terça-feira, novembro 10, 2015

FRAGMENTOS XV - "o Assobio" no Proscénio ...


Para além da vivenda de Dona Rosalinda, arvorada, daí em diante, em sede do comando militar Companhia de Cavalaria, da qual o Alferes e o seu pelotão de bravos era guarda avançada, o núcleo central da Tabanca era constituído por meia dúzia de edifícios coloniais, de diferentes tamanhos e portes, construídos de “pedra e cal”, que os portugueses vieram para ficar, à volta do qual se alargavam, em círculos desordenados as palhotas indígenas.

À entrada, descaído para o sul, que dizer, no lado oposto à fronteira, um edifício quadricular e térreo, construído em adobe de barro e tapado, em lugar de telha, por folhas de zinco, que cobriam, além do telhado, o alpendre em volta da casa, esteticamente inspirado na opulenta vivenda de Dona Rosalinda, onde nas noites cálidas, espreguiçava uma mão cheia de mulheres indígenas, de diversas idades e numerosa prole e, lá dentro, estendido sobre um baloiço de pano, de lés-a-lés, atado nas pontas às colunas que suportavam o tecto, um homem sem idade, abanado em seus calores e caprichos por um jovem (eunuco?), digno cenário certamente do prodígio das “mil e uma noites”.

Efabulava, assim, o Alferes, num registo irónico, “a arqueologia dos saberes e das distâncias”, oscilando, por momentos, em suave gozo intelectual, entre a inefável “permanência das estruturas culturais” e o “lastro sociológico em que se despenham” transfiguradas e degradadas, mediante o “mergulho no real histórico”, como se a opulência do Xeique das Arábias decaísse em pindérico Régulo guineense.

“Nada é perfeito, nem sequer o perfeito mundo das formas!” – desabafou o Alferes, filosoficamente, para os seus botões, em seu percurso íntimo, rumo à vivenda de Dona Rosalinda, onde esperava poder negociar as suas instalações privadas, certo como estava, que seu corpo continuaria pasto de diversos jejuns da generosa senhora, destino aliás que, benevolente consigo próprio, estava resignado a aceitar, pois de alguma forma, desde as suas peripécias amorosas, ainda Portugal, no decorrer da recruta, em Castelo Branco, com a célebre “Papa Alferes” estava vacinado contra ironias e zombarias dos seus camaradas de armas, sejam eles o seu amigo Valentim, seja o próprio comandante do Batalhão.

E, como em tudo da vida, mesmo nas situações mais incómodas se pode tirar sempre algum ensinamento ou vantagem, na mente um tanto ou quanto precocemente perversa do Alferes, reconheça-se, começava a germinar a ideia de que, da “exigente missão militar” que o leito de Dona Rosalinda era campo de exercícios e aplicado treino, talvez, cismava o Alferes, talvez pudesse daí advir ganho de causa, pois que a excelsa senhora, com sua longa permanência, conheceria, certamente, por dentro e por fora, a Tabanca e, sobretudo, os percursos de vida, quiçá, os segredos e os esconderijos de alma dos seus concidadãos brancos, que o nosso denodado jovem oficial, qual Mata Haari de másculos calções, se propunha arrebatar, aprendiz de caçador de almas, que desejaria ser um dia...

Calo-te a pergunta, Maria Adelaide, que te queima os lábios: “Mas donde saiu agora esta “Papa Alferes”? Não te parece excessivo o pendor femeeiro da tua escrita? É que não há narrativa que resista a tão aceso desígnio literário, nem paciência de leitor que o suporte...”

Eu sei, eu sei, Maria Adelaide, que a “apaixonante” Dona Rosalinda te caiu “no goto”, desculpa plebeísmo, nem sempre pelas melhores razões, pois que o que te move na tua urgência, é apenas o capricho de mulher mimada, que julga as figuras literárias pelo seu próprio figurino, a que, no teu caso, acresce África e as suas voltas e revoltas e os destinos e caminhos que marcam o itinerário da tua vida. Descansa, Maria Adelaide, esquece a “Papa Alferes”, que nada traz de interessante, apenas incidente, mera passagem, ponto de referência ou ponte para outras margens, que alimentam o descuidado fio da narrativa. A urgência agora é outra, que em tua pulsão ansiosa e os teus cuidados com Dona Rosalinda e o que dela esperas para dulcificar teus caminhos, não te permite sequer um desprendido olhar de interesse.

E terás, porventura, razão. Que importância tem o “apoucalhado” soldado básico, graduado na mais baixa condição militar, como “ordenança” do comando da Companhia, e que se reconhece na alcunha “O Assobio”, a que os seus camaradas de armas, em prova de insólito privilégio e admiração, o promoveram, perante a crepitosa Dona Rosalinda e seu lúbrico desvelo pelo Alferes? Mas não te vais livrar de “O Assobio”, Maria Adelaide , por muito que o teu enfado me seja penoso.

E, no entanto ....


6 comentários:

Suzete Brainer disse...

Um texto deste, a nossa atenção de
leitor é muito fácil, sem nenhuma
possibilidade de enfado.
A "Maria Adelaíde" é muito briguenta...rsr
Ela sabe da sua importância no universo
da crítica do palco (texto)...
Meu passaporte carimbado para
a continuação desta viagem, Poeta amigo!
beijo.

Mar Arável disse...

Lá estarei no teu próximo apeadeiro

Abraço amigo

Graça Pires disse...

Nesta tua prosa vem "esgalhada" continuo a seguir atentamente a Maria Adelaide que muito admiro pela acuidade das suas interpretações. E como eu a entendo...
Um beijo, meu amigo.

Palavras soltas disse...

Acho que peguei o "bonde andando", mas ainda assim uma ótima leitura com personagens cativantes e que me deixaram curiosa pelo outros fragmentos... lerei portanto.

Beijinho.

Shirley Brunelli disse...

Maria Adelaide com ciúme de Dona Rosalina, que todos conheciam de outros carnavais?...
Beijo, Manuel!

Agostinho disse...

Já assobio, caro Manuel, que do belo campo de batalha da D. Rosalina hão de surgir pelas de ciúme que a perspicaz Maria Clara nem sonha, tanto mais, presumo nunca envergou o verde oliva dos heróis.

Muito boa a leitura a escorrer pelas gargantas como cerveja nos tropicais dias de remanso.
Abraço

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