segunda-feira, junho 14, 2010

Carta Aberta à Família Espírito Santo – Rita Ferro

“Cresci a ouvir falar da vossa família com urna reverência quase tão mística como a matriz bíblica do nome que vos designa. Em 1931, o vosso avô Ricardo foi mecenas de uma obra social fundada por minha avó, e é em nome dessa memória afectiva que venho hoje galvanizar-vos.

Sabem? Herdeira genética do salazarismo, mas penitente pelos efeitos do seu regime, sinto-me hoje ludibriada por ter dado o benefício da dúvida a quem se perfilou na defesa das suas vítimas para agora as defraudar, apropriando-se de todos os tiques, luxos e vassalagens que, rusticamente, se associam à direita, e de que toda a Esquerda persistente deveria, ao menos, recatar-se.

Na verdade, devo a meu pai tudo o que sei de política: “Nenhum sistema ou nenhuma ideologia pode hoje considerar-se a salvo de suspeita”. Lição breve, mas que sobra para enxergar quando me enganam: o nosso primeiro-ministro está mais preocupado em encobrir o lóbi argentário que o assedia do que em escorar Portugal contra a calamidade mundial que afundará, em primeiro lugar, economias frágeis corno a nossa.

Todavia, presenciar os ultrajes a que se presta - sem saber ou poder defender-se - não é um espectáculo menos triste do que assistir à demissão dos portugueses que, lesados, falidos e ultrapassados por jogadas de bastidores, contam anedotas para expurgar a impotência.

Sei que sabem: as “classes” acabaram finalmente, não por promessas de Abril ingénuas nesta matéria - mas porque tanto operários corno intelectuais se irmanam hoje no garrote da penúria para que meia dúzia de plutocratas possam beneficiar-se com o que, em justiça, caberia a todos, segundo os chavões humanistas de que sempre se socorrem para burlar os eleitores.

Diverso, o vosso caso: o que se ouve neste momento, nas vossas costas, tanto nas salas como na rua, é que a força deste Governo não lhe advém dos cabelos, como em Sansão, mas da retaguarda que o vosso Grupo lhe assegura para acautelar negócios que, com o álibi das metas europeias e a promessa de retornos delirantes, vão cavando a nossa sepultura.

Refiro-me, claro, a todos estes investimentos - inoportunos nos prazos - em que Sócrates vem embarcando, com a chancela de consórcios financeiros onde, surpreendentemente, consta sempre o vosso Grupo: novas redes de auto-estradas, pornográficas para quem não tem que comer; o TGV para Madrid e a extravagância de urna terceira travessia sobre o Tejo; um aeroporto importante do ponto de vista logístico e estratégico, mas sem tráfego que justifique um projecto faraónico.

É, pois, na qualidade de patriota angustiada, que vos rogo que recordem o seguinte a quem, de entre os vossos - tão endividado corno nós, e a outra escala - possa também ressentir-se. Ao contrário do vosso Grupo - e doutros, claro, mas com menos pergaminhos – não teremos a Suíça corno abrigo quando a lâmina da bancarrota nos cortar a jugular, pelo que será aqui mesmo, em solo lusitano, desonrados e perecendo entre escombros, que exalaremos o último suspiro.

Se nem isto os demover, pois então que se perfile, coerente, a fé cristã da família: estão em causa montantes capazes de salvar, literalmente, milhares de irmãos da desonra, da doença, da morte nos hospitais, sem cama nem assistência, e do recurso ao suicídio para o qual a Estatística nos tem vindo a alertar e que disparou, em flecha, desde o princípio da crise.

Confiem: lembrar-lhes isto seria o acto mais nobre de lealdade a Portugal, tratando-se de um Grupo que, desde o Estado Novo até hoje, tem podido prosperar graças à indulgência de todos os governos e à vista grossa de um povo já exangue.

Dirão que o GES está no seu papel e que cabe a Sócrates prevenir-se; direi eu, que estou no meu, que me cabe defender a minha pátria de quem quer que a ameace”.

Rita Ferro, escritora – in “Expresso” – 12 Junho

...................................................
Admirável desassombro...

Está plenamente justificado o anti-capitalismo deste blog, não vos parece?!...

16 comentários:

Licínia Quitério disse...

Também li e a princípio julgava que estava a ler mal.Afinal a senhora está mesmo decepcionada com o GES. Estas coisas às vezes levam tempo, mas até acontecem. A vergonha nacional é tão grande que muitas vozes mais se levantarão contra os espoliadores, tenho esperança.

Um abraço.

Rogério G.V. Pereira disse...

Transcrevo do que Rita Ferro escreve:

"É, pois, na qualidade de patriota angustiada, que vos rogo que recordem o seguinte a quem, de entre os vossos - tão endividado corno nós, e a outra escala - possa também ressentir-se. Ao contrário do vosso Grupo - e doutros, claro, mas com menos pergaminhos – não teremos a Suíça corno abrigo quando a lâmina da bancarrota nos cortar a jugular, pelo que será aqui mesmo, em solo lusitano, desonrados e perecendo entre escombros, que exalaremos o último suspiro."

Isto, não vai acontecer. Nem eu nem o Heretico deixaremos (nós e muitos, muitos mais...)

