domingo, dezembro 06, 2015

FRAGMENTOS XIII - Sermão em Louvor dos "Apoucalhados"...


Passemos, então, por cima dos dicionários e, salvo seja, por cima da insigne doutora Maria Adelaide, licenciada em Línguas e Literatura Modernas, heroína desta fita e amiga dilecta do autor seria, se autor existisse, lavrando assento, uma vez por todas, que o Assobio é mesmo “Apoucalhado”, isto é, o Assobio não é diminuído ou apoucado das normais qualidades psíquicas, que cada um de nós exibe e arrasta, por vezes, florindo em meio propício, outras definhando em meio hostil, de uma qualquer inóspita Serra da Gardunha. O Assobio, “pobre de espírito” que é, não reflecte, porém, um “apoucalhamento” consequência ou reflexo de um qualquer desejo maligno e perverso de vontade humana em apoucar os pobres de espírito, ou semelhantes, mas antes constitui exuberante afirmação do “estado da natureza”, que lhe moldou a personalidade e o carácter, dignos, aliás, em sua íntima fusão, natureza e “personalidade apoucada” de sábios estudos e doutas opiniões antropológicas. Dir-se-ia, assim, para não ferir a erudição sensível dos gramáticos mais atentos ou, mais grave ainda, para não ferir as susceptibilidades de Maria Adelaide que o “Assobio” é um “pobre de espírito”, o que só o engradece, pois que a humanidade está repleta de “pobres de espírito” e, não raras vezes, na história, a sua sorte, dela humanidade, esteve dependente do capricho de um qualquer “apoucalhado”, perdão, de um qualquer “pobre de espírito”. Aliás, como bem se sabe, na antiguidade os apoucalhados eram seres de eleição e, por eles, os deuses enviavam recados aos restantes e ajuizados mortais, a anunciar desgraças ou a vinda de dias faustos, como também a Bíblia reserva, aos “apoucalhados” especialíssimo lugar no Além, pois que “bem-aventurados são os pobres de espírito, que deles é o reino dos Céus!...”

“E se bem reparares, Maria Adelaide, a tua própria sina é marcada indelevelmente pela constância dos “Apoucalhados”. Não carregues a contrariedade, minha querida, pois é mesmo como te falo, bem como esta narrativa, que outra coisa não pretende ser senão o embotado reflexo do espelho em frente do qual nos desnudamos teria justificação ou sentido, nem, porventura, haveria narrativa, pois que, nela, a tua existência não seria sem um "apoucalhado" a intervir no âmago de tua vida. Bastaria, para tanto, que, algures perdido num lugar distante, não nos inóspitos cumes da Gardunha, mas noutro local mais interior ainda, onde o santo padre Manuel, tio de Lia, a sereníssima e imperial Lia da minha infância, já roído da “ferida ruim” que o haveria de levar, não tivesse ungido, com o nome João, na antiquíssima e românica pia baptismal da Igreja Matriz, um robusto infante, filho do Zé Manhas, jogador da batota e cantador de fado, sem nada de seu que não fosse sua desempenada figura e a poderosa “lábia”, casado com a senhora tua sogra, donde saíra o rebento, que teimou, a exemplo do pai, na ganância de que “haveria de casar rico” e que a ti, Maria Adelaide saiu na rifa, para descanso de teu extremoso Pai e o amaciamento de tuas “verduras” contestatárias, como jovem universitária, que fostes.

Ora todo o enredo da tua vida, todos os nós de acaso, apenas ganham sentido porque um “apoucalhado” lhes dá coerência e sentido, pois se ele não fora, se “pobre de espírito” não fosse, nunca, por todos os “nunca” possíveis, o Zé Manhas, jogador de batota e cantador de fado, por afinada que fosse sua “lábia”, jamais levaria ao altar a mãe do João e tua futura sogra e com ela o robusto património dos três irmãos órfãos, pois que, se “apoucalhado” não fosse o irmão do meio, de sexo masculino, seria dele naturalmente, pela sua condição de homem a administração da próspera casa de lavoira e não da irmã mais velha, valente senhora, mas mulher, e então o “vivaço” senhor teu sogro, conhecido pelo Zé Manhas, se ao assédio sentimental se atrevesse, levaria uma exemplar corrida de pau, face ao atrevimento de ousar órfã, sua irmã, rica e prendada, fora do alcance e dos sonhos de um qualquer “pilha galinhas”, perdão, pilha donzelas, e tal inadmissível casamento não seria realizado e, portanto, não teria sido e, então não existiriam, nem sogro, nem João, teu marido, meu amigo de infância, nem certamente aproximação entre nós, nem as tuas pernas descuidadas teriam oportunidade de se sentarem no tampo da minha secretária, para deslumbre e prazer meu, nem haveria a gloriosa Monica Vitti, nem Antonioni, nem o “Eclipse” no cinema Quarteto, nem beijo ardente, nem nossos corpos, nem febre do desejo e nossas vidas outras seriam e outros os fragmentos, se fragmentos houvessem, em vocação de literatura.

