domingo, dezembro 28, 2014

EM LOUVOR DE LYDIA...


Em seu desenfado no Olimpo jogam os deuses aos dados
E concedem-nos esta hora...

Ergamos a taça. E celebremos, Lydia!...

A flor que colho poderia não ser.
Bastaria que outra fosse a cor
Com que enfeito teus cabelos...

Mas os cabelos são loiros e vermelha a flor.
Isso nos basta!...

Recolhe pois a inquieta ruga. E o arrepio.
Que o Universo é apenas filosofia.
Uma infinita forma abstracta por onde descemos
Até ao rio que nos leva
E a brisa que nos guia...

Entrelacemos os dedos, Lydia!

Que o rosto dos homens é frágil tela
Por onde a Sombra perpassa.
E a água se derrama e se mistura
Com a cor das dores
E da alegria...

Beijemo-nos!

Que a hora passa, Lydia,
E a tarde cai.
E há fios de Sol
A bailar em teus cabelos.
Ainda!...

Manuel Veiga

Nota – Como se sabe, Lydia é uma criação literária de Ricardo dos Reis.
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Votos de Bom Ano!...
Carpe diem!




sexta-feira, dezembro 26, 2014

SUAVES SORTILÉGIOS...


Falam-me estes dias de suaves sortilégios
Quando os olhos sorriam na ternura de um afago
E teu regaço, Mãe, era altar e refrigério…

Não havia profusão de cores. Nem artificio.
Tudo se resumia à singeleza de teus dedos
Ajeitando o musgo sobre a pedra.
E a imaginada gruta onde construías o milagre
Aninhando-se em mim: – Deus menino!...

Que o outro Menino era apenas pretexto.
Natal que tu não sabias, então, Mãe, mas eu sei.
Hoje!...

E em que incréu teimo!...

E a mãe celeste era a amorável devoção
Com que enfeitavas o caminho. E deitavas
Nas palhinhas o meu olhar deslumbrado
E o doce encantamento…

E a liturgia imaculada do presépio!...
E esta eterna dor da ausência. E tua presença
Iluminada que pressinto em cada passo!… 

Manuel Veiga  

sexta-feira, dezembro 19, 2014

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXVII


“Gloria in excelsis Deo...”

Gosto de pessoas. Por vezes próximas, respirando ao mesmo ritmo!.. Outras (quase sempre) apenas momentos, riscos de acaso, meteoritos intensos na solidão da cidade. Uma viagem de autocarro (ou de metro) é sempre uma revelação inesperada. Pequenos nada que nos perseguem (momentos, horas, dias?) e que exigem que os soltemos, de tão intensos...

Gosto de gente anónima. De seus rostos. Da linguagem subtil dos seus gestos. Do seu porte. Do pulsar do meu Povo!...

Por vezes, a cor desânimo, toma o sangue. O cepticismo cria raízes e uma ironia triste ocupa o espaço da esperança. Porém, do meio da multidão, surge tantas vezes, sem nos darmos conta, uma imagem, o resto de uma carícia, uma ternura, uma beleza inesperada que humaniza e reconforta. Que nem sempre estamos disponíveis para ver e que, outras vezes, guardamos como refrigério de alma...

Falo-vos de uma viagem de autocarro entre o Rossio e o Cais de Sodré. Na curta distância, cenas dignas de um pintor impressionista - o melhor e o pior de um Povo concentrado no escasso espaço de um autocarro, à hora de ponta. Nada que seja diferente de outras viagens.

Até que...

Uma jovem mãe, de rosto trigueiro e olhar apaziguado, entrou, aconchegando no colo uma criança de escassos meses. Sozinha, face as intempéries e os balanços da vida, ali bem simbolizados nos apertos e balanços do autocarro. Um jovem, de brinco na orelha e crista de galo loira, cede-lhe o lugar (no meu íntimo, um sorriso freak!)

Acomodou-se a “minha" jovem Madalena (era, de certo, este o seu nome!) com o bebé nos braços, sereno que nem um anjo. E alheia a tudo que não fosse a sua novel maternidade, a jovem soltou o seio da blusa (mármore puro) e a boca da criança, em esplendor, buscou afoita o mamilo, assim exposto em dádiva!

Vi então olhares brilhantes nos rostos cansados dos transeuntes. Vi ternuras caladas e inesperados silêncios. Vi orações pagãs em cada sorriso!...

E, em época natalícia, a minha alma ateia, entoou um cântico de vida - "Glória in excelsis Deo!..."

