quarta-feira, janeiro 12, 2011

Os cravos e as orquídeas (ou as urtigas?).


Quando, em meados dos anos oitenta, Cavaco Silva ganhou as primeiras eleições legislativas, tive a oportunidade de publicar, num jornal diário, entretanto desaparecido na voragem do “pensamento único”, uma pequena crónica, intitulada “Os cravos e as orquídeas”.
De facto, sugestionou-me na altura que, na euforia da vitória, da varanda de um qualquer hotel de Lisboa, o vencedor das eleições e sua emérita esposa, acenando à multidão de prosélitos, ostentassem nas mãos, em lugar de cravos vermelhos, vivos e fraternos, uma deslavada orquídea, em que a pequena burguesia se revê, como símbolo de promoção social.   
O despretensioso texto por ai deve andar, amarelecido, misturado com outras tralhas, em qualquer estante ou gaveta, mas a ocasião não me permite revistá-lo para convosco o partilhar, à luz da realidade actual. 
Digo-vos, porém, que de alguma forma profetizava então o fim de um ciclo, ou se quiserem, considerava que as ondas de choque, que o “25 de Abril” havia provocado nas águas paradas de sociedade portuguesa, se tinham esbatido até a exaustão. E, que daí em diante, a direita tomaria o freio nos dentes e, a toda a brida, procuraria apagar as conquistas sociais e os próprios sinais libertadores da generosa revolução.
É certo que o processo de recuperação capitalista, como então se dizia, era anterior ao cavaquismo emergente. E que, sem a explicita cumplicidade, (quando não a iniciativa) do partido socialista esse processo não teria tido êxito.
Bem se sabe, também, que a dita “Aliança Democrática”, de que o cavaquismo é herdeiro, em ataque frontal ao “25 de Abril”, procurou, no princípio década, uma “maioria e um presidente”, que dizer, almejou ter as mãos livres para liquidar as conquistas da revolução. Todos conhecemos em que circunstâncias políticas tal desígnio foi travado, nas quais ressalta a visão patriótica do Partido Comunista Português, que, engolindo sapos, contribui, decisivamente, para a derrota presidencial da direita.
Momentos marcantes, sem dúvida. Foram altos e baixos de uma corrente de luta e de resistência, que os trabalhadores se empenharam na defesa do Futuro, que então se anunciava sob o signo da direita…
Mas tenho para mim, (como no pequeno texto considerava), que naquele gesto simbólico de exibir orquídeas em vez de cravos, se condensava um certo ressentimento de classe e que uma nova ordem social se inaugurava, com a arrogância e a grosseria de quem sobe a pulso na vida e de que Cavaco Silva se considerava (e considera) lídimo representante.
Naturalmente que nesta anotação pessoal não está em causa o mérito do trabalho, nem o legítimo mérito social que dele deve decorrer. Pelo contrário: o que aqui se verbera é uma certa ideologia pequena burguesa de videirismo social, em que a luta pela vida passa pelo “salve-se quem puder”, quando não mesmo por espezinhar os outros.
Ou então se manifesta na auto-satisfação complacente “de quem nunca se engana e, raramente, tem dúvidas”…   
Subiu, pois, Cavaco Silva na vida e na contemplação de si próprio. Foi primeiro-ministro durante dez anos e foi vê-lo a trepar ao coqueiro e a engasgar-se com a boca atafulhada de bolo-rei…
E a destruir a indústria, a agricultura, as pescas e a produção nacional. E a alargar o deficit alimentar do País e a dívida externa. E a congeminar o “monstro” das parcerias público-privadas. E a hipotecar as finanças públicas e o futuro do País, em delírio de novo-riquismo de obras públicas, num “fontismo” de pacotilha, em beneficio dos empreiteiros do regime. E, em fundamentalismo neoliberal, a privatizar serviços na saúde, na educação e nas empresas públicas, em nome da falácia “de menos Estado, melhor Estado”.
 E a safar-se, mais tarde, ele e amigos políticos, com as trafulhices do BPN, que os portugueses estão a pagar agora, num buraco sem fim à vista…
Claro que a crise não é com ele. Lava daí as mãos. Como Presidente da República fez uns discursos enigmáticos e enxundiosos. Alertou e não foi ouvido – diz ele.
E é muito amigo dos pobrezinhos. Valha-nos Deus!
Em escrutínio eleitoral, ofende-se como uma prima-dona, quando confrontado. A seriedade é propriedade privada de sua excelência. Ninguém mais honesto que ele! – Teriam que nascer duas vezes, garante-nos!…
É agora uma boa oportunidade de nos libertarmos definitivamente de semelhante suplício. Prescindir de seus méritos e experiência e reduzir sua excelência à sua condição de “mísero professor” (se ele o diz, quem sou eu para duvidar?).
E, em generosa e festiva vitória de cravos vermelhos sobre as deslavadas orquídeas, celebrar Abril. De novo…
(Exorcizando a coceira das urtigas que nos espera, se for o contrário …)



