segunda-feira, setembro 20, 2010

O Zeca anda em baixo... Parte II

O Zeca, como por certo adivinharam, caiu nos braços do Artur, soltando expressões de júbilo de adolescente:

- “Ó pá, ó Fontes, nem imaginas o prazer que me dá a tua presença!”:-balbuciava o Zeca, num abraço arrebatado, acompanhado de dois sonoros e inesperados beijos, na face escalavrada do bom do Artur Fontes... (A mim que, por vezes, tenho a presunção de ler a alma humana, pareceu-me ver soltar-se, intimamente, uma lágrima jubilosa daquele corpanzil um pouco fanado do Zeca...)

E o Artur, procurando libertar-se, num sorriso pleno de subentendidos:- “Já chega, pá!... Estás a ficar a ficar piegas!...” E, perante a gargalhada geral:- “ E essa dos beijos não te perdoo. Que assedio é este? Queres levar-me ao altar, ou quê?!...

É assim o Artur! De uma ironia, por vezes cáustica, em que disfarça uma generosidade e uma sensibilidade sem mácula... Sem nunca virar a cara a uma boa refrega nas causas em que acredita....

Assim, desde sempre... Quando jovens, nós fazíamos, (mais ou menos), a “revolução de café”! Porém, o Artur abalançava-se na aventura de “passador de fronteiras”, na tentativa de arrebatar à guerra colonial os jovens de qual se alimentou por longos anos.

A iniciação do Artur nessas lides teve, porém, o seu quê de atribulado. Beirão de gema, daquela estirpe (cada vez mais rara) de “antes quebrar que torcer”, voluntarioso quanto baste, movido pela mais genuína amizade, o Artur prontificou-se, em certa ocasião, a colocar em França um amigo, cujo nome não vem para o caso, que gemia, pelas esquinas e cadeiras de café, o pavor de embarcar para África, cuja mobilização estava iminente...

E foi assim, que no dia aprazado, os dois rumaram à fronteira, algures no norte do País. A noite de breu gelava. A chuva fustigava o rosto. As urzes rasgavam a roupa e a carne e os silvos do vento, ecoando nos penhascos, ganhavam dimensão apocalíptica. Em cada ruído inesperado, passador e fugitivo viam a aproximação da polícia. Desconhecedores do local, perderam o rumo, às voltas em círculo, mal se afastando 10 km do local da partida.

Até que por fim, de madrugada, apavorados e rendidos, tiveram um rasgo de bom senso e desistiram. O fugitivo foi entregue, no Porto, a “quem devia ser entregue”, isto é, a quem estava preparado para a missão, que então sim, mais tarde, pelos circuitos da clandestinidade, acabou por se refugiar em França...

Mas pensam que o desaire afectou a determinação do Artur?!... Pelo contrário, serviu-lhe de aguilhão e estímulo. Hoje, confessa, com uma pontinha de orgulho a brilhar nos olhos, que passado algum tempo, conhecia, como ninguém, todas as veredas, caminhos e atalhos, ao longo de toda a fronteira com Espanha, que lhe permitiam ludibriar a vigilância fronteiriça e os esbirros da PIDE.

Para a aquisição de tal “know how”, nas suas múltiplas deslocações a Espanha permitia-se correr riscos e passar a salto, estudando a topografia do terreno e memorizando pormenores, de forma a que, no dia em que fosse necessário, não haver hesitações ou dúvidas.

Aliás, o método tinha tanto de simples, como de eficaz. Munido da respectiva carta topográfica da área geográfica em causa, encenava uma viagem turística a Espanha e seguia com a família de automóvel até a proximidade da fronteira.

Resguardada que fosse alguma distância de segurança, apeava-se e os acompanhantes prosseguiam normalmente submetendo-se aos respectivos controlos fronteiriços. Entretanto, o Artur avançava a pé e a corta mato, de carta topográfica em punho, registando mentalmente qualquer acidente de terreno, qualquer marca ou sinal, memorizando uma espécie de “abecedário do território”, que lhe permitiria mais tarde decifrá-lo, mesmo de noite, quando fosse necessário

Do outro lado da raia, no local combinado, os acompanhantes aguardavam, simulando, no caso de aproximação da Guarda Civil, uma avaria ou outro qualquer expediente, que despistasse a vigilância policial, até o Artur chegar e poderem prosseguir viagem...

No regresso, o mesmo percurso para cimentar o itinerário no registo da memória!...

Foi, aliás, a propósito de uma dessas viagens de reconhecimento, que o Artur contou naquela noite, já não sei a que propósito, uma cena digna das melhores anedotas que, sobre o negrume daqueles tempos, se conhecem...

O episódio conta-se aliás em poucas linhas. Já em fins do regime, algures na fronteira do Alentejo, de regresso de Espanha, o Artur, acorrentando ao seu destino de mapear na memória os percursos da evasão, deparou, em sentido contrário, na vereda onde seguia, já no lado português, um soldado da GNR, que à distância lhe pareceu acenar-lhe....

