“O Assobio” foi
o último militar a integrar o pelotão de recrutas. Chegou com três dias de
atraso, como uma encomenda extraviada.
Naquele tempo o
País era pobre e pobre continua. Mas naquele tempo, no auge da guerra colonial, o País, além de pobre,
era lúgubre e o Exército abocanhava a juventude, que resistia à emigração ou ao
exílio político e, após uns escassos meses de treino acelerado, despachava-os
para a guerra, donde muitos regressavam num caixão de chumbo, ou por lá
ficavam, em cemitérios de ocasião, fazendo de pasto a hienas e a outros bichos
e animais necrófilos.
O Alferes não
era ainda. Era apenas Aspirante,
exibindo os seus gloriosos galões doirados de Oficial Miliciano, então em diagonal, sobre os ombros, em simbólica
demonstração de que, em meio ano de exercícios físicos e umas noções teóricas
sobre “guerra subversiva”, de mistura
com umas aulas de equitação e uns conhecimentos vagos sobre o funcionamento das
“Panhards” e outros “Carros de Combate”, a Escola Prática de
Cavalaria era produtiva fábrica de
oficiais milicianos e o nosso
Alferes, então ainda Aspirante, estava
apto a comandar tropas.
Foi pois o então
Aspirante, antes de ganhar os
almejados galões de Alferes e a
decorrente mobilização para a guerra, chamado
a dar provas da sua aptidão como Oficial do Exército e, para tal colocado em um
dos dois quartéis da bela cidade de Castelo Branco, um dos locais onde se dava a recruta aos mancebos incorporados
no Exército, uma espécie de linha de
montagem de enchidos, onde, numa ponta, entravam jovens camponeses e
operários e, do outro lado, saía carne para canhão, destinada a uma qualquer
das três frentes de guerra.
Pese embora a
circunstância de Castelo Branco se localizar no interior do País, a fornada que calhou ao nosso novel Aspirante a oficial, provinha da região
de Lisboa, fundamentalmente, dos populares bairros de Alcântara e do Alto de
Santo Amaro, bem como das zonas industriais limítrofes, desde os arredores de
Sintra até Vila Franca, pelo que o pelotão instrução que coube ao nosso “não
ainda Alferes”, mas apenas Aspirante, era constituído, sobretudo,
por jovens que sabiam ler, escrever e
contar, que a tanto se bastava a Escola e a consigna salazarista, alguns
dos quais expressavam sinais de consciência
social e política, e que, portanto, como o jovem oficial, iam para a guerra
com a mesma vontade quanto a rês vai para o açougue, isto é, presos pela
arreata, como em tempo outro, já não de guerra mas de festiva Liberdade, o “já não Oficial”, mas o Aprendiz de Advogado pode comprovar, no
prazer dos reencontros em manifestações políticas e outras formas de
participação cívica, quando, inesperadamente, do meio da multidão saía o
chamamento e o esfusiante abraço: “O meu
Alferes nunca me enganou! Sabia que um dia haveríamos de nos encontrar numa
ocasião como esta!...”, depois pretexto
para uma cerveja e o avaliar do estado da
Revolução, ou lembrar alguns episódios da tropa, numa camaradagem sem
fronteiras e hierarquias. Que maior glória militar ou mais distinta
condecoração, digam-me?
Mas por
enquanto, não. Era tempo ainda de os homens se medirem, presos aos remos do
mesmo barco. Não foram fáceis, por isso, para o novel oficial os primeiros dias
de instrução dos recrutas. Com mais ou menos zelo, a maioria do pelotão seguia
a voz de comando e suas ordens e instruções; mas havia um grupinho de meia
dúzia de mancebos, que numa sornice
ostensiva, por vezes, a rasar a insolência, fazia gala em executar os
exercícios, no tempo e no modo que
bem entendessem, como quem diz “se queres
comandar-nos, tens que merecê-lo!”
Claro que ao
alcance do jovem Aspirante sempre
estariam presentes meios militares
para obrigar os recalcitrantes a entrarem
na linha: um serviço suplementar de faxina
às cozinhas, uma carecada, ou uns fins-de-semana
cortados, retidos no Quartel, sem poderem pavonear-se pela cidade ou os mais
sortudos, como meios para tal, poderem ir visitar a namorada e a família ou, em
caso extremo, a participação formal ao comandante de Companhia seriam
suficientes para os chamar à razão. Mas tais opções disciplinares nunca foram
consideradas. Aquilo ali era mais sério que a mera disciplinar militar – mexia
com o brio do novel Aspirante! Digamos,
“Aquilo era desafio solitário: de homem
para melro!...”, em espaço e tempo
outros, que não de cálidas memórias da infância.
Começou, por isso,
jovem Aspirante pelo óbvio. E pelo
que lhe pareceu justo, pois que, aprendera por consagradas “Sebentas” em segunda mão, em esforçadas noites, na vetusta Lusa Atenas, que “Justicia est constans, ac perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi”,
ou seja, mal comparado, que “a
Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”.
Ora, nada mais
justo, então, que fossem os prevaricadores, e não outros, a arcar com as
consequências dos seus actos, pelo que, assim empolgado pelos altos desígnios
da Justiça retributiva, mandou o Aspirante, ainda não Alferes, que o grupinho de reguilas “pagasse” com o corpo, as suas
tropelias e fizessem os exercícios
militares, com o restante bem comportado pelotão a observar em descanso, de
forma a que os mancebos do grupelho à parte repetissem os exercícios, em frente
dos camaradas, tantas as vezes quantas as necessárias até, finalmente, serem
executados em rigorosa perfeição.