    




16 comentários:

Eu, Meu Contrário e Minha Alma disse...

em coro:

A ameaça deixará de ser velada:
Uma maioria,
um governo
um presidente
e uma nova Constituição...
Não!
Não passarão!

jrd disse...

Excelente texto!
A coceira cavaquista alastra, graças à cumplicidade espúria de muitos que fizeram do cravo um adorno de circunstância, porque sabem que as urtigas não os picam.

lino disse...

A orquídea era uma prenda do Bokassa da Madeira.
Abraço

O Puma disse...

Texto para saborear

Quanto ao Cavaco
só lamento os que ainda acreditam
nas suas impressões digitais
Quanto aos cravos vermelhos
só vivendo
em pensamentos palavras e obras

Abraço sempre

luis lourenço disse...

lúcida análise...poeticamente lindas as orquídeas!... mas fazem tanta falta os cravos da liberdade.
Esperança no futuro...temos de a ter e lutar por ela.

Abraços,

Véu de Maya

Anónimo disse...

Excelente texto lido avidamente por mim e para reflexão no momento certo.

Beijos.
Maria

Nilson Barcelli disse...

Desta vez estou de acordo contigo.
Menos numa coisa: acho que já não nos livramos do Sr. Silva...
Um abraço.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Cavaco Silva foi o pior PR do pós-25 de Abril. E não me refiro só aos considerandos que foram colocados neste post. Refiro-me a que nunca vi um PR lavar tanto as mãos e demitir-se tanto das responsabilidades.
Claro que pode vir a ser eleito. Mas não pela vontade da maioria dos portugueses. Pode vir a ser eleito pela desmobilização, pela descrença e pela falta de consciência política que levam a que 50% dos cidadãos eleitores se abstenham e que a maioria eleitoral, que dá a vitória a um candidato, seja encontrada sobre os 50% que votam.
Dito por outras palavras: 25% dos cidadãos eleitores podem eleger o PR de todos os portugueses.

Abraço

C Valente disse...

Quem acreita nestes politicos,A mim não me apanham, pois nele PR nunca acreditei
Lindo
saudações amigas ebom fim de semana

Silenciosamente ouvindo... disse...

Subscrevo o seu artigo. Havia necessidade de todos os portugueses
estarem atentos. Mas estarão?
Duvido.
Um abraço

© Maria Manuel disse...

excelente análise da situação! infelizmente, o tempo é e tem sido de «urtigas» e os pobres são cada vez mais pobres :(

abraço!

São disse...

Tu desculparás, mas aquilo não é auto-satisfação: é o maoir atestado de estupidez que eu vi alguém passar a si mesmo, em toda a minha vida!!

Quanto ao resto , estamos de acordo.

Um abraço

Virgínia do Carmo disse...

Tenho muita dificuldade em comentar... porque trago o entendimento às voltas com toda incoerência que grassa na nossa vida política...

Um abraço de solidária indignação

vieira calado disse...

Valha-nos Nossa Senhora da Agrela...

que não há santa como ela!...

Um forte abraço

GP disse...

Precisava que alguém me convidasse para passar o fim de semana das eleições fora do Porto. Assim, não precisava de decidir o que fazer com o boletim de voto e desculpava-me de não ir votar. Se, ao menos, tivesse a certeza que no meu voto branco ninguém colocava cruz nenhuma, tinha o meu problema resolvido...

beijo

mdsol disse...

Não me conformo.

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