Aprestadas as diligências na sede do
Batalhão, recebida a “ordem de operações”, perfilado o pelotão, na parada, em
fato de combate e a protocolar revista do Comandante estava tudo a posto para o Alferes poder rumar à
Tabanca, à frente da sua coluna militar. Dois camiões, carregados de sacos de
areia e com os bancos virados para o exterior e armas municiadas, transportavam
os trinta homens do “pelotão de combate”, a enquadrar a secção de engenharia do
Furriel Serrão. À frente da coluna, o Alferes, em jipe de quatro lugares,
acompanhado do seu condutor permanente, o cabo radio-telegrafista e um enfermeiro.
À distância, uma bordadura solidária de
dezenas de militares acompanhava o roncar dos motores. O Valentim, camarada de
armas e amigo de todas as horas, destacou-se da espessa muralha humana e vem,
ao início da coluna, dar um abraço ao Alferes numa emoção calada, que ele bem
soube disfarçar na sua jovialidade costumeira: “Cuida-me desses ossos, pá! Não vão eles servir para engrossar o almoço
de um qualquer turra!...” E, repetido o abraço e voz tremulante: “Que falta me vais fazer, parceiro do
“bridge” e do “king”...”
Viaturas em marcha e, das entranhas da garganta,
desfazendo o nó da emoção solta-se, na parada, o grito rouco e solidário de
dezenas de homens, marcados pelas dores da guerra e a precariedade da vida – “Hurra, hurra!...”
O Alferes ergue o braço em agradecimento
e despedida e sem mais delongas, a coluna militar fez-se ao caminho, que
escassos minutos depois se perdeu de vista, na primeira curva da estrada. Distende então
as pernas no espaço acanhado do jipe, ergue os braços sobre a cabeça, faz
estalar os dedos num gesto de descontracção e desabafa para seus botões, num
suspiro de exagerada (in)sinceridade: - ” Finalmente,
vou ver-me livre daquela cambada, por uns tempos!...”, disfarçando assim as
emoções de última hora e a visar, com o desconchavo, o ambiente claustrofóbico
do quartel, onde, apesar da cordialidade entre camaradas de armas, assumida e
cultivada, por mais que se possa fazer em contrário, se acaba sempre por esbarrar
com as mesmíssimas caras, repetindo os mesmos gestos, tiques e rotinas.
Agora ali estava livre de rotinas e
sujeições. E, no entanto, levemente inquieto, entregue ao seu destino e à “solidão” do comando da sua coluna militar. A liberdade, sempre relativa e
precária – vem sabê-lo mais tarde – acarreta, por vezes, um insuportável peso,
que transcende a estrita dimensão das escolhas. Ou as circunstâncias que nos
cercam. Mas por enquanto, não. Não sabia então ainda, o Alferes.
Acendeu assim um cigarro, afastou com um
gesto as inquietações, assumiu ele próprio, em transgressão dos regulamentos, a
condução do jipe e, ei-lo, glorioso, como se
em pleno Verão lisboeta, conduzisse, na marginal do Estoril, um reluzente
descapotável!...
6 comentários:
Uma leitura deliciosa com a vontade de continuação,
afinal o Alferes já faz parte do meu universo (imaginário)
de leitora.
O culpado és tu, com a tua excelência na construção do
perfil completo do personagem que nos conduz a viajar
nesta história...
Estou adorando!
beijo.
E assim segue a luta de cada um na sua forma única de se libertar...
Um domingo de alegrias e uma semana de realizações.
Um beijo afetuoso.
Crescer em inquietação que se vislumbra, mas não se entende, fazer a barba com permanentes lanhos...
E assim (sobre)viveu uma geração.
Um abraço
Os caminhos constroem-se em todos os apeadeiros
Abraço amigo
Vou ver se ainda apanho o fio à meada destes fragmentos de um relato autobiográfico?!
Espero que a partir do décimo retalho, ainda possa acompanhá-lo.
Gostaria muito!
Um beijo.
Gosto desta prosa!
Memórias de picadas e caminhos de pó ou lama.
Quando o medo engrossava as pernas retesavam-se na eminência de...
"Manos cambutas" lhes chamávamos. Na mesma costa, mais a sul.
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