Manuel Veiga  


FELIZ NATAL!...



terça-feira, dezembro 16, 2014

CURVAM-SE OS DIAS...


Curvam-se os dias. E no declive
A íntima inquietude de meus passos...

Amável embora a sombra espraia-se
Em azul neutro. Névoa desprendida
A derramar prenúncios. Quase tímida.
Dulcificando a erosão da cor e abrindo-se
Vagabunda ao seu destino espúrio...

Sem alardes. Que nada pode a subtileza do voo
Nem a coada luz da nuvem...

Apenas a rota das trevas e a imanência do sopro
A moldar a curva e a frágil senda
E os calcinados sonhos
Do poeta...

Manuel Veiga



sexta-feira, dezembro 12, 2014

FLAMEJANTES OS MASTROS...


Flamejantes os mastros. E as colinas.
Em nuas confluências
De abraços. E de pétalas...

Derramam-se na cidade rios e memórias.
E soltam-se os poetas. E os murais...

Em gesto largo sobre o gume dos olhares
Maiakóvski – vindo de um Futuro grisalho
De saudade e de tanta persistência! –
Abre-se no palco...

E grita em seu jeito gutural e bárbaro:
-“Este é o meu Povo. Ainda!...”

A seu lado, a Mulher de Vermelho
Solta a lágrima da fome
E a criança loira das espigas...

E
- Palavra de cristal em riste! -
Arranca os olhos e rasga-se em febre
E pitonisa inflama-se na língua e nos prenúncios  
E ergue-se na aurora dos dias que hão-de vir...

Na densa nuvem alvoroçada
A multidão ignara ri e chora...

E um velho caminheiro alquebrado -
De fadigas e da idade - sobe então ao mais alto dos mastros
E ascende em lume o rubro das bandeiras...


Manuel Veiga


terça-feira, dezembro 09, 2014

Corrosão da água sobre a pedra...


Derrama-se a palavra no corpo da escrita
Sem mais nada.

Leve fissura apenas. Milimétrica.
A imiscuir-se na tensão da espera. Como se arqueologia fora.
A corroer por dentro
Sem plano
Ou guia...

Mistura dissolvente. Benigna.
Corrosão de água sobre a pedra.
E alquimia do verso fugidio
E do incauto morfema...

Como se a inesperada espera fosse
Bicho alado. Já não apenas pedra.
Inquietação do poeta a engendrar 
As cores do poema...

E a dissolver a água e a pedra
Nas dores da hora.
E na escrita maior
Do Mundo!...


Manuel Veiga

domingo, dezembro 07, 2014

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXVI


Mais que “case study”, Babilónia é um caso estudado...

Hammurabi, o legislador, com o mar a bater na rocha, dos babilónicos faz alegres mexilhões...

Vende anéis e os dedos – e garante que os “vistos de oiro” são a salvação da Pátria...

A Praça encolhe os ombros. E, ávida, sorve o grande Espectáculo. Que as atribulações da justiça e os média alimentam - "sabidamente..."
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E uma ostra empedernida, com o Futuro no ventre: “Babilónicos mergulhem fundo e aguentem as ondas – não há parto sem dor, nem amanhãs sem trabalho...”

quinta-feira, dezembro 04, 2014

SÃO DE BRUMA OS TEMPOS...


São de bruma os tempos. E de barcos destroçados.
E gemidos que os escravos embandeiram
Como hinos...

São de bruma os tempos: apocalípticos...

Nas galés os cães devoram-se nos restos
E os sacerdotes queimam as vestes
E cobrem-se de cinzas
No interior das praças...

A cidade treme: são de bruma os tempos!...

No céu baralham-se as estrelas.
E as bússolas rasgam o norte no ventre das pedras
E na sede dos homens.

São de bruma os tempos!...

E nas inesperadas sarças
E no cume das montanhas
E no sol encoberto ainda desta aurora
E no vento de todas as profecias
E na insubmissão do grito
E ardor de todas as batalhas

E no azul das crianças famélicas e nuas
E na enxada de esperança
E nas torrentes da memória
E nesta safara...

São de bruma os tempos: ainda!

E planto a dor. E a bruma. E minha árvore – fio de água -
E minha palavra avara.
E celebro.
E rasgo.
E ilumino.

E proclamo da alvorada dos tempos
A fecunda claridade
Dos dias peregrinos.


Manuel Veiga


terça-feira, dezembro 02, 2014

Do Fim da História à Rarefacção dos Acontecimentos...


