quarta-feira, fevereiro 19, 2014

TOPO DE GAMA. 2....


Então, passou-se assim...

Montado em sua fogosa égua que, em escassas duas horas o levava à sede do concelho, o brioso agricultor, herói desta “estória”, depois de distribuir ordens a familiares e serviçais, rumou cedo à vila, em vista satisfazer afazeres que administração do casal exigia e, naturalmente, para “desenferrujar” os sentidos, desfrutando o bulício “urbano” da feira concelhia.

Ponto obrigatório eram os escritórios do Grémio da Lavoura, no centro da vila, lugar de ajuntamento dos lavradores, provenientes das diversas aldeias, das mais distantes às mais próximas, que depois de fazerem o “manifesto” (registo obrigatório) do trigo ou do vinho, ou uma compra ou outra de uma qualquer alfaia ou utensílio agrícola, por ali se ficavam, arredondando conversas, sabendo novidades, falando do estado do tempo e das colheitas, ou empertigando-se, na sua importância social, ditada pelos haveres e fazenda de cada um.

Mas todos fazendo parte da mesma “elite rural”, pois que, naquele clube de “patrícios”, como mutuamente se designavam, não havia lugar para qualquer um que não se medisse numas boas jeiras de terra, lavradas por uma, duas ou três juntas de bois. E, naturalmente, que não pudesse sustentar uma esmerada, vistosa e parideira égua, um must de prestígio, como, por certo, neste momento da narrativa, os meus leitores já se deram conta.

Assim, nessa tarde em fim de Verão, distendidos os corpos das tensões do dia e animados os espíritos com uns copos de vinho a celebrar reencontros e amizades antigas, quando o nosso herói, com a égua pela brida, se preparava já para regressar a penates (que a distância não era peca e de um momento para o outro a noite caía), surgiu no grupo, mais um empertigado conviva, alargando-se a roda.

O protagonista da estória que, desde tenra idade, frequentava feiras e mercados e por todas as aldeias do concelho tinha amigos e conhecidos, como era de sua condição. Muitas vezes, aliás, por ocasião das celebrações festivas, era hóspede e conviva em cada lar, por mais distantes que fossem os festejos e os convites.

Era por isso quase um escândalo não “frequentar”, num processo de mútuo reconhecimento, quem, na área de todo o concelho, “merecesse a pena” conhecer. Mas a verdade é que não conhecia o novo intruso...

O “escândalo” e a angústia existencial eram tanto maiores quanto é certo que o retardatário estava a ser nomeado, por um ou outro, como “senhor Zezinho”, suprema glória de distinção o tratamento em “inho”, ele que nunca fora “antoninho”, mas apenas António, a que muitos acrescentavam, com alguma velhacaria, não o apelido da família, mas a “alcunha” que herdara do honrado nome de seu pai e que, alcunha essa, haveria de prolongar-se por filhos e netos.

“Quem seria, pois, o figurão?” – interrogava-se, intimamente, espiando-lhe adames e trejeito, sorvendo-lhe a verve desenvolta, admirando-lhe os lustrosos polainitos de cabedal, a prender-lhe, por cima das botas, a perna das calças.

E, sobretudo, o luxo de duas reluzentes esporas afiveladas, uma em cada pé, ele a quem uma única espora bastava para meter a trote a garbosa égua, lustrosa de bom trato e de um azeviche negro de causar inveja ao mais pintado.

“Quem seria, pois, o finório”?

E, neste diálogo com seus botões, jurou para si o herói da nossa estória que não acabaria o dia “sem lhe conhecer a montada”, pois que todo aquele aparato lhe soava um pouco em falso...

Dito e feito. Simulando compras de última hora, despediu-se, recomendando-se a amigos e familiares distantes e, de égua pela trela, deu mais uma volta pela feira já prestes a levantar ferro. Sempre, naturalmente, atento ao grupo de “patrícios”...

Quando percebeu que o grupo se desfizera e que o regresso a casa se iniciara, também o nosso herói montou e, medindo tempo e distância, meteu a égua em trote acelerado, bem sabendo ele que, antes os caminhos bifurcassem, ele para oeste, em direcção à ladeira do rio e o seu émulo sempre em frente pelo planalto, haveria de alcançar a ranchada que, pelos caminhos sempre se junta, trocando chistes e gargalhadas e, certamente, no meio dela, diferenciando-se, o sujeito objecto de suas inquirições íntimas. E a respectiva montada, está claro...

