domingo, janeiro 22, 2012

Carta a Álvaro...

Confesso a minha resistência psicológica em tratá-lo por “Álvaro”, nome com que pretende entrar nos anais da história pátria, ao que consta. As razões da minha resistência, se exceptuarmos os seus prosélitos, são evidentes – o nome que ostenta tem uma dimensão que pessoalmente o ultrapassa.

Estive, por isso, tentado a nomeá-lo por “Alvarinho”, mas ocorreu-me a marca do excelente vinho verde e conclui que também não merece esta aproximação. Presumo que o senhor, peso pesado e “mercenário dos mercados”, em matéria de vinhos, será mais pelo carrascão martelado…

Por momentos, ponderei também se deveria designá-lo por “Alvarito”, nome mais conforme com as travessuras do pastel de nata e com as finezas de Belém, mas lembrei-me das “frechadas” certeiras que ultimamente o têm assediado e desisti. Afinal, que contributo poderia este modesto escriva dar para tão empolgante tarefa de equilibrar a balança de transacções correntes, mediante o pastel de nata? A excelência da ideia esgota todo o universo de outras possibilidades…

Fica, pois, para minha contrariedade, consagrado como “o Álvaro”, como pretende, mas não me levará a mal que o trate, por V. Ex.ª, que está mais no meu jeito de homem cordato. Aliás, como diria o outro, os nomes são como os chapéus – nem todos assentam bem em qualquer cabeça…

Mas, enfim, o que verdadeiramente me traz à liça, não é tanto a trama e o “peso” de seu nome, mas antes o pletórico entusiasmo com que se propõe, mediante as peripécias da concertação social, dar “novos mundos ao mundo”, quer dizer, “uma lição ao mundo e aos mercados…”

Terá V. Ex.ª razão em estar eufórico. A assinatura dessa coisa a que chama enfaticamente “Compromisso para a Competitividade e o Crescimento” vale bem os “trinta dinheiros da traição”, quer dizer, os trinta minutos de trabalho diário sem retribuição (trabalho de escravo, portanto) que foi obrigado a engolir. Por força da combatividade dos trabalhadores e da sua luta - é bom que se diga - e não por efeito das proclamadas virtualidades da concertação social.

Quanto ao resto, bem pode V. Ex.ª e seus acólitos da UGT, limpar as mãos à parede. Uma verdadeira fraude aos trabalhadores, que em vez de meia hora de trabalho diário são agora obrigados a um maior número de dias de trabalho. Um “compromisso” leonino, portanto, que proclama como o alfa e o ómega da dita competitividade das empresas a diminuição dos custos salariais, o aumento do dias de trabalho e a facilitação dos despedimentos com menores custos de indemnização. Isto é, tornar os despedimentos livres e baratos…

Um retrocesso social inaudito, que tem no seu âmago razões ideológicas bem nítidas. A direita fundamentalista e as forças do capital nunca se conformaram com a perda de algumas parcelas de poder político e social, após a revolução de Abril e com a conquista de direitos económicos e sociais pelos trabalhadores…

Trata-se, assim, sob a capa da crise e o pretexto do crescimento da economia, de um ajuste de contas com Abril…

Poderá, portanto, V. Ex.ª embasbacar o mundo e os mercados, com seu “Compromisso para a Competitividade e Crescimento” e perfilar-se perante o espelho, pleno de auto satisfação. Os combates pela História, no entanto, forjam-se noutras instâncias e com homens de outra têmpera…

Como escreveu outro Álvaro, que V. Ex.ª ouviu falar, mas cuja obra lhe causa calafrios (andam “fantasmas” por aí), “dos homens consequentes, daqueles cujos propósitos permanecem intactos, através das mais duras provas, daqueles que sabem sofrer sem desfalecimentos os golpes mais mortais, podem esperar combate sem tréguas. Combate oferecido, apesar de terem à sua frente todas as dificuldades de quem luta em terreno inimigo. Forçados por vezes ao “déguisement”, outras à prudência, outras ao silêncio. A história já decidiu quem vencerá”. (A. Cunhal – in “Obras Escolhidas – I Volume).



