domingo, maio 31, 2015

FRAGMENTOS II - Maria Adelaide...


Assentemos, pois, que o autor não existe. Enfim, é possível, porventura, que se apresente, em sua aridez e obscuridade, como determinante em “última instância”, digamos assim, ou como descarnada infra-estrutura na construção da narrativa, que em seu equilíbrio instável, uma vez erguida, evacuará todos os resquícios de individualidade para glória de um discurso sem sujeito.

Também o tempo não existe. É apenas uma tela de luz e de sombra e um jogo pendular de sinais onde, em desamparada solidão, a escrita se engendra e a leitura (se leitura houver) será viagem em busca de expressividade e sentido – Infinito-Presente sem horizonte à vista. Nem recuo possível...

E o espaço também não. Enuncia-se tão somente como jangada sem leme, mergulho no caos desordenado da memória, reminiscências diurnas, subterrâneas pulsões, fantasias e invenções, miasmas abraçando ainda a noite negra e a tempestade. E o(s) lugar(es) da escrita são cenário minimalista onde a narrativa se escora, mas dos quais, a final,  restará apenas - como do sujeito -  tralha descartável.

As personagens, sim. Acotovelam-se na entrada, exigindo-se, em furor, outras apenas com latência, envoltas em neblina, tecidas de incerteza, como o rosto das estátuas antes do primeiro afago do cinzel, sob o olhar atento do artista.

Volto a ti, Maria Adelaide, como quem, depois da caminhada e da poeira, pretende a fonte. Sei que abres o regaço e que os teus dedos estão disponíveis para carícia. Porque venho? Sei que te interrogas. E eu que a ti regresso sempre como porto antigo que conhece o barco e os ventos e a brisa que em ti perpassam, como o ponto neutro de que nada se espera. Apenas o vinho que se (de)gostou e de que se guarda a última garrafa. Que por certo nunca será aberta - sabe-se lá se vai resistir ao tempo!...

Vejo o teu sorriso: -“Meu pobre amigo, continuas a acreditar nas tuas fantasias, como se elas fossem alimento. Sabes que gosto de ti e dos teus poemas, mas a vida e outra coisa. E tu devias saber que foste o sopro da minha regeneração como mulher!...”

Atalho o teu discurso. Antes de falarmos do teu divórcio e do que se seguiu quero-te ainda assim frágil e disponível. E as palavras que espero...

Sabes? Apetecia-me rever os locais, sentir o travo das noites quentes de Alfama de que o Stº António é mero pretexto. E que a atmosfera densa e quente te fazia lembrar tua África natal. Lembras-te? O João, teu marido, nos seus afazeres, estiveram toda a semana fora. E chamas-te, em teu capricho: “Quero que esta noite seja nossa!...”. 

Subimos Alfama enlaçados. Misturamos o corpo e os sentidos com multidão. Colhi o cio de teu corpo de encontro ao meu. E bebeste vinho pela minha mão. E descobriste a experiência nova do pulsar do Povo reguila e fadista, que, como quem navega “cravo e canela” de outrora, colhe agora turistas. Sorvi contigo os cheiros de África da tua meninice, que dizias. Em teus olhos novas descobertas e os meus, escravos. Mostrei-te o que sabia. E subimos colina acima. E na noite nos demos...

Horas antes, porém, na livraria onde nos encontramos e fingimos, como dois estranhos, os teus braços, inesperados, envolvendo-me pelas costas, teus seios firmes em arrepio de prazer, a suavidade de teu perfume a inflamar os sentidos, o teu hálito quente, como um beijo, a espraiar-se na nuca: - “Amas-me?”.

E perante a incomodidade do meu silêncio, agora de frente, a espicaçar a perversidade e a transgressão, que tão sabiamente administras: “Não respondas! E rouba um livro para me ofereceres...”

E numa doçura murmurada ao ouvido: “Quero um livro roubado!...”

Aqui o Encenador hesita. Pressente-se que Maria Adelaide, abrasiva e solar, se ensaia como prima-dona, a exigir todo o espaço operático. Há porém que lhe domar os impulsos para que a representação seja perfeita. E deixar que outras personagens sejam em seu destino imprevisto...

