segunda-feira, junho 22, 2015

FRAGMENTOS V - Desejo que venhas, Maria Adelaide...


Desejo que venhas, Maria Adelaide, partilhar esta paleta indistinta de sentimentos, tão apta a desabrochar em fantasia de cor, como a fechar-se em teimosia de guardar pétalas. Como tantas vezes, dizendo-te, me digo, e aquilo que era apenas intuição ou vago desejo de nada e de tudo, se revela límpido em ti. O teu rosto e o teu sorriso, talvez uma breve carícia de teus olhos e a palavra ganha a tonalidade certa e sentido oculto, que os dedos decifram sobre as teclas. Quero, hoje, que sejas a matriz de tudo, já que por África enveredamos. Que eu te invente de novo. Que te recrie na doce lembrança dos primeiros tempos, esbatidos – ambos o sabemos – no devir das nossas vidas passadas. Na contabilização de nossos afectos, que não sendo nossos, nossos são, na divergência e desencontros das nossas vidas. A que ambos somos leais, mas não fiéis!...
                          
Confessaste-me, um dia, que te aproximaste de mim por curiosidade. Nunca tiveras por tão perto, em convívio diário, um comunista. De facto, em certo sentido, eu era um outsider. Nas minhas itinerâncias profissionais, acabara de retomar o lugar na Administração Pública. A geografia política mudara no País. Eram outros os tempos. O João, teu marido, ocupava lugar destacado num gabinete ministerial. E tu vieras da Escola onde exercias, porque te era mais confortável a Administração Central. A ti bastava seres a mulher de quem eras. Eu era (quase) um “pária”, um comunista, sabe-se lá se um perigoso “infiltrado”, um “vende pátrias”, em suma, pronto a entregar os altos desígnios da anódina Direcção Geral ao estrangeiro. O Director, em seu zelo apostólico-político, não me permitia, por isso, nem o mais insignificante papel para, ao menos formalmente, poder justificar o tempo e o vencimento. Nada, literalmente nada. E eu não me importava!... De forma que tu e eu tínhamos que queimar as horas e a monotonia. Devo confessar-te, porém, que me aproximei de ti pelo veludo de teus olhos. E em nome da “velha amizade” com teu marido. Sempre o João dissera, em conversas soltas da juventude, no grupo de férias na província, que um dia casaria, sim, mas seria com uma mulher rica. A curiosidade agora era minha. Quando te contei, mais tarde, sacudiste os cabelos numa gargalhada e vi os teus olhos toldarem-se. Ainda não éramos amantes. Depois eu soube. Tu contaste-me com lágrimas de amargura e raiva. Mas, então, ainda não. No entanto, ambos sabíamos, já de nossos corpos. Pressentíamo-nos na vibração, quando, a centímetros, escorríamos um pelo outro. Nas passagens, nas portas, no corredor. Quando, no elevador, repleto, buscávamos a proximidade. Ou quando, derretidas as inibições dos primeiros tempos, te sentavas, de pernas descuidadas, na minha secretaria.

E então quando, sobre a tela, passava o “Eclipse”, de Antonioni, a minha mão buscou a tua não houve surpresa. E quando a Mónica Vitti, tão frágil e desamparada, soltou o grito na brancura solar écran, as nossas bocas eram pasto, na obscuridade da sala. E quando saímos, a urgência era fome de ternura partilhada.

Merecemo-nos. Soubemos sorver até ao fim a beleza desse encontro...

Hoje evoco-te, Maria Adelaide, neste meu regresso a África, como se tu foras quando ainda não eras, porventura, alibi ou pretexto ou, por momentos, os nossos caminhos inversos fossem colisão de destinos, tu no furor da guerra colonial, em busca de refúgio em Lisboa, protegida pelo dinheiro da família e umas vagas aulas na Faculdade de Letras e eu subindo o escaler do Uíge, milhares de homens a bordo, debruçados na amurada, prolongando o choro das mães, o beijo das mulheres e das noivas, a serena revolta dos pais e dos amigos, o fadário de um Povo acorrentado, os restos crepusculares das “andanças e traficâncias” de um proclamado Império, que não do sonho do Quinto, pois que o Padre António Vieira não é para aqui chamado, mas da rançosa persistência colonial, ao arrepio da História e da vontade dos povos colonizados.