Estamos confrontados – dizem os historiadores – não com o fim da História, mas porventura com algo mais catastrófico, ou seja, com uma espécie de “rarefacção dos acontecimentos” perante a qual a história se tornou impossível.

Explicitemos esta ideia. Com a queda do Muro de Berlim e a falência do sistema soviético, o capitalismo “canibabilizou” todo o sentido de negatividade. Onde até então existia dialéctica ergue-se agora um percurso de sentido único. Onde até então a densidade dos factos se projectava nas consciências e empolgava militâncias, hoje os factos despenham-se na sua profusão e nos efeitos especiais com que a comunicação social os apresenta, banalizando-os, encharcando o quotidiano com marasmo do idêntico por toda a parte.

Na política, na cultura, nos média, na moda e até nas próprias causas que, mesmo quando se apresentam como “fracturantes”, são as mesmas, seguindo o mesmo padrão de sentido único...

Hoje, tudo se passa em tempo real. Já não há mais lugar à verdade real dos acontecimentos. Tudo se resume agora à coerência dos factos, imediatamente apreensível no alinhamento dos telejornais. Sabemos tudo, a toda a hora, na espuma do quotidiano...

A história fica paralisada, não por ausência de acontecimentos, mas pela lassidão das consciências, empanturradas de informação. As chamadas maiorias silenciosas, a imensa indiferença das massas humanas, a falta de mobilização cívica têm certamente diversas explicações. Mas a inércia social não resulta seguramente por falta de motivos para acção cívica e política...

Nesta espécie de auto dissolução da história, todos os mecanismos da democracia política se degradam. E, nessa degradação, se precipitam valores políticos, cívicos e morais. As próprias exigências do exercício da liberdade e de respeito dos direitos do homem não passa de um simulacro.

“A democracia planetária dos direitos do homem está para a liberdade real está como a Disneylandia está para imaginário social” – escreve Jean Baudrillard num livro célebre (A Ilusão do Fim – ou a greve dos acontecimentos).

Se com o colapso do sistema soviético, o capitalismo devorou, como uma paródia universal, a dialéctica e a história, ao assumir todos contrários, numa grotesca síntese sem alternativa, é porque, na sua veleidade de dominação totalitária, devora a própria substância do ser humano para o reduzir à sua essência de ser produtivo...

Salva-se, porém, a cultura da liberdade e dos direitos do homem! Mas salva-se?...

Que os digam os milhões e milhões de “gente descartável”, que à escala planetária são afastados, como excedentes (mercadoria, portanto) do processo de produção e de consumo.

Que o digam as prostitutas na Tailândia, os índios no Brasil, os escravos na Mauritânia, as crianças e as mulheres em Ceilão, no Paquistão ou na Índia! Que o diga África! Que o digam, nos Estados Unidos da América, os muros de milhares de quilómetros electrificados e a vigilância electrónica (e os rifles) apontados aos emigrantes mexicanos!...

“Da liberdade já só resta a ilusão publicitária, isto é, o grau zero da ideia, a que regula o regime liberal dos direitos do homem" (...) – exclama o autor referido, ou seja, “a promoção espectacular, a passagem do espaço histórico para o espaço publicitário, passando os média a ser o lugar de uma estratégia temporal de prestígio...”

Construímos a memória síntese dos nossos dias, mediante a profusão de imagens publicitárias que nos dispensam da participação dos acontecimentos realmente transformadores da vida e da sociedade

Nesta antecipação publicitária, se canibaliza o futuro e se procede à reciclagem dos "detritos" da história e dos mitos. Também os pais fundadores da nação norte americana, em nome da liberdade, permitiram a escravidão!...

Resta-nos a convicção que, ao longo dos tempos, sempre os escravos se revoltaram... E que, em seu "surdo ruído", a História prossegue seu caminho.

Bem se sabendo quão duras são suas dores...


Manuel Veiga

domingo, novembro 30, 2014

POEMA QUASE-NADA...



No corpo da Palavra
Um frémito
Uma cadência solta
Um alvoroço
Um meteorito que se despenha
E explode em luz branca...

E nessa infinita graça
Todo o universo se ilumina
E se condensa em subtil cântico
E se devolve
Quase-nada.

E vibrante se agita
E cativo se recolhe
E se atiça
E se derrama
No poema

Como festivo magma...

sexta-feira, novembro 28, 2014

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXV



Babilónia é uma selva. E um charco, onde reina poderoso rinoceronte – senhor do charco, julga-se o rei da selva...