Antes que Maria Adelaide venha, letra a letra, em seu inefável sortilégio...




13 comentários:

luisa disse...

Assentemos, então, que tudo (ou quase) é ilusão.

Rogério G.V. Pereira disse...

«E perante a incomodidade do meu silêncio, agora de frente, a espicaçar a perversidade e a transgressão, que tão sabiamente administras: “Não respondas! E rouba um livro para me ofereceres...”»

blueshell disse...

Oh...que texto magnífico.

Primeiro fiquei desconfiada com essa de o amor não existir...Depois fui-me embrenhando na leitura e me deixei levar... até
"Em teus olhos novas descobertas e os meus, escravos. Mostrei-te o que sabia. E subimos colina acima. E na noite nos demos..."

Magnífico, meu amigo.

te agradeço tuas visitas e comentários.

Eu...nem sempre disponível, como devia....

Um abraço

Shirley Brunelli disse...

O tempo, o espaço e tudo o mais...Elevado, inspiradíssimo.
Até Einstein aplaudiria...
Beijos!!!

Mar Arável disse...

Quando as realidades e o poema despontam
escrevemos no papel
das paredes
palavras de carne e sonho

Excelente como sempre
Abraço fraterno

CÉU disse...

Desçamos, então, à terra!
Não existe autor, nem a coordenada espaciotemporal, mas existe assunto, história.
O Melro e a Maria Adelaide têm algo em comum, o quê, não sei, mas sinto-o, nas pontas dos dedos dos meus sentidos.
África, passado, divórcio, lembranças, boas ou más, o diálogo quente, que se rendeu e que deu uma noite, sei lá, uns momentos, para o caso, tanto faz. O importante é que houve doação e entrega mútua. Ele, autor, sem "existir" conta um acontecimento, real ou não, ela, uma mulher tórrida, lenda viva de um tempo k já não volta.

Gostei da ternura, tão estudada e tão contida, que, por vezes, deixa fugir nas palavras, e vou-me embora, já, porque a Maria Adelaide pode aparecer por aqui, e depois lá fica o autor, k "não" existe, entre a espada e a parede, ficando sem ser capaz de gritar: ponto de ordem à mesa!

Fique bem!

Graça Sampaio disse...

Já tinha lido o 1º episódio de Maria Adelaide e não soube (ou não pude) comentar. Agora, depois de saber que ela até é uma romântica - senão não gostava das «chansons d'amour» - obrigo-me a dizer. A Maria Adelaide parece de carne e osso, mas tanto niilismo em seu redor transtorna-me...

Bem escrito por de mais. Claro!

Beijos

Lídia Borges disse...

Deixemo-nos desses refúgios teóricos que em nada nos são consolação. A Adelaide, sim! Está viva e recomenda-se. Acrescente-se que a "mão" que o narrador cuida ter nela não é real. O narrador é de papel, um mero lacaio do autor. Quanto a este, não passa de um espectador.

Belíssimo!


Bj.

Helena disse...

O autor, o tempo, o espaço... nada existe!
Mas a frase foi murmurada ao ouvido: “Quero um livro roubado!...”
E tudo passou a ter vida, mesmo antes da Maria Adelaide vir "letra a letra, em seu inefável sortilégio..."

Um texto belíssimo, grandioso, com o teu toque de Midas, meu amigo!
Uma semana linda a te esperar entre os sorrisos e as estrelas que teus passos criam no passar das horas...
Helena

Anónimo disse...

Parece me que este tempo cumpre a sua missão. A de nos redireccionar para uma escrita com assinatura.

Gosto.

.

Mesmo.

Parabéns. (Imf)

lis disse...

Vou lendo e fazendo a louvação a este belo texto.
_ e relendo.
parabéns herético.
Gosto ,sempre.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

tudo ficção!

se calhar, tudo realidade!

belíssimo!

beijo

:)

Agostinho disse...

Belíssimo texto com uma MA que cumpre um destino. Ou desenha o destino maior por múltiplos comuns?
Um livro não se rouba, desfruta-se-lhe a aventura com pura inocêcia e surpresa que nos envolve o corpo de ternura. Provavelmente.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

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