Pressinto o teu olhar no meu rosto e o teu sorriso irónico: - “Que fulgor e que arrebatamento, Manuel!... Vejo que ainda não estás curado do “bichinho” da política. E soltas uma gargalhada nervosa...

Eu sei que sim, eu sei que sim, Maria Adelaide. Sei por que caminhos te levam as minhas palavras. E tu sabes que nunca esquecerei a celebração “as minhas derrotas políticas”, aquela fórmula prodigiosa que tu, então dividida entre o apoio ao marido e o voto do coração, inventaste para mim, num momento da mais absoluta rendição e exaltação amorosa.

Mas, por enquanto, ainda África, Maria Adelaide...

Manuel Veiga


  

16 comentários:

Licínia Quitério disse...

E vamos ao terceiro livro, com mais de cem páginas, cem...

Olívia Marques disse...


Sedutor, este modo de contar! Depois há o tempo histórico... Tanto que contar!

Um romance, a próxima publicação?


Bj.

Menina Marota disse...

Perturbadoramente aliciante...
Gostei de ler.
Um abraço

Maria do Sol disse...

Ás vezes misturamos tudo...se calhar ainda bem...é daí que nasce a beleza de um texto como o que acabei de ler.
Abraços

MARILENE disse...

Simplesmente, encantador! Fora as questões de idealismo, um encontro sublime, pelo prazer dele oriundo. Abraço.

luisa disse...

Li com agrado.

Estes fragmentos são de obra já concluída ou ainda em fase de criação?

lis disse...

Muito muito boa leitura.
Bem se diz que os poetas tem sonhos grandes o suficiente para não perde-los de vista. O fragmento é simplesmente encantador!
parabéns.

Shirley Brunelli disse...

Ao desnudar sua alma, escorreu dela rios de poesia.
Lindo demais, Manuel.
Beijo!

Suzete Brainer disse...

Uma história que nos rende...
Tão rica poeticamente, com uma narrativa sedutora e
senso de humor guiado pela inteligência expressiva
no uso da primeira pessoa possibilitando ao leitor,
uma participação voyeur no confessionário
deste romance...
Brilhante fragmento!!
Beijo.

Agostinho disse...

Uma prosa de luxo, na primeira pessoa, confere ao leitor uma aproximação, uma cumplicidade, uma intimidade cativante; nela corre um rio caudaloso de linguagem poética que cria o ambiente especial para as revelações,para as confissões da alma humana.
Muito bom!

Graça Pires disse...

Não tenho palavras para te dizer quanto gostei deste teu texto... Como disse Herberto Helder "todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas". Esta é uma história muito bela. Para continuar, não é assim?
Um beijo, meu amigo.

Anónimo disse...

É uma palavra que digo poucas vezes: "lindo".´
- Lindo!
Já está! Aaaaa!... pronto ... sinto-me até aliviado!... disse "lindo!"... afinal até não custou muito dizer "lindo!"...
Já agora que estamos comentando palavras/histórias lindas:
um lindo abraço Pata Negra

Manuel Veiga disse...

que coisa linda ver o Pata Negra a perder a "virgindade" e a dizer "LINDO" ...

essa fica cá gravada, pá!

abraço fraterno.

Manuel Veiga disse...

que coisa linda ver o Pata Negra a perder a "virgindade" e a dizer "LINDO" ...

essa fica cá gravada, pá!

abraço fraterno.

CÉU disse...

Que texto "meu amor" de amigo!
Que excelente prosa! Não sei se deva classifica-la como narrativa ou como descrição, mas o importante é que não cansa e encanta.
A traição e a atração, nestes moldes, acho-a linda e não "pecadora".
E qdo saíram a urgência era fome lavada, séria, de ternura inteira e de ambos. Tão bom, assim!

Fique bem, recordando!

Maria Eu disse...

Que maravilha! O amor a par e passo com os caminhos de cada um na História!

Boa noite, Manuel. :)

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