Quando o lodo é mais denso, vem à superfície e despeja hiperbólicas indignações – que alguns confundem com rugidos...

Depois do “pássaro verde” - o “Espírito Santo dos milagres” - assume agora as dores do “animal feroz” – “preso sem ser julgado!...”, indigna-se...

E desfere palavroso ataque contra os juízes...
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E um velho jurista retirado da praça, mas não do Mundo: “dura lex, sed lex...” (a lei é dura mas é lei”, exclama. E pedagógico – “culpa, ubi no est, nec poena esse debet...” (onde não há culpa, não haverá pena...)

quarta-feira, novembro 26, 2014

SUBTIS INCANDESCÊNCIAS...


Sob a dominância dos escombros e dos dias gelados
Tacteiam os dedos a fina película dos muros
Em que a metamorfose da cal se desvanece
Como palavras gastas ou fomes caladas
Sem reverso...

Profusão de sombras por onde sobem nossas dores
Como larvas tecendo o casulo e a teia
Na amargura dos dias
E no degredo das paisagens.

Clarins sorvendo a alvura do silêncio
E sem mais restar que o sopro
E a inversão meteórica das vozes em polifónicos
Cânticos calcinados...

Nada sugere outra luz ou outra vibração
Que não seja o lusco-fusco e a palidez dos dias saturninos
Ou auroras de frio...

E no entanto o grito sufocado dos dedos
E os lábios gretados balbuciam inesperadas correntes
E águas soltas e margens extravasando percursos
Percorridos.

Subtis incandescências no topo das montanhas
Ou o delírio de pássaros talvez
A balancear o voo...


Manuel Veiga

segunda-feira, novembro 24, 2014

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXIII


Babilónia é uma selva. Onde predominam coiotes e outros animais menores...

Um dia apareceu um animal largo de promessas, que de si próprio dizia ser “um animal feroz”. E os babilónicos entregaram-lhe o poder...

Cedo, porém, verificaram que as promessas eram de submissão aos animais mais fortes da floresta, que estrangulam a cidade... Muitos o detestam, por isso...

Em gritaria a Praça, outrora tão solícita, hoje clama que a sua “ferocidade” não passaria de ganância. E em grande chinfrim os coiotes cercam o “animal feroz” - a quem invejam a presa...  
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E um velho leão, com a juba gasta e quase cego de tanto ver, indigna-se:

“Larguem o animal à sua sorte – e que a lei da floresta funcione! – Mas que os asnos (e os invejosos) não lhe atirem patadas...”


quinta-feira, novembro 20, 2014

HUMANOS - MARIA ALBERTINA (videoclip)


DA IMPORTÂNCIA DO NOME....


A Revolução liberal de 1789, como se sabe, aboliu os privilégios pessoais. E, na sua pulsão libertadora, fundou uma nova ordem social e proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão para a qual “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser baseadas senão na utilidade comum.”

Em consequência, a partir daí, o direito ao nome, no conjunto dos direitos de cidadania, não será mais objecto de outorga, isto é, imposição ou dádiva, mas antes considerado como direito natural, inerente a todos os indivíduos.

Sinal imprescindível da personalidade, o nome pessoal extravasa, porém, a palavra que o enuncia. Representa, sobretudo, aquilo que somos; ou seja, o nome é o símbolo que reveste o seu titular e unifica o indivíduo: estrutura corpórea, mas também a dimensão psíquica e conjunto de valores éticos, políticos, intelectuais e morais, que definem o carácter.

Por outras palavras, o nome constitui o sinal mediante a qual a sociedade nos interpela, a evocação pelo qual somos reconhecidos durante toda a vida e, de alguma forma, nos propaga no tempo, pois que, como símbolo da identificação e da individuação pessoal, nos vincula à nossa vivência e ao mérito (ou demérito) da nossa participação colectiva.

Na sua dimensão simbólica, o nome pessoal é também expressão de uma ideologia: de classe, de grupo ou de uma família. Os nomes pessoais falam para além das pessoas que designam. Revelam mais do que afirmam. Desde logo porque, hoje em dia, para as grandes massas aculturadas pela ideologia dominante são um fenómeno de moda. (“Maria Albertina porque foste nessa/ de chamar Vanessa/ à tua menina?”).

