segunda-feira, janeiro 27, 2014

CIDADÃOS OU MARIONETAS?...


O exercício da cidadania não se resolve apenas na resistência ao poder político-social, no quadro da multiplicidade de lutas e embates, em determinado momento histórico. Efectiva-se também, na produção simbólica, isto é, na produção de ideias, valores e modelos de comportamento social, tendo em vista romper às malhas da ideologia dominante. Por outras palavras, o poder ideológico constitui, em si mesmo, objecto essencial de luta política.

Falar em cidadania activa pressupõe, assim, que se considere também o espaço discursivo no sentido dos cidadãos em geral e, especialmente, os grupos sociais mais activos poderem formular uma rede simbólica/ideológica/cultural alternativa às ideias e valores sociais dominantes e que hoje se exprimem naquilo que alguns designam por “cultura-mundo” e outros por “sociedade do espectáculo”. Ao serviço dos quais se afirma o “o poder mediático”, que excede o domínio dos órgãos da comunicação social, embora estes mantenham, no funcionamento do sistema, um papel determinante.

Não cabe no âmbito destas linha aprofundar este tema. No entanto, julgo ser oportuno referir que, nunca como hoje, a importância dos media e a sua valorização hiperbólica foi tão expressiva, uma vez que através deles se afirma e expande o conjunto de valores, ideias, modelos de comportamento, em que estamos mergulhados. E nos quais a exacerbação do consumo é apresentada como necessidade indeclinável.

De facto, julgo ser aqui que se inscreve o papel nuclear do poder mediático e dos órgãos da comunicação social na sociedade contemporânea - ou seja, na institucionalização do “consumo“ como fetiche todo-poderoso. E, numa estratégia deliberada de “enclausuramento” da sociedade e de expropriação dos direitos de cidadania, apresentar os modelos e comportamentos sociais e políticos que reproduzem os interesses capitalistas, como ideias e valores definitivos e, por isso, sem alternativa.

Quem não se lembra do autoproclamado “fim da História”? Declaração que hoje, se manifesta, neste mundo globalizado, como concretização “prática”, através da teoria das “inevitabilidades” e do slogan de que “não há alternativa”, sistematicamente impingidos pelos programas, propaganda e acção política neoliberal.

Acresce que as próprias tecnologias mediáticas e de informação, (que o poder mediático incorpora) espalham-se pelos mais diversos espaços, passando a integrar a sociabilidade dos cidadãos, estabelecendo posturas, atitudes e lógicas de comportamento, que são assimilados pela própria subjectividade individual como valores colectivos.

No seu aparato, o poder mediático reveste-se das suas próprias liturgias de poder, não apenas pelo seu papel social (e a quem serve), mas porque como verdadeiro poder é visto pela sociedade, que o identifica como algo superior, definidor da realidade, revelador da verdade e criador de mitos, celebridades, que alimentam o imaginário coletivo.

A especificidade da questão é que o poder mediático, contrariamente ao poder de Estado, se realiza numa espécie de “submissão voluntária”, em que cada individuo, no seu isolamento social, se transforma no seu próprio vigilante.

Explicando melhor: cada individuo, particularmente considerado, fica refém do “olhar do outro” que, como ele, é vítima e, em boa medida também, actor do espectáculo que o poder mediático exponencia.

De facto, é o receio interiorizado “do que os outros vão pensar” (por não se frequentar tal meio social, conhecer a vida de tal celebridade, usar tal ou tal marca de automóvel ou de vestuário, etc. etc.) que modela os comportamentos individuais ao consenso social e constitui, por isso, um poderoso e subtil elemento de sustentação (pela inércia) do sistema de poder.

Como romper o cerco? Julgo não haver “receitas feitas”. Porém, onde “há poder há resistência”...

Assim, importa ter presente que, se é verdade que somos produto da sociedade, também somos nós, cidadãos, os produtores da sociedade que almejamos. Não somos meras marionetas de um jogo de forças, nem meros expectadores dos embates dos diversos poderes. Cada um de nós é co-autor da trama em que os poderes se tecem. E, portanto, o nosso silêncio e passividade, ou a nossa acção decidida irão contribuir para manter ou alterar o estado das coisas.

E, se é verdade que “onde há poder há resistência”, também é verdade que todas as formas de resistência, criam  novas expressões  simbólicas/ideológicas/culturais, mais fecundas e libertadoras.

Quer dizer, novas “formas de poder-saber" que introduzem os fundamentos de uma vida-outra...

 

sábado, janeiro 25, 2014

MAR DE SARGAÇOS E DE BRUMA...


Amolecem os dedos como pássaros
Em círculo de fios prisioneiros e o canto
Amarelecido…

Apenas o rasto da névoa e o azul breve
Mitigando o colapso da tarde
Sobre o Tejo...

Cacilheiros são os dias assim furtivos
Ida e volta como ondas sobre o cais
Desmaiadas e sem rumo que em eco
Desfalecem...

