quarta-feira, setembro 08, 2010

“Fazer o que ainda não foi feito...”


Como se sabe, toda a linguagem é “ideológica”. Não há “inocência” na Palavra ou neutralidade possível em qualquer “sistema discursivo”, seja ele Literatura, Moda, Publicidade ou Política (ou Música).

Por outro lado, a palavra, enquanto signo de um discurso narrativo, arrasta consigo, para poder significar, a ambivalência “mitos”, que ocultam, por um lado, o que por outro pretendem desvendar. E, nesse jogo de véus, nesse paroxismo de ocultação/revelação, o Verbo (e o mito) alcançam significação e expressividade...

No caso em epígrafe, o infinito futuro do “que ainda não foi feito”, oculta a ponderabilidade do presente e a acumulação de sentido daquilo que “está feito” e que constitui, afinal, a justificação do enunciado, seja lá o que for o que cada sujeito do discurso pretenda ultrapassar (ou subverter) na acção de fazer ...

O enunciado em referência, que no caso serve de exemplo, atingirá assim o alvo, quer dizer, ganhará apenas plena significação, no respectivo contexto leitura, que dizer, a partir do “lugar ideológico" em que sujeito interpelado se coloque - tanto poderá ser a mundividência individualista de um “carpe diem”, como a altruísta e generosa dimensão da participação cívica e social...

Na realidade, como dizem os autores, a ideologia, que nunca se reconhece como ideológica, reflecte as condições materiais da existência dos indivíduos, numa relação inversa, de forma a que, quanto mais cinzento o quotidiano mais colorido o desejo de uma vida outra, que a ideologia promete...

Tanto mais “a fazer”, quanto o que “é feito” não satisfaz...

Também assim no discurso jurídico. Nunca como hoje a “ideologia” dos direitos do homem foi tão insistente! À geração dos tradicionais direitos de cidadania, oriundos da Revolução Francesa, juntam-se agora, nas constituições modernas e instrumentos jurídicos de âmbito internacional o direito ao trabalho, à segurança social, à saúde, à educação, o direito à habitação, à água e ao saneamento, etc.

Ao que se sabe, está agendado para a reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, no próximo Outono, a discussão do Novo Tratado Internacional dos Direitos Humanos, entretanto aprovado no Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, que inclui estes novos direitos humanos de segunda e terceira geração.

Alguns lhes chamam o “kit de sobrevivência” da Humanidade, o que dá a medida da relevância destes novos direitos, ao menos no plano da “ideologia jurídica”, bem se conhecendo que os direitos económicos, sociais e culturais emergem dos valores do socialismo e da luta dos trabalhadores do decurso do século passado...

Daí as resistências, atrasos e incompreensões...

Mais vale tarde que nunca. Saudemos, pois, a omnipresente ideologia que atribui às conquistas sociais e avanços históricos da Humanidade a “dignidade do Direito”; sobretudo, se tiver âmbito universal, no quadro de um Tratado Internacional dos Direitos do Homem.

Mas uma coisa são os efeitos especulares da ideologia. Outra são as condições reais em que os direitos humanos se exercem e que a nossa pequena escala nacional nos permite avaliar.

O feroz desmantelamento do chamado “Estado social” e o retrocesso social que representa aí estão, pungentes, como ferida aberta no corpo das sociedades europeias, para não me alongar no elenco dos atropelos por esse mundo fora dos direitos humanos, sejam eles direitos de cidadania, ou direitos económicos, sociais e culturais...

Apesar das promessas jurídicas que as leis nacionais e os tratados enunciam.

Contradições do sistema capitalista? Direi que, verso e reverso da ideologia dominante, que no seu percurso de dominação e interpelação dos cidadãos, nega o que majestosamente proclama...

Não nos deixemos cegar!
E cada um, à sua medida, faça “o que ainda não foi feito...”


16 comentários:

Maria disse...