Noutros casos, sobretudo, nas classes dominantes, o nome pessoal é a projecção social de um futuro que proclama, por isso, no nome de baptismo se inscrevem as referências familiares dos antepassados mais distintos, num processo que (dir-se-ia) da mesma natureza com que os primitivos usurpavam o nome dos animais ou fenómenos naturais que os seduziam. Em boa medida, é verdadeira a expressão “diz-me como te chamas, dir-te-ei quem desejariam que fosses...”

Este fenómeno é replicado nos processos democráticos ou revolucionários, em que os nomes de líderes e de vultos destacados são assumidos pelas massas e os inscrevem no registo dominante dos nomes próprios em determinado momento histórico. Por exemplo, na geração do post 25 de Abril, são frequentes os nomes de “Vasco” e de “Catarina”, como homenagem a dois vultos maiores da revolução – Vasco Gonçalves e Catarina Eufémia.

Acontece que, na sua expressão simbólica, os nomes podem ser manipulados como instrumento de luta ideológica. De facto, como se referiu, o nome é direito natural de que todos homens, sem distinção, são sujeitos. Quer dizer, portanto, que o nome igualiza todos os homens, colocando-os, ao menos no plano formal (deixando por agora de fora as desigualdades derivadas da situação concreta de cada um no sistema de produção), em lugar idêntico perante o direito e a sociedade.

Mas se o direito igualiza, a ideologia distingue.

Vejamos. Os nomes produzem um efeito especular, unificador das características pessoais de cada um, que no seu conjunto definem a sua individualidade própria, como ficou dito. É mediante esse efeito que os indivíduos em concreto se reconhecem e a sociedade os interpela como homens e cidadãos. Eliminar ou elidir alguma das características individuais expressas simbolicamente no nome, será diminuir a personalidade do indivíduo. Ignorar deliberadamente o nome de uma pessoa é, de alguma forma, decretar a sua “morte civil”...

Quem seguiu atentamente, tempos atrás, os debates entre os líderes políticos, no contexto de umas eleições para a Assembleia da República e verificou a persistência da dr.ª Ferreira Leite, na altura presidente do PPD/PSD, em ostensivamente evitar pronunciar o nome de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do Partido Comunista Português, compreenderá o que pretendemos dizer.

Na boca da ilustre senhora, Jerónimo de Sousa foi sistematicamente nomeado como “senhor deputado”, privilegiando, face ao respectivo nome, o lugar institucional em que o Secretário-geral do Partido Comunista se move. Com um duplo efeito ideológico. Por um lado, negando, isto é, não pronunciando o seu nome próprio (Jerónimo de Sousa), negava-lhe também a distinta senhora a igualização social, no igualitário plano do contexto do debate.

Por outro lado, elidia (para além das efémeras funções de deputado), porventura, sem disso se dar conta, outras notáveis qualidades, que irradiam da personalidade do Secretário-Geral do Partido Comunista Português – p. ex., a sua história de vida, a sua militância política e a sua condição de comunista – e que, essas sim, dão “densidade” à personalidade de Jerónimo de Sousa.

O episódio traz-me a memória o célebre senhor Jordan, deliciosa personagem de Moliére, que “falava francês, sem o saber...”. Assim, passados mais de três séculos, também a nossa "mais esclarecida" burguesia, por ignorância e preconceito (ideológico), e com agudo instinto de casta, “faz ideologia ...  sem o saber!”.

Manuel Veiga




segunda-feira, novembro 17, 2014

FRÉMITO DE INSUBMISSA HUMANIDADE...


Mais além cumes desérticos e eternas neves
No colapso dos dias. Veredas de solidão na vertigem
E no abismo das cidades onde a cólera em surdina
Compõe a sinfonia do medo. E os pombos tombam
Feridos pelo ar fétido que respiramos impudentes...

Efémeros despojos na pantalha são pretexto
Das bombas incendiárias que trazemos no olhar
Do grito dos passos nas calçadas e das gargantas
Mudas. Do terror gelado no sangue supérfluo
Que derramamos - pão incerto que nos roubam!...

Despimo-nos e vestimo-nos na nossa nudez frágil
Como se o arrepio da pele fosse fluidez de orgasmo
E as heras que nos habitam e entopem as veias
Fossem diapasão de verdade ou memória de destroços
A que nos agarramos pressurosos de eternidade...

Por isso a montanha e os gelos. O refúgio de pássaros
Deserdados. E de itinerários perdidos na distância
Dos dias verdadeiros. Por isso o sonho crepuscular
Rangendo estéril de tão perfeito. Canto desesperado
Que em vão ecoa. Praças e rios que se negam fugidios...

