A viagem prosseguiu em seu ritmo
pachorrento. De facto, a estrada, se estrada era, não passava de um rasgão na
savana, terra batida que os camiões dos madeireiros e o transporte da mancarra haviam aberto e consolidado,
com alguns trabalhos de engenharia a superar terrenos mais alagadiços e linhas
de água. Com a guerra em crescendo e a paralisação do negócio, a estrada foi,
em grande parte, engolida pela vegetação, ficando, em extensos troços, apenas o
registo da passagem das populações locais, em estreito carreiro como se apenas picada fosse, no interior do matagal.
Houve assim que fazer sucessivas paragens
e estabelecer as indispensáveis medidas de defesa, com duas secções, nas
margens da estrada, ladeando a coluna de viaturas, em posição de vigilância, enquanto
os restantes militares procediam, sob um sol abrasador, ao corte do capim,
ramos e arbustos, ou a trabalhos de pá e picareta a nivelar o terreno, sulcado
por frondosas chuvadas.
Assim, a cálida fantasia do Alferes, sob
os céus de Lisboa e o macio devaneio ao volante do descapotável, cedo se
desvaneceu no confronto com a exigente realidade de comando, disfarçando a
apreensão, estimulando os mais sornas,
reclamando a urgência das tarefas, zelando pela segurança, avaliando a
distância e o tempo para a noite não surpreender o grupo, desprotegido na
estrada, sem alcançar o destino e o aquartelamento almejado.
Como toada de fundo, o grasnar de
pássaros coloridos e aves e o grito de pequenos símios sobre as árvores ou o
inesperado bando de gorilas, em desafio, qual pelotão perfilado, atravessando a
estrada, de um lado ao outro, como que a lembrar aos intrusos que a lei da
selva lhe confere o direito elementar de não serem importunados. E que, conforme
as leis da vida (e da história), as lógicas impostas de fora ou as narrativas
de domínio pela força são práticas cruéis, que violentam as razões da Natureza
e a linguagem primordial das coisas criadas. E que a espécie humana e o homem
“civilizado” são apenas o registo
emancipador de todas elas, bem se sabendo que a dramática passagem do “reino da necessidade ao reino da liberdade”
é um processo inacabado, que arrasta consigo todas as escórias e todos os
lampejos.
Eu
sei, Maria Adelaide, que não aprecias particularmente estes incisos, esta
propensão em entrar por caminhos, que não digam de nossos passos, estas
derivações da narrativa, esta insistência em África que não seja a tua meninice
e, sobretudo, te fazem sorrir, em inocente ironia, as evocações vagamente
pretensiosas, a que chamas de “erudição vagabunda”, certa como és de que a vida
é para viver à flor da pele, inteira, na tensão do inesperado, sem angústias
metafísicas, cultivando os momentos bons e sofrendo os maus como inevitáveis.
Mas tu sabes que é em ti que todas linhas se cruzam, todas as palavras são
preenchidas e que, mesmo não sendo és, ponto nodal da escrita, que para ti
vive, num jogo especular da tua imagem derramando-se em cada vereda, na
profusão dos acontecimentos, ou no traço grosso do desenho, ou na surpresa, ou
na amarga dor dos dias, como se o “tempo literário” outra coisa não fosse senão
advento (de um tempo outro em que irás erguer-te).
Entretanto, desafiavas tu, em tua
rebeldia, a autoridade familiar e os princípios e valores em que foste educada
e, sem bem saberes como, “perdeste-te” na euforia da contestação universitária,
acabadinha de chegar à Faculdade de Letras. Aos olhos de teu pai, “salvou-te” o
João, que fiel à sua promessa de ”casar rico”, de ti se aproximou e, poucos
meses depois, te levou ao altar, para sossego de tua família e glória e proveito do próprio, recém-licenciado pobretana, dando os primeiros passos no exercício da
advocacia.
Noutra
latitude, a Lia, a sereníssima e imperial Lia de minhas brincadeiras e jogos de
infância, era entregue pelos irmãos “à protecção” do “Chefe de Posto” de uma
vila ignorada de Angola, que desde que a conhecera cobiçava seu corpo, “órfã”
que ela ficara do Padre Francisco, que não resistiu, em sua crónica tísica, às
febres tropicais e a deixara pouco menos que ao abandono, com o filho nos
braços. Imaginas tu, porventura, Maria Adelaide, este seu novo calvário, sob o
domínio do tiranete, que ao longo dos anos lhe infernizou a vida? A cada um os liames
que a vida tece, por vezes bem ingratos.