Abraço, abraçando um anti-capitalista

Maria disse...

Se não tivesse lido aqui acho que não acreditava que esta senhora tivesse escrito este texto.

Um beijo.

escarlate.due disse...

eh laaa! quase punha em dúvida que fosse da Rita Ferro...

jawaa disse...

As pessoas crescem e pensam, caraças, tão fácil como saltar a corda!
Um abraço

lino disse...

O fundador da Opus Dei ensinou que um rico vai para o céu se ganhar muito dinheiro e rezar todos os dias. É por isso que os usurários banqueiros vão à missa após a mais feroz exploração.
Abraço

lis disse...

heretico
hoje nada a declarar sobre o texto de Rita Ferro rs fico entre os quase 100% que está indiferente ao que possa acontecer com a política do qualquer País rsrs
só quero hoje dar preferência a amenidades .
especialmente ficar um tantinho feliz pela vitória " mixuruca" da seleção brasileira .Sabe , o país inteiro pára pra ver os meninos cantando errado o hino nacional e fazendo gol.E depois discutem todos os lances como se discutisse o futuro da nação ou algo que o valha.
Inexplicável, nao tente entender!rs
Em ano de eleição, não ha nada melhor do que se entreter com a Copa Mundial.
E esse ano num Pais que vem vencendo muito mais que partidas de futebol.Estou adorando conhecer mais da Africa , só por isso já vale qualquer jogo mal jogado!
desculpe desviar o assunto ou nao?
deixo os abraços

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

há artigos muito pertinentes.

olá se há.

um beij

luis lourenço disse...

.Lúcido patriotismo o de Rita Ferro!... Mas na hora da verdade, o povo saberá distinguir o trigo do joio...e não deixaremos que nos "cortem a jugular"...
Abraços

Graça Pires disse...

Também digo contigo: admirável desassombro... Foi a Rita Ferro que o escreveu? Fantástico...
Um beijo.

Nilson Barcelli disse...

"Nenhum sistema ou nenhuma ideologia pode hoje considerar-se a salvo de suspeita”.
Acrescento: nenhum actor económico ou financeiro, isto é, todo e qualquer agente que provoque ou ajude a provocar despesas, por acção ou omissão, sejam elas de investimento ou de consumo, pode considerar-se a salvo de suspeita.

Gostei do artigo de opinião, muito embora se vislumbre aqui e ali alguma demagogia fácil.

Sobre grandes ou pequenos investimentos, tenho uma opinião muito simples: devem ser rentáveis.
Ou seja, se há dúvidas, o governo deve ser convidado a evidenciar a rentabilidade de cada investimento sob suspeita. Em sede própria, isto é, na AR. Investimento por investimento.
Paralelamente, deve tornar públicos os estudos de rentabilidade de todos os investimentos de valor significativo, de modo a serem analisados pelos elementos da comunidade que possui o saber para tal.
As discussões políticas acerca de investimentos, deveriam ter um carácter mais generalista e centrar-se, principalmente, na rentabilidade. Ser contra um investimento, deveria implicar a evidência que não é rentável, social e/ou financeiramente.
A opinião da Rita Ferro é destituída desses argumentos. É mais um feeling que outra coisa. Se o sabe, não o afirma…

O nosso grande problema, o do nosso país, é que quase ninguém está habituado ao rigor nos investimentos (para não falar de outros rigores…). Desde as Câmaras aos governos, passando pelas empresas, estatais ou privadas, institutos e demais centros de despesas.
Funcionamos, nesta como noutras matérias, pelo feeling e pelo improviso. Pelo compadrio e pelas consequências menos legítimas (eleitorais, favores, etc.) e não por critérios de interesse público. E, nesse emaranhado de interesses laterais, há sempre o “Chico-esperto” que, ajudando à missa, retira lucros chorudos das operações de investimento. Sejam eles bancários, pessoais ou partidários.

Não faço a mínima ideia se o BES está a ser “Chico-esperto” ou não. Uma coisa é certa, fizeram as contas e acham que vão ganhar dinheiro. O que nem é imoral. Só o é se eles viram que o investimento não é rentável na óptica do interesse público e o omitem.

Caro amigo, quase só tu me levas a escrever tanto nos comentários…

Abraço.

MagyMay disse...

Um artigo que pôe em causa.... escrito por quem foi, é uma facadinha!

mdsol disse...

Parabéns pela publicação da carta! Que está muito bem escrita.

Ai a ética nos negócios. Mas isso é uma coisa marciana nos tempos que correm.

:))

Luis Leote disse...

O BES, como todos os grandes bancos deste mundo, foram e são os principais responsáveis pela tão empolada crise do Sub-Prime, com os incentivos publicitários milionários ao crédito a perder de vista, e os tolos crentes alinharam em mais uma hipoteca ou mais um impagável empréstimo. São agora milhares de milhões de devedores por todo o mundo, entalados até à morte, e só os bancos beneficiaram.

Rita disse...

Agradeço a citação, só vi hoje :-)

Rita Ferro

Lídia Borges disse...


«Mais vale tarde do que nunca»
Refiro-me a Rita Ferro...
Outros verão ou já viram e não tiveram ainda coragem de o admitir.

Lídia

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...