Antes a harmonia do caos. O declive das colinas.
A imperfeita palavra. E a poética sem rima. E a luz.
E a treva. O sal das lágrimas e a raiva. E o punho.
E o sabre. E o peito aberto. E o caminhar vagabundo.
E o sangue em frémito de insubmissa humanidade...


Manuel Veiga

domingo, novembro 16, 2014

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXIII



Babilónia vende os anéis e os dedos. Mas a cidade está salva. E pródiga...

Vice-Hamurabi, o trampolineiro, inventa os “vistos de oiro”uma autêntica mina...

De oiro, está claro...

A Praça, idólatra, esfrega os olhos, aprisionada no labirinto – afinal nem tudo o que luz é oiro! O bezerro corrói as entranhas e o coração da cidade...
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E o fantasma de um velho filósofo, atroando os ares: “Babilónios, não desesperem, nem se rendam - oiro ou pechisbeque tanto vale!...

Oiro é a lucidez e a determinação da luta – o vosso trabalho é que dá valor às coisas...”


sexta-feira, novembro 14, 2014

SOBRE O AVILTAMENTO DA POLÍTICA ....


“O fascismo nunca existiu!...” A célebre “boutade” proferida, logo após o 25 de Abril, por um conhecido intelectual residente em França, tem sido recorrente na nossa comunicação social. E a carga irónica inicial, que subvertia o sentido literal do enunciado, fechou-se agora no seu significado facial, num claro propósito de branqueamento.

De facto, nos meios de comunicação social dominante, ao longo das últimas décadas, têm sido constantes as afirmações de que não houve fascismo em Portugal, no longo período de 1926 a 1974. Historiadores, sociólogos, politólogos e outros cientistas sociais juram a pés juntos que o regime não foi fascista, preferindo, em seus argumentos, expressões como “Estado Novo”, “antigo regime” ou “regime ditatorial”...

Porém, factos são factos. Que outro nome chamar a uma ditadura que edificou um Estado policial e totalitário e condenou à miséria, ao sofrimento, à ignorância e ao obscurantismo gerações de portugueses? Que outro nome dar à repressão criminosa com tribunais especiais, prisões políticas e campos de concentração e que não hesitou em assassinar, quando considerou ser necessário?

Como qualificar o gesto simbólico de Salazar manter, na sua secretária de trabalho, o retracto de Mussolini, junto do qual, aliás, se fez fotografar? Ou então ter proclamado três dias de luto nacional pela morte de Hitler? E, noutro plano, o apoio explícito ao ditador Franco durante a guerra civil de Espanha, sem o qual outro teria sido o resultado do conflito?

Que dizer do Estatuto do Trabalho Nacional e das diversas Corporações Nacionais, copiadas das instituições fascistas italianas, designadamente, da “Carta del Lavoro”? E as estruturas paramilitares, - a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa - mediante as quais se procurava enquadrar e doutrinar a juventude, os trabalhadores e a sociedade em geral?

Parece óbvio que negando-se o fascismo, se procura desmentir a acção de todos os que heroicamente a ele se opuseram, desde a primeira hora e, assim, negar o “corte” estrutural na realidade sociopolítica portuguesa, decorrente do impacto político da Revolução de Abril, que muitos gostariam tivesse sido, noutro contexto, “a evolução na continuidade” marcelista.

Claro que este “apagamento da memória” e este relativismo conceptual ou as proclamadas objectividades científicas de branqueamento do fascismo têm efeitos deletérios na sociedade portuguesa. Desde logo, o desmerecimento da política e o sentido lúdico da sua prática. Pois não era Salazar quem abominava a política e quem proclamava o “sacrifício” da governação?

O slogan fascista “se soubesses quanto custa mandar, gostarias mais de obedecer”, perseguia a sociedade portuguesa, desde as escolas aos locais de trabalho, como fundamento de conformação social.

E quem ignora que tal magistério ainda hoje tem “cultores” na vida pública portuguesa? Pois não é verdade que nos mais altos lugares do Estado são ocupados por políticos que arrenegam ser “políticos”? E que a dita sociedade civil esta repleta de “génios” (políticos) que privam a Pátria do seu(s) talento(s) pelo desdém à política e pelo “sacrifício” que a devoção à causa pública acarreta?