Que fazer?!... Recuar não podia, pois seria denunciar-se; prosseguir era cair na boca do lobo, que é como quem diz na ferocidade da polícia portuguesa. O dilema, porém, demorou uns escassos segundos: - “P´ra frente é que é o caminho e seja o for!...” , animou-se o Artur, apelando ao melhor do seu sangue frio...

Meteu a mão na algibeira das calças, onde por cautela, trazia engatilhada, para qualquer emergência, uma pequena pistola e desabafou para os seus botões:

-“De homem para homem, neste ermo, não me apanhas! ao primeiro gesto hostil ficas estendido no chão com um tiro na testa!...

E prosseguiu caminho o Artur, com os nervos e músculos retesados, de encontro ao inevitável guarda. Ao cruzarem-se na estreita vereda, o guarda correspondeu amistosamente à saudação e seguiu como se nada fora, o que o levou o Artur a presumir que “daquela já estaria safo”...

Eis senão quando, uns metros andados, o guarda se voltou e gritou:

- “O senhor aí, faça favor!...”

Gelou o sangue nas veias do Artur e a mão acariciou a coronha da arma. Voltou-se, calmamente, como se nada fosse:

- “Que se passa, senhor guarda!...

E o agente da autoridade, a quem a Nação tinha confiado o zelo das fronteiras e, quiçá, a honra da Pátria, que uns desnaturados, a soldo do comunismo internacional, abastardavam, num sorriso comprometido, indagou timidamente:

- “Será que por este caminho chego a Espanha sem ninguém me ver?!...Sabe como é - a minha mulher faz anos em breve e gostava de lhe poder oferecer uns caramelos!...

Respirou fundo o Artur. E, na sua melhor bonomia, respondeu, sorrindo:

- “Sem dúvida, senhor guarda! aqui tem a prova, acabo de o fazer!...

E, cada um, seu destino...

Nesta altura da narrativa, o Zeca, até aí um pouco apagado, erguendo-se da cadeira, interpelando, azedo, o Artur:

- “És um grande nabo!... Se em vez da política te tens dedicado ao contrabando de café, hoje podias ser um grande nababo!... Talvez comendador, de medalha ao peito"...

E o Artur, sempre tão austero e arredio a modas, num sorriso tolerante, socorreu-se de um obsessivo slogan, instalado nas noites televisivas, para afirmar:

- “Lá poder, podia!... Mas não era a mesma coisa!...”

Assim os homens. Alguns homens...






19 comentários:

hfm disse...

Quando a palavra é de oiro.

Rogério G.V. Pereira disse...

Destas pequenas estórias se constroi a história e... a memória da fraternidade entre amigos. Bom texto.

Anónimo disse...

gostei muito de ler este e o outro texto, heretico. zecas e artur's não faltam neste mundo :) um grande beijinho.

São disse...

Que alívio saber que ainda restam pessoas desta fibra!!

Uma felzi semana

lino disse...

Só os Homens são assim!
Abraço

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

que narrativa.

gostei muito de ler.

um beij

jrd disse...

Que maravilha de texto.
Saboreei-o tanto, que até os caramelos do gnr se me colaram ao céu da boca...
Um abraço

Maria disse...

Que textos deliciosos!
E como gostei do teu Zeca e do teu Artur...

Beijos.

C Valente disse...

Passei e deixo as cordiais saudações amigas

Menina Marota disse...

A tua excelente forma de narrares com alma a alma de outros...

E fiquei presa à tua escrita...

Bj :-)))

Graça Pires disse...

Fui ler a primeira parte desta hitória, ao mesmo tempo comovente e humorística. É também um hino à amizade e à liberdade.
Um beijo, amigo.

Mar Arável disse...

É bom não perder a memória

mas também e tão bem

como o fazes

Abraço

Nilson Barcelli disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nilson Barcelli disse...

Conheci um passador.
Que toda a gente sabia que o era.
Até a GNR e a PIDE.
Misteriosamente, nunca foi preso...

Noites a recordar o passado, por vezes são bem agradáveis.

O teu texto (dois, aliás) é bem grande. Mas lê-se com agrado. Porque está bem escrito... não é enfadonho... antes pelo contrário.

Abraço.

Maria P. disse...

Que maravilha!

Beijinho*

GP disse...

Um texto excelente. Que memórias! Que recordações!... para quem viveu estes tempos.

E afinal o Zeca? Anda melhor?

beijo

GS disse...

de volta, amigo!
Continuas numa excelente narrativa que, apesar de teu amigo 'Zeca andar em baixo' nos faz sorrir!

Sempre me prendes nas tuas histórias, numa escrita perfeita.

Um beijo,

Virgínia do Carmo disse...

Finalmente consegui vir e ler até ao fim!

Incrível como a vida vai deixando, histórias tão intensas e interessantes...

Um abraço...

Gabriela Rocha Martins disse...

dizes muito bem - alguns HOMENS


.
um beijo

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