16 comentários:

AC disse...

Há que reagir, há que resistir.

Abraço

São disse...

Parabéns, muitos!

E quanto a exportações, porque não o cozidoà portuguesa, a cataplana, as queijadas de Sintra, as migas?!

Bom domingo

lino disse...

Excelente texto!
Abraço

mundo azul disse...

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...ah, se nos fossem explicadas as razões por que se comportam dessa maneira...!!! Muda o país, mas os problemas são muito parecidos, meu amigo...


Beijos de luz e o meu carinho!!!

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O Puma disse...

O trigo e o joio
Abraço

jrd disse...

Da fina ironia à amargura das palavras certeiras.
Um texto magnífico.
Parabéns.

Abraço

bettips disse...

Com lata tanta, julguei que falaria nas conservas de sardinha ou atum. Ou na cortiça. Ou nos têxteis. Ou no azeite. Coisas que a gente tem há muito.
Mas não: quedou-se pelo pastel. Que é. Coisa ali dos lados de s. bento onde se vive, coitados, acima das possibilidades reais.
Óptimo discurso discursivo. Afiar as facas enquanto afiam os dentes. Aqui, ali: até que "as pessoas" (recordo sempre que cerca de 40% se abstiveram mais os que votaram contra) que os elegeram ocupem o seu lugar: sociais democratas e popularuchos com o dinheiro dos que menos ganham. Ou seja, uma minoria.
Abç

George Sand disse...

Não podia ser...senão Álvaro.

jawaa disse...

Felizmente ainda há quem trate a Língua Portuguesa por tu, ainda sabe escrever com aquele travo de ironia bem portuguesa - carta digna de Ramalho ou Eça, sem lisonja!
É um prazer ler-te. Sempre.
Obrigada.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Deste alvarelho, alvaroz, alvarático ou meramente alvar não prevejo que a História venha a guardar memória.

Ainda assim, perturba-nos o presente com diletantismos e bardajolices serôdias, sempre com o anúncio da última descoberta da pólvora.

Pelo caminho, ficam os campos semeados de miséria.

É dar-lhes, meu caro, com essa pena dura, até que vergam e lá sigam para o seu destino trágico: o caixote do lixo da História, depois de terem feito os fretes devidos aos mandantes...

Abraço.

João Henrique disse...

A ironia num excelente texto.

Um abraço.

Nilson Barcelli disse...

É tão ridículo, que até custa a acreditar que gente desta tenha sido escolhida para ministro.
Mas ele não está sozinho na mediocridade em que se atola diariamente... com um padrinho (o Presidente) que se esmera em servir-nos exemplos ridículos do maior quilate.
Assino por baixo a tua excelente e oportuna carta.
Um abraço.

C Valente disse...

Carta espectacular
Saudações amigas

lis disse...

Oi heretico
sempre com sua fina ironia que me agrada a leitura mesmo que muito nao entenda.
e a referência aos pasteís de nata provocou desejos de ir por aí rs
fica abraços e saudade de ti

luis lourenço disse...

Um tiro certeiro ao alvo...Deseja-se muito que o Ministro Álvaro dê conta dos recado do povo...para não ficar tudo congealdo...pois aí nem com o famoso Alvarinho nos safamos...triste demais tudo isto...por vermos o nosso País neste vazio e decadência...que não nos falte a inspiração a todos...para darmos passos em frente...cuida-te na saúde, meu caro.

abraços,

Véu de Maya

maria cândida santos disse...

Depois de haver lido o primeiro texto desde blogue e lendo agora este outro, penso que é lastimável
que não esteja identificado o autor do mesmo.
Por uma questão de coerência democrática.
Maria Cândida santos

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