É o que tento fazer. Nem sempre consigo... mas vou tentando.

Beijo.

Rogério G.V. Pereira disse...

Como eu gostei de todo o seu texto
Como eu não gostei da parte final
Fazer o que ainda não foi feito
Não pode ser na medida de um rasgo individual
O que falta fazer
é quase tudo
Pois quase tudo
Falta acontecer

Mel de Carvalho disse...

A questão é sempre ambivalente - existe a noção da incompletude dos nossos passos perante um sistema que sabemos obsoleto, mas que, porque assim é, de tão pesado nem tentamos mudar. Para quê o esforço, se tudo fica na mesma???
E, enquanto isso, deixamos para as gerações vindouras o lixo das nossas atitudes, num "que se lixe"...

Excelente reflexão. Grata pela partilha.

Fraterno abraço,
Mel

Jorge Castro (OrCa) disse...

Como tantas e tantas vezes, palavras tuas como punhos, meu caro,

E advogo muito esse apuro final, pois que a soma de actos (rasgos)individuais também tem o seu peso no resultado colectivo final.

Pelo contrário, quando pretensamente se assume, até ao limite, que o acto (atitude) individual é irrelevante sem a movimentação colectiva, sem o apuro dos circunstancialismos inerentes, cai-se nas franjas do fundamentalismo castrador... que resulta, geralmente, no imobilismo.

Não será impunemente que lemas como «pensar nos outros» ou «um por todos», dirigidos claramente ao indivíduo, nos são tão caros.

Façamos, pois, todos e cada um, alguma coisa...

Grande abraço.

Graça Pires disse...

Vale mais tarde que nunca, é verdade. E se cada um de nós fizer o que ainda não foi feito dentro das suas possibilidades e vontade, talvez haja esperança. Gostei do texto.
Um beijo, amigo.

lino disse...

Bonito e significativo texto!
Abraço

mdsol disse...

Muito bem

:))

São disse...

cada vez mais é necessário estar com atenção, sim, ao que é dito e feito quer a nível nacional quer internacional!

Beijo.

jrd disse...

Grande texto!
Fazer bem o que ainda não foi feito e refazer muito do que já foi (mal) feito.
Abraço

batista disse...

"Não nos deixemos cegar!
E cada um, à sua medida, faça “o que ainda não foi feito...”

Tuas palavras, Amigo-Irmão, água da chuva...

Ausente, mas não esquecido da importância desse teu/nosso espaço para nossas consciências e sensibilidade,

deixo um abraço fraterno.

Anónimo disse...

Um extraordinário texto para reflectir nas atitudes do comportamento do ser humano, que está a tornar-se mais individualista.

"Fazer o que ainda não foi feito"... um grito de alerta a todos os níveis.

Obrigada pela partilha da sua reflexão.

Bom fim de semana.
Beijo.

jawaa disse...

Pois, meu amigo, sempre directo e pertinente o que escreves. Assim todos pensassem e actuassem.
Bastaria que cada um de nós fizesse um pequeno esforço e fizesse alguma coisa, consigo, com os outros, para si, para os outros, do que aponta como falhas. Apareceriam resultados.
Tal qual aquela história de se desligar a luz por um breve minuto, todos ao mesmo tempo, e ver-se o resultado a nível nacional.

Um abraço

Anónimo disse...

num regresso para leituras, esta foi a que mais me preencheu e enriqueceu, de tão maravilhosa. um grande beijinho, herético.

lis disse...

E tal qual as formiguinhas, se cada um fizer um pedacinho e Bem Feito o resultado aparecerá , mesmo que ainda demore.
Façamos, pois.

abraços heretico

GP disse...

O que ainda não foi feito é um problema mas o que já foi feito, e mal feito, é um problema maior.

beijo

Virgínia do Carmo disse...

E há tanto a ser feito... e tanto é o que se vai desfazendo ...

[E olhar a humanidade pode doer tanto]

Um abraço

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