Desesperava, no entanto, o herói desta fita. Passara, em trote firme, um e outro grupo barulhento, que saudara como lhe cumpria, moderando a passada, mas onde diacho se metera o homem? Não havia maneira de o descobrir por muito que acelerasse ou moderasse a passada...

Até que, quase a desistir, depois de vencer uma curva que, por momentos, encobria o seguimento do caminho, lobrigou a umas dezenas de metros de distância, despernado do grupo que mais à frente se distanciava, um vulto que se diria quixotesco (enfim, considera agora este vosso narrador, que de vez em quando gosta de se dar ares de intelectual).

Imaginem assim os meus leitores o porte garboso e altivo do “cavaleiro da triste figura”, firme e hirto, a montar, não o estimável e brioso cavalo Rocinante, mas o burro lazarento e mirrado que servia de montada e apresto ao seu fiel escudeiro, companheiro de aventuras.

Pois, assim, o nosso “senhor Zezinho” para espanto e gozo do protagonista desta estória. Montando, em pêlo, a lazarenta criatura, com dois sacos presos um no outro, servindo de alforges, as pernas compridas do cavaleiro atravessavam-se por baixo da barriga da besta, com o reluzente par de esporas, a bater uma na outra num tilintar obsessivo, salvando-se assim a azémola das ferroadas dos espigões que bem lhe bastavam as picadelas de moscas e zangões.

Contido o riso e o gozo, o nosso herói não resistiu à picardia: “Meta-lhe esporas, senhor Zezinho, olhe que se faz tarde. E se a noite chega ainda tem que levar a montada ao colo...”

E, apertando a égua, abalou em galope, por entre a poeirada dos cascos, que os últimos raios de sol davam tonalidades doiradas.
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Mais tarde, por mero acaso, desfez-se o mistério. O “senhor Zezinho” de duas esporas e burro lazarento, passada a meia-idade, havia regressado à terra natal. Depois da tropa por lá se ficara, andando por Franças e Araganças e comendo o pão que o diabo amassou.

Partiu pobre e regressou pobre. E o seu instinto de sobrevivência, fez dele arquétipo e vítima da funesta fatalidade “que mais vale parecer, do que ser”.

Que hoje se inscreve nos anais da Pátria como razão de Estado.

Assim, os tempos!...

 

  

12 comentários:

Anónimo disse...

Muito Bom!
Muito bem escrito!
Ala que se faz tarde...

Ana Tapadas disse...

Tudo dito, numa leitura social clarividente.

bj

Maria João Brito de Sousa disse...

Voltei atrás para ler desde o início e... gostei muito! :)

Abraço!

Rogério G.V. Pereira disse...

Supondo que o figurão, esse refinado finório, por força de poupadas compras, não será pelas devidas facturas que alterará o seu "topo de gama"...

Um bom texto, e datado

Peter disse...

Extraordinariamente bem escrito, fez-me lembrar os meus tempos de rapaz em que o meu pai, para arranjar mais uns tostões, fazia a escrita de dois lavradores: ia adiantando-lhe dinheiro, ou o que precisavam, e as contas eram feitas pela Feira da Luz, salvo erro, 11 de setembro.

Abraço

Mar Arável disse...

Uma deliciosa viagem o teu texto
intemporal

Abraço

lino disse...

Um belo texto!
Abraço

Maria disse...

Um texto que pode ser o retrato de hoje.
Gosto das personagens, nomeadamente do António :)

Beijo.

jrd disse...

Excelente! De primeira água.
Quem se veste de aparências nem sequer chega ao "dois cavalos" fica-se pelo jerico.

Abraço fraterno

AC disse...

O relato está nos "conformes", muito bem urdido, em país muito mal tecido (de governantes)...

Abraço

Graça Sampaio disse...

Infelizmente assim vai sendo: «vale mais parecê-lo que sê-lo»!

D. Quixote ao contrário... Muito giro!

mariam [Maria Martins] disse...

Muito bom! A fazer-me sorrir e a lembrar-me outros textos seus mais antigos :)
Pbs pela excelente análise.
Beijinhos :)
mariam

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