A estratégia,
porém, saiu furada. Na realidade, para o grupinho seria de todo insustentável
ver os camaradas do pelotão a laurearem-se com o prémio do merecido descanso e
apenas eles, os recalcitrantes mancebos, a darem o corpo ao manifesto, pois que,
pudesse embora tal situação constituir, na óptica dos consagrados canhenhos universitários,
a mais lídima consagração da Justiça retributiva,
a verdade é que a realização de tal Justiça
não lhes agradava, pois não servia os seus objectivos, a saber, a
conquista de prestígio e do ascendente sobre os restantes camaradas de pelotão,
em prejuízo naturalmente da autoridade do novel oficial e a consequente subversão
da ordem estabelecida.
De sorte que, o
grupinho dissidente, logo à primeira tentativa, por mais difícil que fosse
exercício, de ordem unida ou de ginástica de aplicação militar, logo, à primeira
vez, era executado na perfeição, como se nunca aqueles malandros tivessem feito
outra coisa na vida.
Porém,
integrados no pelotão, nicles!... A sornice
e a insolência do grupinho regressavam, como onda a bater no mexilhão, sendo
que o mexilhão seria o novel oficial, seus brios militares e suas angústias jurídico-metafísicas... E, está bem de
ver, no rosto dos recrutas, até então obedientes e sensatos mancebos, alargavam-se
o sorriso e os evidentes sinais simpatia pelos rebeldes, com os inevitáveis danos
no exercício dos poderes de mando e de
comando do jovem Aspirante.
“Que fazer?” -
Interrogava-se, pois, o Aspirante nesse
lance decisivo. E depois de uma noite de consulta ao travesseiro e uma troca de
ideias com seu amigo Valentim, a passar por momentos idênticos com o seu pelotão,
decidiu então que os fins justificam os
meios, em antevisão de futuras leituras de livros heréticos, sobre o poder e a sua natureza, em que a superior
realização dos princípios da Justiça decai na “humana, demasiado humana” realização dos interesses próprios de
quem o poder detém, bem como os seus mecanismos de efectivação.
Pagariam, portanto,
com o seu corpo todos os mancebos e não apenas os prevaricadores! Enquanto um
qualquer mancebo não satisfizesse as exigências do comando, todos os recrutas do Pelotão, “os bons e os
maus”, executariam os exercícios, não apenas os recalcitrantes, as vezes
que fossem necessárias até todo o Pelotão respondesse afinado, como se apenas
um corpo único fosse. É bem certo que o expedito Aspirante mandou a Justiça às urtigas, mas devolveu ao grupo de
sornas reguilas o ónus da condenação e do (injusto) castigo dos seus camaradas.
Cumprissem eles e todos, no mesmo barco, seriam salvos.
E a ordem
militar regressaria. Ámen!...
“Ó da barca! Em que barca seguirá o
Aspirante, ainda não Alferes? Na barca do Céu? Na barca do Inferno? Que o digam
os leitores, que não tu, Maria Adelaide, que és suspeita...
Era este o clima
do Pelotão, quando o “Assobio” chegou, com três dias de atraso, como encomenda
extraviada.
O “Assobio” não falava, grunhia, como
veremos...
8 comentários:
Que vida dura para o ainda não Alferes e para os recrutas...
Hummm... O ASSOBIO promete, vamos esperar para ver.
Muito bom, heretico.
Beijos!
Enquanto o “Assobio” não fala dou a palavra à Maria Adelaide. Não sei por que é suspeita, mas confio nela...
Uma excelente narrativa, meu amigo.
Um beijo.
Há sempre um assobio
nos apeadeiros
dos caminhos de ferro
Abraço sempre
Estes fragmentos dão um romance.
Fôlego não lhe falta, sendo o resultado muito apelativo para a leitura.
Excelente, parabéns.
Continuação de boa semana, caro amigo.
Um abraço.
Continua a história guiada pela narração
no tom de excelência e numa capacidade
de domínio literário raro, introduzindo
novos pontos luminosos:
"era constituído, sobretudo, por jovens
que sabiam ler, escrever e contar,
que tanto se bastava a escola e a
consigna salazarista, alguns dos quais
expressavam sinais de consciência
social e política, e que, portanto,
como o jovem oficial, iam para
guerra com a mesma vontade quanto
a rês vai para o açougue"
Uma ralidade tão triste e deprimente...
"Aquilo era desafio solitário: de
homem para melro!...", em espaço
e tempos outros, que não de cálidas
memórias da infância."
A beleza encantadora poética e construção
literária: a beleza da linguagem (arte
da pontuação)...
Olha, Maria Adelaide não se cala, eu
sendo leitora fiel, reivindico
a voz dela...rss
Estou curiosa em saber
sobre o "assobio"?!...
beijo.
Uma leitura agradável com personagens interessantes,com certeza a história promete...
Beijo.
Não consigo assobiar para o lado perante um fragmento como este.
"A praxe militar sempre me confundiu".
Belo texto para ir acompanhando.
Um abraço fraterno
"Desafio de melro para homem".
Quem passou por experiência semelhante, quer numa posição quer noutra, sabe bem do que se trata neste trecho. Uma narrativa excelente que merece o cheiro da tinta.
Pois que venha o próximo episódio; leitores não faltarão.
Abraço.
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