Passemos, então,
por cima dos dicionários e, salvo seja, por cima da insigne doutora Maria Adelaide, licenciada em Línguas e Literatura Modernas, heroína desta fita e
amiga dilecta do autor seria, se autor existisse, lavrando assento, uma
vez por todas, que o Assobio é mesmo “Apoucalhado”, isto é, o Assobio não é diminuído ou apoucado das normais qualidades psíquicas, que cada um
de nós exibe e arrasta, por vezes, florindo em meio propício, outras definhando
em meio hostil, de uma qualquer inóspita Serra da Gardunha. O Assobio, “pobre de espírito” que é, não reflecte, porém, um “apoucalhamento” consequência ou reflexo
de um qualquer desejo maligno e perverso de vontade humana em apoucar os pobres de espírito, ou semelhantes, mas antes constitui exuberante
afirmação do “estado da natureza”,
que lhe moldou a personalidade e o carácter, dignos, aliás, em sua íntima
fusão, natureza e “personalidade apoucada”
de sábios estudos e doutas opiniões antropológicas. Dir-se-ia, assim, para não
ferir a erudição sensível dos gramáticos mais atentos ou, mais grave ainda, para
não ferir as susceptibilidades de Maria
Adelaide que o “Assobio” é um “pobre de espírito”, o que só o
engradece, pois que a humanidade está repleta de “pobres de espírito” e, não
raras vezes, na história, a sua sorte, dela humanidade, esteve dependente do capricho de um qualquer “apoucalhado”, perdão,
de um qualquer “pobre de espírito”.
Aliás, como bem se sabe, na antiguidade os apoucalhados
eram seres de eleição e, por eles, os deuses enviavam recados aos restantes
e ajuizados mortais, a anunciar desgraças ou a vinda de dias faustos, como
também a Bíblia reserva, aos “apoucalhados”
especialíssimo lugar no Além,
pois que “bem-aventurados são os pobres
de espírito, que deles é o reino dos Céus!...”
“E se bem reparares, Maria Adelaide, a tua própria
sina é marcada indelevelmente pela constância dos “Apoucalhados”. Não carregues a contrariedade, minha querida, pois é mesmo como te
falo, bem como esta narrativa, que outra coisa não pretende ser senão o
embotado reflexo do espelho em frente do qual nos desnudamos teria
justificação ou sentido, nem, porventura, haveria narrativa, pois que, nela, a
tua existência não seria sem um "apoucalhado" a intervir no âmago de tua vida. Bastaria, para tanto, que, algures perdido num lugar
distante, não nos inóspitos cumes da Gardunha, mas noutro local mais interior
ainda, onde o santo padre Manuel, tio de Lia, a sereníssima e imperial Lia da
minha infância, já roído da “ferida ruim” que o haveria de levar, não tivesse ungido,
com o nome João, na antiquíssima e românica pia baptismal da Igreja Matriz, um
robusto infante, filho do Zé Manhas, jogador da batota e cantador de fado, sem
nada de seu que não fosse sua desempenada figura e a poderosa “lábia”, casado
com a senhora tua sogra, donde saíra o rebento, que teimou, a exemplo do pai,
na ganância de que “haveria de casar rico” e que a ti, Maria Adelaide saiu na
rifa, para descanso de teu extremoso Pai e o amaciamento de tuas “verduras”
contestatárias, como jovem universitária, que fostes.
Ora todo o enredo da tua vida, todos os nós de acaso,
apenas ganham sentido porque um “apoucalhado” lhes dá coerência e sentido,
pois se ele não fora, se “pobre de espírito” não fosse, nunca, por todos os
“nunca” possíveis, o Zé Manhas, jogador de batota e cantador de fado, por
afinada que fosse sua “lábia”, jamais levaria ao altar a mãe do João e tua
futura sogra e com ela o robusto património dos três irmãos órfãos, pois que,
se “apoucalhado” não fosse o irmão do meio, de sexo masculino, seria dele
naturalmente, pela sua condição de homem a administração da próspera casa de
lavoira e não da irmã mais velha, valente senhora, mas mulher, e então o
“vivaço” senhor teu sogro, conhecido pelo Zé Manhas, se ao assédio
sentimental se atrevesse, levaria uma exemplar corrida de pau, face ao atrevimento
de ousar órfã, sua irmã, rica e prendada, fora do alcance e dos sonhos de um
qualquer “pilha galinhas”, perdão, pilha donzelas, e tal inadmissível casamento
não seria realizado e, portanto, não teria sido e, então não existiriam, nem
sogro, nem João, teu marido, meu amigo de infância, nem certamente aproximação
entre nós, nem as tuas pernas descuidadas teriam oportunidade de se sentarem no
tampo da minha secretária, para deslumbre e prazer meu, nem haveria a gloriosa
Monica Vitti, nem Antonioni, nem o “Eclipse” no cinema Quarteto, nem beijo
ardente, nem nossos corpos, nem febre do desejo e nossas vidas outras seriam e
outros os fragmentos, se fragmentos houvessem, em vocação de literatura.