Claro que a isto tudo se associam ainda outros factores de descrédito, como as promessas não cumpridas e bloco central de interesses instalado na sociedade portuguesa, a corrupção larvar que atinge os mais altos escalões da Administração Pública, a promiscuidade de interesses públicos e privados, o aviltamento das elites económicas e sociais, etc., etc. Então, digam-me, com este “caldo de cultura” e semelhantes modelos sociais, que esperar senão e descrédito da política e dos políticos? E, no outro plano, que esperar senão as pulsões demagógicas, eivadas de um certo “autoritarismo” justicialista que irrompem na sociedade portuguesa?

O povo, claro, causticado pela “crise” e pelas “inevitáveis” políticas de austeridade, procura, sobretudo, “safar a vidinha” e, por isso, “ignora” a política e os políticos, que considera com “um mal necessário”...

Mas, então, não chorem lágrimas de crocodilo aqueles que são os responsáveis por tal estado das coisas!...


Manuel Veiga

quarta-feira, novembro 12, 2014

VOO DE TEJO SEM ASAS...


Voo de Tejo sem asas. Nem de velas.
Nem de partidas. Ou de mil desmedidas
Chegadas...

É de névoa o horizonte em que me despenho...

Ousamos o que sabemos nos passos
Que não damos.
E ficamos...

Não mais Pirâmides
Corroídas. Areias do deserto.
Vento suão de mil enganos.
Não mais Nilos...

Quem de Helena, tróias?!
Quem tece o rosto de Penélope
Em meus dedos?

Que romanos, que glórias?
Que Cervantes? Que mistérios?
Que Machados? Que Castelas?
Que sedes de mil anos?

Torrentes de água pura
Nerudas. Índios. Neves de montanhas.
Meu sangue fervendo nas estepes...

Quem me arde nesta dor?
Que sal? Que mar? Que guindastes? Que pimentas?
Que Bandarras? Que poetas?
Que Vieiras?

Camões de luto. Jangadas. Capelas imperfeitas
E Pessoa no proscénio...

Não mais heróis.
Não mais ilhas.
Nem míticas profecias...

E no entanto este Povo.
Este olhar desamparado que me queima em cada gesto.

E este fado.
E este fardo...


Manuel Veiga

terça-feira, novembro 11, 2014

UMA BOA AMIGA - LICÍNIA QUITÉRIO


Descontado o exagero que amizade justifica, deixo-vos com um belíssimo texto da Licínia Quitério, que muito me honra.
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POEMAS CATIVOS, de Manuel Veiga

NOTA DE APRESENTAÇÃO

Aqui estou eu, convidada a dizer algumas palavras sobre o livro Poemas Cativos, do meu amigo Herético, que assim foi por mim nomeado durante largo tempo, conhecidos que fomos através do mundo dos blogues, eu no Sítio do Poema e ele com o seu acertadíssimo Relógio de Pêndulo.

Nos primeiros tempos, fui apreciando os seus belos textos em prosa, assertivos, entusiasmados, contundentes, irónicos, esclarecendo, informando, atento sempre não só à espuma dos dias, mas muito mais, à sua conformidade ou inconformidade com os caminhos e descaminhos da Humanidade, dos seus santos e pecadores, para usar expressão tão pouco herética.

Só mais tarde o fui descobrindo poeta que ia publicando, diria, a medo, ou melhor, com o pudor de quem sente a responsabilidade de fazer uso da palavra poética. Foi o seu Relógio de Pêndulo mostrando, mais regularmente, o poeta sensível, a par com o cidadão empenhado e lutador pelas causas que definem, traçam, consolidam o caminho dos homens rumo à Liberdade e à Alegria.

E assim foi crescendo a minha atenção ao Poeta, de seu nome Manuel Veiga, aqui presente hoje como autor do seu primeiro e excelente livro, Poemas Cativos, em boa hora editado pela Poética Editora, graças à Virgínia do Carmo, ela também poeta já publicada.

Tal como afirmei sobre o Eufrázio Filipe, são as palavras de um Poeta a sua mais exacta definição, a sua indelével marca no processo de comunicação mais perigoso, mais difícil, mais subversivo, mais libertador que é a Poesia.

Passo a dar a minha voz, com o maior gosto, a palavras do Manuel Veiga que tocam os domínios do terreal e do sagrado, do concreto e do intangível, e sempre, sempre, as razões do amor e da luta, com a destreza do verbo e o empenho incorrigível deste militante da vida.

Licínia Quitério

Seixal. 7 de Novembro de 2014


sábado, novembro 08, 2014

"COMO UMA BALA NO CÉREBRO..."


