quarta-feira, fevereiro 23, 2011

"QUEM QUER CONHECER O VILÃO..."



“Quem quer conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão”!…- dizia-se,  no espaço social rural, onde no tempo da infância modelei o carácter.  A “vara” era, naturalmente, a “vara do poder”, que ainda hoje, nas instituições mais conservadoras, tem a devida consagração.

Bastará recordar, por exemplo, o ceptro régio” nas monarquias, ou “báculo episcopal” na igreja católica, que outra coisa não são, como sustentam os antropólogos, que reminiscências históricas, em que a vara era também instrumento de punição física...

De facto, quem algum dia teve a oportunidade de ler Michel Foucault sabe que não há verdadeiro poder (político e social) sem poder efectivo sobre os corpos, seja na fogueira, no pelourinho, nas prisões ou nos hospitais psiquiátricos. Ou na organização física da vida quotidiana, mediante a atribuição (ou não) de um salário…

Seja como for, a liturgia do poder, naquele tempo, era de uma singeleza exemplar – uma simples vergasta de freixo entronizava, simbolicamente, a arquitectura social daquele microcosmo, onde cada um sabia, exactamente, o seu lugar…

Claro que, contrariamente ao que sustenta um certo idealismo romântico, a sociedade não era homogénea; pelo contrário, as fissuras e as clivagens sociais eram profundas e ferozes.

Aliás, o lugar social de cada um reflectia-se, na própria ocupação física do espaço publico, com lugares reservados na Igreja e na praça e outros locais de ocupação colectiva. E até no exercício de determinadas profissões. Ou a honra da “atribuição da vara”, que apenas alguns estava reservada… E, que se era um privilégio, era também múnus e dever social de a todos velar de igual forma…

Em síntese, a vara do poder, simbolizava o poder social e político sobre a comunidade (não o poder de Estado, que apenas ali chegava para colher impostos), selectivamente, atribuído às famílias que, pelo seu ascendente social, granjeavam o respeito da comunidade. Nesse ritual de poder, a dimensão do património era elemento essencial, como bem se compreende…

É óbvio que tal modelo social ruiu. Nem eu sou saudosista desses tempos de miséria e obscurantismo, como farão justiça de considerar. Mas, como bem sabem, o tempo sociológico, é um tempo de amplitude ampla, cujo paradigma permanece para além do ritmo, ou seja, do esgotamento dos seus efeitos…

Admito, portanto, que muitos dos epifenómenos da nossa vida política ganham plena expressão e significado, à luz da matriz do nosso passado (ainda quente) e do modelo social rural, que mal ultrapassamos…

Vêm à ideia estas desconchavadas linhas, perante a despudorada pulsão dos representantes do “melhor” capitalismo caseiro, em ocuparem, lá do alto dos seus milhões, o espaço mediático (que outrora se cingia aos limites da praça pública) e o centro da vida colectiva, como se o País fosse uma coutada privada e a nossa democracia tributária da “vara do poder” (ou da chibata) com que gerem os seus interesses...

Recentemente, foi o merceeiro mor do reino, um tal senhor Alexandre de sua graça, que em directo para quem o quis ouvir se insurgiu, a propósito não se almeja de quê, contra o senhor Sócrates e as políticas do seu governo, mimoseando o primeiro-ministro com alguns adjectivos pesados, dos tais que nem Mafoma usaria contra o toucinho…

É certo que o senhor Sócrates merece todos esses adjectivos e outros que tantos. Por outras e boas razões que não as do senhor Alexandre…

Mas uma coisa é apelidar o primeiro-ministro com uns sonoros adjectivos numa manifestação de rua, como expressão colectiva de descontentamento social. E outra é o chairman de um próspero grupo económico, por ganância ou desfavor, do alto da sua pesporrência, na televisão, vir à praça pública, desrespeitar um órgão de soberania. Urgiria, a propósito, recordar-lhe que o “lugar social” donde se fala releva, decisivamente, na ressonância do sentido de uma qualquer expressão…

Ao que consta, o primeiro-ministro terá reagido, na oportunidade, como se impunha, mandando dizer ao encrespado ricaço que “não basta ser rico para se ser bem-educado…”.

Por mim, a quem não seduzem punhos de renda, dir-lhe-ia que são aleijões de marçano, que os milhões não disfarçam…

“Quem quer conhecer o vilão…”          

    


9 comentários:

hfm disse...

Meu amigo, neste pobre país teríamos muito varas para meter na mão de muitos... infelizmente.

jawaa disse...

Identifico-me com este tua análise sobre os «senhores» actuais do nosso país que regem as suas atitudes pela quantidade de dinheiro que têm no banco, como se isso significasse alguma coisa.
A Educação (como a Elegância) vem do berço, demora tempo a crescer, constrói-se com humildade e respeito e não há dinheiro que a compre.

lino disse...

Na minha aldeia, de mais de 3 mil habitantes, não havia isso da vara e todos respeitavam todos, embora houvesse hierarquização: padre, professora, regedor, ricos, remediados, pobres e miseráveis. Quanto ao merceeiro mor, o tuga ignorante gosta disso. Se um dos dois merceeiros resolvesse candidatar-se a um cargo político, ganhava folgadamente.
Abraço

ANALUKAMINSKI PINTURAS disse...

Parabéns pelo texto bem tecido, inteligente e provocativo!!!

Lendo o que escreveste no começo, sobre a vara, o bastão, o cetro... como símbolos do poder, não pude deixar de associar a imagem simbólica e os próprios conceitos de poder atrelados aos símbolos fálicos e patriarcais. Lembraste de Michel Foucault, e seus discursos sobre o poder, e eu lembrei de Freud, e suas alusões ao falo, hehehe!

Bem, é certo que algumas coisas andaram mudando... Um século atrás, as mulheres brasileiras nem podiam votar, e hoje temos uma mulher na presidência, aqui no Brasil...

O que acontecerá eu não sei, mas é certo que os símbolos de poder continuam existindo, e que nem a vara, nem o cetro, nem o falo, perderam sua carga simbólica, ainda que o patriarcalismo esteja bem desmoralizado...

Abraços alados azuis!

Mar Arável disse...

Excelente o teu texto na educada forma literária de abordar o relacionamento dos vilões
na forma e no conteúdo
mas vilão que insulta vilão
não tem mil anos de perdão
se houvesse vara
eu seria voluntário
para vergastar os dois
muito antes de se apaziguarem

Abraço amigo sempre

Gabriela Rocha Martins disse...

subscrevo todas as tuas palavras ...TODAS ...deste belíssimo texto


.
um beijo

Virgínia do Carmo disse...

Quando a riqueza material e o poder são as únicas ambições dos homens, a dignidade vai perdendo terreno... e começo a acreditar que o processo é irreversível...

adorei o texto, obrigada!

Um abraço

uminuto disse...

subescrevo a análise e lamento apenas que certas varas não sirvam para dar educação, em vez de a retirar pela ambição do poder

luis lourenço disse...

se a coisa não fosse tão séria... contava um anedota... mas...
Deixo.te um abraço

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