Vocês lembram-se do meu amigo Zeca? Sim,
esse mesmo, o alentejano de Beja, solteirão impenitente e protector de donzelas
desvalidas. Como esporadicamente vos dou notícia, o meu amigo Zeca encontra-se
já há uns tempos “retirado da vida”,
como ele, num suspiro, faz questão acentuar, passando os dedos pela papeira dos
olhos, ou alargando a mão à calvície luzidia...
Quanto à profissão, bah! – o Zeca está
sem pachorra para aturar cretinices e favores políticos. E quanto a saias, o
meu amigo, enfaticamente, reclama que durante toda a vida as “mulheres lhe foram comer à mão” e que
não será agora, portanto, “que irá
arranjar jeito para ser cabide”, seja lá o que for que, em seu léxico, o
morfema “cabide” possa significar...
De forma, que administrando, os réditos
de uma carreira de “consultor” na área financeira, com altos e baixos, mas
relativamente bem-sucedida, aí temos o meu amigo, do alto do seu apartamento
debruçado sobre o Tejo, a desfrutar os prazeres que este inverno soalheiro lhe
vai proporcionando, alargando-se em amplos passeios à beira rio, com um
poderoso “labrador” pela trela...
Fora isso, apenas a cozinha, em que se
esmera e sublima sabe-se lá que desejos... E o charuto e o conhaque, claro, com
que obsequeia os amigos depois de suculenta refeição, seleccionadas, em cada
caso – sei agora – em função dos gostos culinários de seus amigos. O prazer da
partilha e da amizade é tão genuíno no Zeca, que o leva a este requinte de
sensibilidade...
Há tempos atrás fui um dos seus
comensais. Éramos quatro pândegos, de papilas gustativas bem afeitas (e
afoitas) a paladares intensos, à volta de uma esplendorosa terrina com arroz de
lampreia, escorrendo com seu molho espesso e cremoso, pelas gargantas, depois
de bem degustados os pedaços, que o Zeca, com mão sábia, sabe temperar...
“Manjar de anjos”, lhe chamaria Eça
fosse dar-se o caso de gostar de lampreia e merecer, naturalmente, a honra de
um convite do meu amigo Zeca...
Isto para vos dizer, que foi uma tarde a
maneira antiga. Na lassidão dos conhaques prosseguiu a revisitação do roteiro
nossos “pequenos ódios de estimação”,
zurzindo as figurinhas e figurões que assombram o quotidiano dos portugueses.
E, depois de alguns momentos de beatífico voo nos espirituosos vapores do
álcool, eis que alguém traz, inesperadamente, o incontornável Eduardo Catroga,
na ocasião em voga com a saga da privatização da EDP.
O torpor, porém, era manifesto e a
“intromissão” não mereceu mais que uma pilhéria deslavada a propósito do
alegado “tamanho” dos chineses e da roliça compleição física do dito Catroga.
Não sei se motivado pelo esforço de
vencer a sonolência colectiva, se obedecendo à pulsão irresistível de acicatar
o Zeca, segurei o fio da conversa e jogando com a figura anafada de meu amigo,
lancei para a turba:
-
“Para além de economistas, aliás
distintos, o Catroga e o Zeca estão a ficar cada vez mais parecidos, quase dois
irmãos gémeos, não vos parece”?! ...”
O semi-sorriso de meus amigos, deixava
prever “sangue”. Entrei, por isso, “a matar” e acentuei a ironia: - “Se lhe oferecermos um capachinho com a
melena branca do Catroga, o Zeca bem pode funcionar como seu duplo, nos transes
de maior risco do chairman da EDP”...
E, perante a gargalhada já solta, afoitei-me mais pouco: “Quem
sabe se com o seu fenomenal currículo o Zeca não poderia dar contributo
desinteressado para a baixa generalizada dos preços da energia e a integral
realização do sósia, massajando os
insignes joanetes da senhora sua esposa?
Como, por certo, compreenderão, mais que
a figurinha congestionada do Catroga, esta excessiva graçola tinha outro
alcance, a que apenas iniciados têm acesso. Visava, como alguns recordarão,
circunstâncias antigas em que meu amigo Zeca, então promissor quadro de uma
empresa pública, esteve à beirinha de “ter
uma boa vida”, não fora uma senhora que “andava a pedi-las”, os incómodos joanetes e os sapatos apertados de
uma zelosa sogra, como noutro espaço contei.
Não fora este lance de má sorte, o Zeca
seria hoje chairman de uma qualquer empresa pública em vias de privatização,
quiçá destronando o próprio Catroga. Claro que a partir dessa data, o Zeca
passou a odiar sogras, joanetes e sapatos apertados...
Enfim, tempos passados que apenas uma
mente perversa iria agora desenterrar...
O Zeca, porém, não desarmou. E com a
condescendência com que a sua impoluta amizade sempre suportou as minhas
impertinências, fixou-me com olhar irónico e atirou-me, arrasador:
- “Tu
estás calado e calas-te!... Sei onde queres chegar. Mas como nunca na vida
“comeste” nada de jeito (o que é manifesto exagero do Zeca) não tens autoridade para gozar com meus
fracassos”... E, perante a gargalhada geral, continuou: - “E, fica sabendo, que o Catroga não tem "pintelhos" que cheguem aos meus, quanto mais tomates...”
Foi o delírio. E todos em coro: “Ó Zeca, ó Zeca, tu não sejas megalómano,
pá! Os pintelhos do Catroga são celebérrimos - foram notícia de abertura dos
telejornais, avaliados e dissecados em comentário político e, ao que parece
agora até chegaram à China. Os pintelhos do Catroga são únicos, pá...”
Por momentos pressenti o Zeca embaraço,
mas breve se recompôs: - “Vocês estão
enganados. O Catroga tem “pentelhos”!
Pintelhos tenho eu e espero que vocês... Os gajos nem sabem do que falam...
Embasbacamos!... O Zeca avança então douta teoria sobre os pêlos púberes, arrancando, do negrume da ignorância, a
centelha da sua clarividência. Afinal os celebrados pelinhos vão buscar, ainda que
indirectamente, a sua consagrada designação – imaginem! - aos mistérios de Baco e ... ao vinho!
O Zeca não tem dúvidas. Diz-se
“pintelho” e não “pentelho”, pois a palavra vai buscar o sentido ao
“pintar” do bago das uvas, antes da completa maturação. Frutos
precoces, portanto, a que o povo, na sua criatividade associa a puberdade e os
inocentes pelinhos...
Enfim, “pintelhices” do Zeca, que agora
trazem novo problema aos seus amigos! Não sabemos ao certo se o devemos propor a Presidente da Comissão do Acordo Ortográfico, se a membro da Academia de
Ciências, na classe de Letras, está bem de ver...
Que vos parece?
Manuel Veiga