Há mais de quatro décadas, ouvi da boca de um expert norte-americano que a mensagem publicitária deve explodir no cérebro “como uma bala”. A metáfora, de uma eficácia arrepiante, exprime a vocação totalitária do consumo, a que todo o Desejo, Vontade, Emoções e Sentimentos são submetidos pela força prodigiosa da publicidade e do marketing...

Hoje, não é motivo de escândalo! Mas, então, éramos jovens, tínhamos sonhos e não bebíamos Coca-Cola!... Foi, assim, por nós considerada tão elucidativa imagem da bala no cérebro como mais um exemplo “prático” da urgência em mudar o mundo - para que o Homem, liberto das contingências da exploração social e das manipulações do consumo, pudesse, enfim, assumir-se, sem culpa, nem pecado, na reincarnação de Eros e a publicidade não fosse mais que a celebração da Poesia...

Surpreendi-me nestas lucubrações ao ler, no semanário Expresso (27.10.07), que a revista de economia norte-americana Forbes – uma revista de negócios – publicou um artigo entusiástico sobre os avanços das neurociências, com o sugestivo título (em tradução livre) “À procura do botão/interruptor das compras”.

O artigo em causa não saiu, obviamente, por acaso, mas sim na sequência de um crescente interesse nos meios norte-americanos por este assunto. O Expresso cita, a propósito, uma variedade significativa de artigos sobre o tema e esclarece que a Forbes, “que não brinca em serviço”, segue com atenção o que passa nos laboratórios de investigação das neurociências.

Porquê? Porque estas pesquisas tentam perceber o que acontece no nosso cérebro quando este é sujeito a determinados estímulos. E, claro – diz o Expresso – “o facto de as empresas poderem configurar os seus produtos ao conhecimento preciso do que se passa no cérebro do consumidor, é algo cujo potencial só pode ser aliciante”, já que permitirá a perfeita adequação dos produtos ao consumo. E o conhecimento dos impulsos cerebrais permitirá “carregar no botão das compras de cada um de nós, individualmente...”

Por isso, a Forbes – acrescenta o semanário - voltou à carga com novo artigo, desta vez intitulado “Este é o seu cérebro quando faz uma compra”. Este segundo artigo da Forbes terá sido motivado pela publicação de um texto da revista científica Neuron, na qual um grupo de estudiosos revela que, fazendo scanning - com uma das mais recentes tecnologias disponíveis, o FMRI (Functional Magnetic-Resonance Imaging) – ao cérebro de um indivíduo se “conseguia determinar se ele iria fazer, ou não, uma determinada compra”.

Esclarece ainda o Expresso que os autores do artigo científico em questão pertencem a algumas das mais prestigiadas escolas dos Estados Unidos e que trabalham numa nova área de investigação designada “neuroeconomia”. Esta nova “ciência” combina as contribuições das neurociências, da economia e da psicologia na perspectiva de definir, entre outras questões, os padrões de comportamento dos indivíduos na tomada de decisões de consumo...

Como se compreende, os artigos são cautelosos quanto à possibilidade de as “lojas em geral” terem capacidade para “olhar” para dentro do cérebro dos consumidores – “não só pelo custo proibitivo das máquinas que o fazem, como pela sua inadequação aos espaços mais comuns”-, mas garantem que os resultados obtidos permitem já não só compreender melhor os mecanismos da tomada de decisão dos consumidores “como prefiguram claramente o futuro que se prepara”.

Enfim, se eles o dizem...

E, com toda a naturalidade, referem que grandes empresas como a General Motors, por exemplo, têm vindo a utilizar tecnologias de visualização do cérebro em tempo real, para estudarem as reacções dos consumidores perante determinadas imagens específicas (carros, dinheiro, etc.).

Entretanto, a dimensão orwelliana agrava-se quando se fica a saber que tais tecnologias de “leitura do cérebro” serão, num futuro não muito distante, também “passíveis de serem exploradas e aplicadas em contextos muito diversos, como a política e a cultura...”

Eis, pois, o anúncio antecipado da derrota de Eros e do fim da autodeterminação do Homem que, desde os helénicos, tem percorrido História como promessa de realização plena...

Perante isto, que posso dizer-vos? Que a metáfora da explosão da bala no cérebro deixou de fazer sentido? Ou que ainda hoje não bebo Coca-Cola?!... Ou dizer-vos da fatalidade do absoluto “Triunfo dos Porcos”?

Ou, pelo contrário, proclamar que continuo acreditar na urgência em mudar o Mundo?

Manuel Veiga


Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...