terça-feira, outubro 14, 2014

SEDE EM QUE ARDEMOS...


Nada é começo na contabilidade das horas
Nem o rugido das esferas é vibração do cristal
Nem os passos são a devoção dos dias
Nem as ondas-cavas são destino de barcos...

Administramos silêncios.
E os dedos são compasso de um círculo
Que se ferra no pescoço dos náufragos
E asfixia o grito. E devora por dentro num fervor negro
Como bolor em pão ázimo
De porta em porta
Negado...

Somos leilão de condenados.
Sem o sabermos. Que nem o preço ao menos
Nos distingue na volúpia do deve – e do haver!
Nem o festim das coisas que esventram os olhos
Nem a náusea nos redime
Nesta voragem...

Libertos apenas talvez na palavra que teima
E no bruxuleante lume da candeia
A iluminar a gruta. E no granito
Fogo e água tímida a soletrar
A sede em que ardemos.


Manuel Veiga


12 comentários:

Anna disse...

Palavras que teimam em fazer-se luz, em rasgar silêncios onde, preguiçosamente, nos embrulhamos...

Um beijo :)

Rogério G.V. Pereira disse...

Ah, se todos ardêssemos...
Ou melhor
Se todos sentíssemos tal ardor

Majo disse...

~
~ ~ ~ "Libertos apenas talvez na palavra que teima..." ~ ~ ~

~ ~ Libertemo-nos com o verbo e mitiguemos a sede em que ardemos
~ com os amigos, resistindo tenazmente.

~ ~ ~ Dias felizes e inspirados. ~ ~ ~

Helena disse...

Lembrei-me destes versos de Amílcar Cabral:

"...Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo,
O Mundo que sou eu!

Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!

Na garganta de todos os Homens"

E como tu bem disseste:
"Libertos apenas talvez na palavra que teima"

Ficam sorrisos e estrelas,
Helena

O Puma disse...

para lá do azul

ainda á água

ardente
Abraço fraterno

Graça Sampaio disse...

Grande grito de angústia que nos devora a todos nós, condenados de um qualquer leilão...

Como sempre, muito bom!!

Beijinhos

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

fogo libertador....

muito bom!

:)

MS disse...

Não sei se 'administramos silêncios' ou se de tanto sofrimento, nos ausentamos das palavras...

Mas tu nos resgatas na profunda convicção e beleza das tuas poesias.

Vim agradecer tua mensagem tão afectuosa em tempo de 'aniversário'.

beijo

lis disse...

Fernando Pessoa no seu '...desassossego' ja dizia que temos intervalos em que o sonho foge e só nos resta'administrar silêncios'
Tudo foi dito!

MARILENE disse...

Mesmo administrando silêncios, eis que os gritos morrem no nascedouro, restam as palavras e a pequena luz que leva claridade ao negro espaço. Podem não ser muito, mas não deixam de ser passos, que unidos à consciência, a uma nova construção podem conduzir. Abraço.

jrd disse...

A sede em que ardemos. A resistência.
Não sabemos do seu início, mas sabemos que a vamos saciar.

Grande poema!

Uma braço meu irmão poeta

Maria disse...

Poema fantástico!
Vou levá-lo, tem de ser lido por mais gente!

Beijo.

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