Mar de sargaços e de bruma.
Os olhos embargados
E sombra sobre a tela…

Manuel Veiga

 

terça-feira, janeiro 21, 2014

NOTICIAS DE BABILÓNIA XLIX


Babilónia afunda-se na miséria e no desalento...
Mas tem uma pitonisa – com banca na praça... Discorre sobre o presente e lê o futuro nas entranhas das aves...
 
E inventa “factos políticos” que depois comenta...
 
Hammurabi, o legislador, inveja-lhe a vida e a “sabedoria”. Mas não o quer – chama-lhe “catavento” e que as suas opiniões são “erráticas” ...
 
Como estrondo, a pitonisa retira-se – mas não da praça!...

Um arrepio funesto percorre Hammurabi. E, temente ao Destino, retracta-se!...
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E um velho cronista, lavrado por muitas rugas: “O poder do Espectáculo tem mil rostos! mas nada está escrito - babilónicos, o destino são os homens que o traçam...”

domingo, janeiro 19, 2014

NADA ESTÁ ESCRITO...



Na nítida proporção das coisas a matéria
Insinua-se nas asas dos anjos sobre a cidade sitiada

Nada que os homens não saibam
Ou a que as esferas não se curvem
Em seu percurso frio e solitário.

Nada está escrito.

Apenas a soberana vontade dos famintos
Ou os sequiosos martírios de azul cobertos
De tanta esperança contrafeitos
Redimem este tempo de murmúrios sibilados.

Não a culpa dos inocentes. Nem as apóstrofes da guerra.

Tatuamos no rosto a letra escarlate
E dos proscritos vestimos a poluída túnica
E a carne macerada.

E bebemos o vinho pisado pelos homens.

E do pão da vida fazemos sarça
E ardemos no verbo inaugural
Que de tão ígneo se faz sémen

E explode na persistência dos anjos
Sobre a cidade sitiada...


Manuel Veiga

quarta-feira, janeiro 15, 2014

EM LOUVOR DE LYDIA...


Sob os salgueiros derrama-se a cascata.
Em serenidade absurda e indiferente
Como o regaço de Lydia...

E as absortas mãos dedilhando tédios
Nas coloridas pétalas em redor...

A metafisica é esta natureza morta
Que o poeta afoito introduz na paisagem.

Porém, nada do que diga ou faça perturba
O momento que desliza triunfante
Na glória de puro acontecer...

Nem os lábios de Lydia onde germina
O mel e a fantasia...

Apenas esta febre destemperada
Como se o verão fosse eterna ceifa...

Ou sede de água pura. Serenamente vertida
Em maceradas ânforas
Da memória...

Flores à beira-rio. Em teu regaço...


Manuel Veiga

 



 

domingo, janeiro 12, 2014

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA XLVIII




Como rezam as crónicas, Babilónia é um alfobre de génios...

Sub-Hammurabi, o trampolineiro, reuniu sua seita. E num arroubo de eloquência, anuncia à cidade e ao mundo que “irrevogável” significa singelamente - “ que o que tem de ser tem muita força!...”

Os fiéis curvam a cerviz, a cada gesto, e entoam em coro: “somos livres, somos homens livres!...”

A praça entreolha-se, embasbacada... Outros, amargos, sorriem... Muitos sofrem e ... aguentam!...
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E um velho cronista, calejado e cáustico, interroga-se: “Quem, de seus próximos, irá ser atirado aos cães?...”
 

quarta-feira, janeiro 08, 2014

MEMÓRIA PERFUMADA...



Lisa nos dedos cresce a forma e o seixo
Arestas libertas na geometria do verso
Fascínio de palavras tão incertas
Como a espera do gesto de colhê-las...

Agitam-se freixos em aragem rarefeita
Corpos em tocha sob gritos sustenidos
Corvos brancos em círculo nos sentidos
Limiar de sombra entre o verso e o seixo...

Fendem-se grutas. Argila - febre ainda!
(Já não seixo). E nas linhas modeladas
Explodem pedra e verso no cio estival da seiva
- Furor de potros sobre fêmeas!...

Crepitam corpos no cântico da tarde...

E na saliva das horas demoradas tomba
A sombra sobre os corpos e voam pássaros
No espasmo vulcânico dos dias...

Nada corre. Agora.
Nem a brisa. Apenas o verso arde em sua sombra.
E na memória perfumada...


Manuel Veiga

 

 

Patxi Andion - "Despierta Niño" do disco "Como el viento del Norte" (1974)


sexta-feira, janeiro 03, 2014

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA XLVII

Em Babilónia, reina um tempo sem Tempo... E sem vergonha...
Hammurabi, o legislador, igual a si próprio, exporta a juventude e esmera-se na longevidade dos velhos...
 
Depois de devidamente ajustados, são agora recalibrados – entram exauridos e saem exangues. Mas todos iguaizinhos como bonecos de feira...
 
Na praça, perpassa um arremesso de antigas profecias. E um
banqueiro sabido, babando-se de gozo – “ai, aguentam, aguentam!...”
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Como um espectro, um velho barbudo atroa os ares: “Babilónicos, que mais tendes a perder?!... É escravo apenas quem aceita as algemas...”

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...