Por isso, Maria Adelaide, não julguemos os
“apoucalhados”, nem queiramos a barca que levarão suas almas, nem menosprezemos
os seus poderes (ocultos), que muito bem podem, sem nos darmos conta,
determinar o destino do Mundo, quiçá do Universo. E se, outro mérito não
tiverem, servirão, ao menos, os “apoucalhados” para testemunhar a fragilidade
dos “acasos”, em que nossas vidas de despenham.
Aliás, Maria Adelaide, o próprio “Assobio”, o
“apoucalhado” ou “pobre de espírito”, que
chegou à recruta militar, com três dias de atraso, como encomenda extraviada e de
que temos vindo a falar, pois dele decorre o emaranhado fio que mantém à tona a
narrativa, que, aliás, no tempo e no modo, lhe é absolutamente estranha e que
apenas o “corpo mítico” da escrita lhe permite o (in)sustentável peso para nela
figurar, irá ter, como adiante se saberá, decisivo lance na evolução deste
enredo, abrindo o palco à crepitosa “Papa Alferes” e sua zelosa tia, que teimam
em assomar ao proscénio, como que fazendo-te pirraça e a atrasar a tua
performance.
Mas, por enquanto, não. Desvendemos primeiro o
“mistério” do nome do “Assobio".
Breve, breve!...
13 comentários:
Foi o mais curto parágrafo encontrado
e talvez o mais significativo:
«E se, outro mérito não tiverem, servirão, ao menos, os “apoucalhados” para testemunhar a fragilidade dos “acasos”, em que nossas vidas de despenham.»
Cá está de novo a Maria Adelaide. Ela bem sabe que é como dizes: "esta narrativa, [que] outra coisa não pretende ser senão o embotado reflexo do espelho em frente do qual nos desnudamos" No final ela sabe tudo o que é preciso saber...
Um beijo, meu Amigo.
Complexa a demonstração genealógica para M.ª Adelaide impressonar.
O que eu digo é que é uma história de assobio!
Venha novo capítulo.
Abraço
Os "pobres de espírito" são geralmente aqueles para os quais a vida nada programou, e vivem desses acasos do destino, aproveitando de certa forma o que lhes pode cair nas mãos.
Belo sermão! :-)
xx
Que vivam os apoucalhados
Abraço amigo
saudações amigas
Gosto disto. Do discurso, da ironia na recorrência do "apoucalhados" e do "pobres de espírito" que não o serão...
E...Começo a "implicar" com a Maria Adelaide!...
"Por isso, Maria Adelaide, não julguemos os “apoucalhados”, nem queiramos a barca que levarão suas almas, nem menosprezemos os seus poderes (ocultos), que muito bem podem, sem nos darmos conta, determinar o destino do Mundo, quiçá do Universo. E se, outro mérito não tiverem, servirão, ao menos, os “apoucalhados” para testemunhar a fragilidade dos “acasos”, em que nossas vidas de despenham."
Um beijo
Lídia
Na verdade, os verdadeiros "pobres de espírito" são quem tanto critica os outros para esconder o seu próprio reflexo no espelho...
Um discurso interessante...
Obrigada pela visita
Beijos e abraços
Marta
Eu desconfio, pressinto que este
sermão do autor que se diz não autor,
nem a Maria Adelaide, a voz da crítica
no espelho dessa viagem, faria um
sermão tão contundente!...
Aguardo mais com a certeza da viagem
na arte literária deste autor que se
diz não autor!
Porém, sabemos que o bom autor é
aquele que abdica de sê-lo.
beijo.
Estou curioso com a história do assobia, mas a Maria Adelaide não o estará menos...
Excelente narrativa. Aqui e ali a fazer-me lembrar Saramago.
Caro amigo, bom feriado e bom resto de semana.
Um abraço.
Gosto da tua forma de escrever, sempre gostei. É pura literatura.
(A Serra da Gardunha, que me é muito cara, mudou, felizmente, de figurino. Já não é fermento de "apoucalhados", e para isso muito contribuiu Abril. Nos tempos que decorrem, apesar do seminarista coelho, caminhos e trilhos são percorridos por caminhantes e ciclistas, desfrutando de inspiradoras paisagens. Para além disso - ficou para o topo - é na Gardunha que se produzem as melhores cerejas deste ocidental rectângulo europeu).
Redigo, com toda a convicção: aqui forja-se literatura, da boa!
Forte abraço
Meu caro AC,
tenho enorme respeito pela Gardunha e pelas suas gentes. "O apoucalhado" bem poderia ter saído da Cabreira ou de Montezinho ou das planícies alentejanas...
a conversa é como as cerejas, não é verdade? sou grande apreciador das cerejas.. rss
grato pelas tuas palavras, que me resposabilizam muito, pois provêm de ti, que cultivas uma escrita original e muito sedutora.
forte abraço, meu amigo.
Se não existissem apoucalhados o que seria dos outros?
Continuando a leitura.
Abraço fraterno.
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