sábado, maio 02, 2015

"A DOBRADA SERVE-SE FRIA?..."


Irrompe o poema a sobriedade e ousa o pórtico onde
Todas as legendas se inscrevem. E imiscui-se
No interior sem aviso prévio nem hora acordada
Como saltitante Mozart e seu fogo
Divino derramando-se pela casa...

Insufla-se traquina
E desarruma o outro lado, aquele fechado
Que nada guarda apenas bagatelas, traquitanas sem glória
Ou mágoa...

E trepa (ou desce)
Como ventania inesperada
Ou janela aberta que nada espera
Apenas a luz coada
E que de repente se escancara
Como se varanda fora engalanada
E festiva...

E senta-se à mesa o poema. Comensal de honra.
E acaricia o linho e acende as velas
E reclama o vinho...

E solene avisa que neste dia não será
Servida dobrada, que sendo fria sempre lhe causara
(Como os amores de Pessoa) frustre azia...

E o poeta deixa que o poema seja.
E desamparado finge a dor
Que fica!...


Manuel Veiga

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“Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio”.

Álvaro de Campos, in "Poemas"





25 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Inesperado poema
Poeta

Mas que se passa? Estás de dieta?

Manuel Veiga disse...

eheheh.

boa malha, Rogério!
forte abraço

luisa disse...

De como até uma dobrada se transforma em poesia... :)

Anónimo disse...

Quem é Manuel veiga?

Manuel Veiga disse...

oh, oh ... vá lá saber-se!...

mas Veiga e com letra maiúscula - faço questão!

José María Souza Costa disse...


Desde que bem rimado,tudo vira poesia.
gostei

lis disse...

Tenho lá meu preconceitozinho com a dobrada seja 'à moda do Porto',ou a nossa costumeira 'dobradinha'... penso _que 'à mesa vestida com linho, velas e o vinho ...do Porto quem sabe a encarasse aceitando a sugestão de Baudelaire _ ''embriagai-vos!De poesia'
Gostei heretico
bom domingo

CÉU disse...

Boa noite (já sei k são os meus "devaneios" noturnos, já sei, mas eu gosto assim)!

Anda tudo de varandas engalanadas, poeticamente, falando, sim, pke eu estou atenta, e ando por "aí", como o "outro", esperando o "arraial", k não o dos santos populares, o do António, o da minha paixão, ou seja, o de Santo António. Tenham paciência e esperem só mais uns 4/5 meses.

Gosto muito da Babilónia k está a construir, cujos pilares são metáforas mega, mega eruditas e bem "metidas".

Não gosto de dobrada, nem fria, nem quente, mas vingança, por vezes, dá-me um certo gozo. Sou tão imperfeita e escolhi o pseudónimo, Céu. Incongruências, é o k é.

Gostei muito do poema, que escreveu e k colocou em paralelo com um de Álvaro de Campos.

Bom domingo e fique bem.

Anónimo disse...

Peço desculpa,a minúscula foi um lapso...Manuel Veiga*

Mar Arável disse...

Hoje
a minha mãe
com 90 anos

não admite ser discriminada

Abraço

Manuel Veiga disse...

todos nós "tivemos o nosso jardim"...

90 anos é uma bonita idade para uma Mãe...

(a minha já teve...)

abraço, meu irmão Poeta!

Majo disse...

~
~~ O Poeta às voltas com um poema traquinas e petulante...

~~ Beijos para si e para a mãe do seu lar...

~~~~~~~ Tudo de bom para vós.~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Pata Negra disse...

Não sei se é da dobrada, se do feijão branco, mas a verdade é que todos os meus versos se transformam em ventosidades! Será que sou uma merda?!
Um abraço e continua a estender as tuas palavras como linho - o sol da eira tratará deles - e depois imagina o que acontecerá...

Manuel Veiga disse...

nem penses, majestade!

a tua ironia (e a tua poesia) são autêntico "sol na eira!...

AC disse...

Amor, só com receita certificada e aprovada por eles, dizem eles.
Em grande, poeta.

Abraço

Graça Pires disse...

O fingimento do poeta.
A dobrada fria como pretexto para dizer a luz coada e o fogo derramado pela casa...
Um beijo, meu amigo.

Teresa Durães disse...

Deixa o poeta que o poema seja sem condições. Bravo!

O Puma disse...

Talvez o vento em rajada
acerte nas próximas urnas

Vinicius Geyer disse...

Oi.Belo poema,amigo poeta.Grato por pôr o meu blog na tua lista, pra mim é uma honra:O).Abraço.

Shirley Brunelli disse...

Belo poema, Manuel!
Abraços!

jorge esteves disse...

Talvez, também, o Álvaro tivesse sido, ali, um fingidor. Dobrar-lhe-ia mais outra dor...
(e, ao costume, belo poema o teu!)
abraço!

Unknown disse...

Velas acesas sobre o linho e janela aberta,não sendo prudente, saiu-lhe aqui lindamente neste poema em que a dobrada até seria boa pedida, se quente, como quis um dia o outro poeta, o Pessoa.
Sempre surpreendente, sempre bom de ler.

abç amg

jrd disse...

Til,
Manuel Veiga é um poeta maior e um escritor notável. Sugiro-lhe a leitura das obras publicadas.
É uma "pessoa importante que chegou".

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

de um lado a dobrada (fria) ou quente que seria incapaz de comer.

eis que o Poeta faz um poema muito original e que fechou com chave de ouro.

a dor não é fingida e fica.

bom fim de semana.

beijinho

;)

George Sand disse...

Dobre-se de vez a dobrada!
Em dois em três ou em quatro,
Por forma a ser dizimada,
Assim que aterrar no prato.
Se fria, ponha-se a jeito,
Quando não, enrola-nos o peito,
E a espinha fica arrepiada.
Se a dobrada arrefecer,
Por desatino de sol,
Deixa de ser bucho de luxo,
passa a tripa desimpedida,
Simples, sem couve nem vida,
De bovino, tresmalhada.
:)


CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

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