Deixa,
por isso, que o Alferes prossiga viagem e que a Tabanca reine, por algumas
páginas, como centro do universo. E, por favor, recolhe esse traço de
contrariedade, que te desfeia o rosto...
À distância, fora de rota, de vez em
quando, uma silhueta humana esbatia-se no horizonte, ou desaparecia encoberta
pelo capim e pelo mato. E assim, avançava a coluna militar, cautelosa,
vagarosa, corpos tensos e rostos fechados, sob um sol ardente e o monótono
ronronar dos motores, cortado, por vezes, com uma gargalhada geral e uma
graçola ou outra, a descomprimir a tensão e o cansaço.
Pouco a pouco, a estrada ia ficando mais
transitável, os trilhos mais marcados, manadas de vacas brancas ou cinzentas ou
vagamente malhadas, a pastar nas imediações, campos de mancarra e milho abertos
na savana, os primeiros acenos e sorrisos de grupos de mulheres esbeltas, com
os filhos atados às costas, debruçadas no amanho da terra, ou então, em difícil
exercício de equilíbrio, com enormes “balaios”
na cabeça, a transportar o alimentos e os produtos indispensáveis. As mulheres
- pois claro! – que “os homens-grandes”, em
breve o saberíamos, debaixo do frondoso embondeiro, no centro da Tabanca, mastigam
folhas de coca, passajam os dedos em contas de sândalo, a murmurar o Corão ou
apascentam prestígios, contados pelo tamanho da manada de vacas e pelo número
de mulheres que possuíam.
Enfim, a Tabanca estava próxima. A verdadeira
“viagem” iria começar agora...
10 comentários:
Nunca estive em África, muito menos em qualquer picada ou tabanca, mas penso que este magnífico texto, para além de ser uma boa peça literária, reflete muito bem a atmosfera local.
Gostei imenso, pois claro...
Caro amigo, tenha um bom fim de semana.
Abraço.
Claro que és um grande escritor. Este texto narrativo de memórias sentidas e imaginadas, o diz. Fiquei a deambular pelas palavras e pressinto que a Adelaide sabe que é o "ponto nodal da escrita"...
Um beijo, meu amigo.
O poder da memória a (re)criar caminhos...
Se produção literária ou reminiscências, presenteaste-nos com um texto de belíssima construção.
Abraços ternos e um final de semana do jeitinho que tu pretendes.
Com carinho,
Helena
Sempre contigo a ler escritos que sempre bem entendes reconstruir para nos transportares
para lá das belas palavras nos apeadeiros de uma vida plena que nos propõe seguir a tua viagem sem fim à vista
Abraço poeta
A volta da Maria Adelaide, confesso (segredo) que ela
é uma excelente digressão na tua esplêndida narrativa...rsrs
Ela é muito importante, é a personagem feminina (colocar
juízo ou tirar o juízo do homem), uma visão crítica (auto-crítica
do autor) saborosa de humor:"uma erudição vagabunda"...rsrs
Desculpa se estou sendo uma leitora (fã) intrometida,mas
estou seguindo com os olhos ( além imaginário)
absorvendo o movimento vivo (poético) das tuas palavras...
Estou adorando e quero continuar esta viagem!
beijo.
Minha atenção foi absorvida
pela beleza do texto apresentado.
Adorei a forma como escreve a verdade dessa África, que desconheço
e desse viver tão romântico
com a mulher certa que subtilmente o chama
quando se embrenha nas recordações passadas
Aí, ela não faz parte desse mundo
e teme que se perca na viagem
Faça a viagem com cuidado e a misture, constantemente, ao romantismo do dizer!
Beijo,
Mª. luísa
Olá, Maria Luísa.
o que aí vai, minha amiga, sobre hipotéticos romantismos!
a Maria Adelaide é uma mera criação literária...
beijo. grato.
É impossível não ler suas postagens sem aplaudir seu talento para a escrita. Não conheço esses caminhos, o que não me impede de vê-los e de assimilar as ideias e entendimentos que coloca no sentir dos personagens. Abraço.
Ultimamente, não tenho tido oportunidade de lhe seguir o passo, de ir lado a lado consigo! Paciência, fico atrás e sigo o seu rasto nestes fragmentos que leio e volto atrás para reler, até absorver toda a essência do que quer transmitir. Se consigo? Estou tentando...quedando-me na admiração de tão bela escrita!!
Beijinhos.
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