao alvo-olho que direciona o furo...
As vezes eu presumo a ferida, mas não a sua profundidade...
Quisera, que toda ética e justiça da tua flecha lapidada, rasgasse a carne que envenena o mundo...
Como sempre, seus textos me fazem "ensimesmar" sobre a ações, os seres e esse tempo que escolhemos para viver.
Meu beijo,
Genny

MagyMay disse...

Que comentar?
Que dizer?
...levantar-me da cadeira...
e, que não pela primeira vez, "clap...clap...clap" as minhas palmas, para ti!
Pelo excelente texto, conteúdo e forma.
Subtilmente seremos cada vez menos livres... sinto-o

Beijo e boa semana

casa de passe disse...

O o que dizer também da porcaria de programas que as televisões nos impingem, dizendo que transmitem o que o espectadores gostam. Metem nojo.
Tudo tem o mesmo propósito.


Aurélia

jrd disse...

Hoje já não é o Fahrenheit 451 que destroi os livros, mas a guilhotina que os "decapita" tal como o faz com a inteligência e a cultura...
Abraço

mdsol disse...

Uma bestialidade sim. Tens razão.

:)))

lino disse...

É uma tristeza continuada.
Abraço

Maria P. disse...

Ainda quero ter esperança...

Beijinho*

~pi disse...

aos olhos vazios

tudo não passa de

mercado

gados, pessoas e livros







beijo






~

~pi disse...

LO QUE ESPERAMOS

Tardará, tardará.

Ya sé que todavía
los émbolos,
la usura,
el sudor,
las bobinas
seguirán produciendo,
al por mayor,
en serie,
iniquidad,
ayuno,
rencor,
desesperanza;
para que las lombrices con huecos portasenos,
las vacas de embajada,
los viejos paquidermos de esfínteres crinudos,
se sacien de adulterios,
de hastío,
de diamantes,
de caviar,
de remedios.

Ya sé que todavía pasarán muchos años
para que estos crustáceos
del asfalto
y la mugre
se limpien la cabeza,
se alejen de la envidia,
no idolatren la saña,
no adoren la impostura,
y abandonen su costra
de opresión,
de ceguera,
de mezquindad.
de bosta.

Pero, quizás, un día,
antes de que la tierra se canse de atraernos
y brindarnos su seno,
el cerebro les sirva para sentirse humanos,
ser hombres,
ser mujeres,
-no cajas de caudales,
ni perchas desoladas-,
someter a las ruedas,
impedir que nos maten,
comprobar que la vida se arranca y despedaza
los chalecos de fuerza de todos los sistemas;
y descubrir, de nuevo, que todas las riquezas
se encuentran en nosotros y no bajo la tierra.

Y entonces…
¡Ah!, ese día
abriremos los brazos
sin temer que el instinto nos muerda los garrones,
ni recelar de todo,
hasta de nuestra sombra;
y seremos capaces de acercarnos al pasto,
a la noche,
a los ríos,
sin rubor,
mansamente,
con las pupilas claras,
con las manos tranquilas;
y usaremos palabras sustanciosas,
auténticas;
no como esos vocablos erizados de inquina
que babean las hienas al instarnos al odio,
ni aquellos que se asfixian
en estrofas de almíbar
y fustigada clara de huevo corrompido;
sino palabras simples,
de arroyo,
de raíces,
que en vez de separarnos
nos acerquen un poco;
o mejor todavía
guardaremos silencio
para tomar el pulso a todo lo que existe
y vivir el milagro de cuanto nos rodea,
mientras alguien nos diga,
con una voz de roble,
lo que desde hace siglos
esperamos en vano.


Oliverio Girondo

de “En la Masmédula


aqui fica :)




~

lis disse...

Só pra citar o grande Castro Alves:

"Ó bendito o que semeia livros,
Livros livros a mão cheia
E manda o povo pensar
O livro, caindo n'alma
É gérmen que faz a palma
É chuva que faz o mar..."

Abaixo a ignorância!
Onde o desinteresse ?

Adoro a literatura portuguesa é a que mais leio e é a melhor rs
abraços

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

um excelente texto.

(as coisas que ele sabe)

beij

Mar Arável disse...

A canalha anda à solta

e tem poder

1 Espectador "Sociedade Civil" disse...

Muito Boa Tarde,

Aproveito a minha regular visita ao seu espaço para informar a abertura de um novo blog dedicado exclusivamente ao debate de temas falados no programa de televisão Sociedade Civil. Como espectador, este meu novo espaço visa expressar as minhas opiniões sobre o assunto falado no dia. Aproveito a minha passagem pelo seu blog para divulgar, para que todos visitem e que sigam este blog. Serão todos bem vindos, bem como a colocação de links está em aberto. Se a colocação for feita neste seu espaço, colocarei também no meu, basta informar.

http://umespectador.blogspot.com/

Boa continuação e espero que apareçam.

Licínia Quitério disse...

Impunes os mercadores de livros. É desesperante, triste, muito. Ah o mercado devorador de consciências. Que fazer? Diz-me.

maré disse...

reforço, sílaba a sílaba, cada palavra aqui lida.
e será uma questão inocente?!


___

um grande abraço

São disse...

Estamos chegando ao fundo do fosso e da hipocrisia: enquanto idiotizam cada vez mais o povo com uma programação absolutamente medíocre destroem obras de autores/as importantes sob um cínico pretexto.

De facto, é repugnante!!

Um abraço.

GS disse...

Cruzes! Como diria o povo! Fiquei paralisada como o que o li!

Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Camilo... sem desprimor para todos os que citaste!
Uma verdadeira 'inquisição' camuflada sob a ideia do não rentável?

E então de que se alimentam os que amam os livros, os verdadeiros!
De prateleiras e mesas cheias de livros com tules e laços?!?
De literatura 'light'?
De autores que não deviam sequer ser publicados pela falta de sensibilidade literária?!
De receitas de bem viver, de ser feliz, de não stressar, de emagrecer?!

Sinceramente!! Fiquei colapsada!
Um beijo,

luis lourenço disse...

Não poderia estar mais de acordo...
E o teu texto tem uma claridade imensa...admiro essa tua bravura.

Deixo-te um grande abraço.

Véu de maya

Graça Pires disse...

"O ataque à inteligência e à cultura são hoje mais subtis e sinuosos. Hoje em dia, os livros não vão para a fogueira, ora essa! Vão para a guilhotina!..."
A minha indignação não tem limites.
É que agora os autores de referãncia são só os que vendem a curto prazo...
Um beijo

jawaa disse...

Eu já não sei que diga sobre tudo isto. Bem sabes que sou pelo optimismo, temos todos de empurrar o barco. Mas assim? Cada vez mais assim?

Somos um povo de oportunistas e corruptos.

Obrigada pelas palavras lindas que sempre me deixas.

Um abraço

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...