Por isso, Maria Adelaide, não julguemos os “apoucalhados”, nem queiramos a barca que levarão suas almas, nem menosprezemos os seus poderes (ocultos), que muito bem podem, sem nos darmos conta, determinar o destino do Mundo, quiçá do Universo. E se, outro mérito não tiverem, servirão, ao menos, os “apoucalhados” para testemunhar a fragilidade dos “acasos”, em que nossas vidas de despenham.

Aliás, Maria Adelaide, o próprio “Assobio”, o “apoucalhado” ou “pobre de espírito”, que chegou à recruta militar, com três dias de atraso, como encomenda extraviada e de que temos vindo a falar, pois dele decorre o emaranhado fio que mantém à tona a narrativa, que, aliás, no tempo e no modo, lhe é absolutamente estranha e que apenas o “corpo mítico” da escrita lhe permite o (in)sustentável peso para nela figurar, irá ter, como adiante se saberá, decisivo lance na evolução deste enredo, abrindo o palco à crepitosa “Papa Alferes” e sua zelosa tia, que teimam em assomar ao proscénio, como que fazendo-te pirraça e a atrasar a tua performance. 

Mas, por enquanto, não. Desvendemos primeiro o “mistério” do nome do “Assobio". 

Breve, breve!...


13 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Foi o mais curto parágrafo encontrado
e talvez o mais significativo:

«E se, outro mérito não tiverem, servirão, ao menos, os “apoucalhados” para testemunhar a fragilidade dos “acasos”, em que nossas vidas de despenham.»

Graça Pires disse...

Cá está de novo a Maria Adelaide. Ela bem sabe que é como dizes: "esta narrativa, [que] outra coisa não pretende ser senão o embotado reflexo do espelho em frente do qual nos desnudamos" No final ela sabe tudo o que é preciso saber...
Um beijo, meu Amigo.

Agostinho disse...

Complexa a demonstração genealógica para M.ª Adelaide impressonar.
O que eu digo é que é uma história de assobio!
Venha novo capítulo.

Abraço

Laura Santos disse...

Os "pobres de espírito" são geralmente aqueles para os quais a vida nada programou, e vivem desses acasos do destino, aproveitando de certa forma o que lhes pode cair nas mãos.
Belo sermão! :-)
xx

Mar Arável disse...

Que vivam os apoucalhados

Abraço amigo

C Valente disse...

saudações amigas

Lídia Borges disse...


Gosto disto. Do discurso, da ironia na recorrência do "apoucalhados" e do "pobres de espírito" que não o serão...

E...Começo a "implicar" com a Maria Adelaide!...

"Por isso, Maria Adelaide, não julguemos os “apoucalhados”, nem queiramos a barca que levarão suas almas, nem menosprezemos os seus poderes (ocultos), que muito bem podem, sem nos darmos conta, determinar o destino do Mundo, quiçá do Universo. E se, outro mérito não tiverem, servirão, ao menos, os “apoucalhados” para testemunhar a fragilidade dos “acasos”, em que nossas vidas de despenham."

Um beijo
Lídia

Marta Vinhais disse...

Na verdade, os verdadeiros "pobres de espírito" são quem tanto critica os outros para esconder o seu próprio reflexo no espelho...
Um discurso interessante...
Obrigada pela visita
Beijos e abraços
Marta

Suzete Brainer disse...

Eu desconfio, pressinto que este
sermão do autor que se diz não autor,
nem a Maria Adelaide, a voz da crítica
no espelho dessa viagem, faria um
sermão tão contundente!...

Aguardo mais com a certeza da viagem
na arte literária deste autor que se
diz não autor!
Porém, sabemos que o bom autor é
aquele que abdica de sê-lo.

beijo.

Jaime Portela disse...

Estou curioso com a história do assobia, mas a Maria Adelaide não o estará menos...
Excelente narrativa. Aqui e ali a fazer-me lembrar Saramago.
Caro amigo, bom feriado e bom resto de semana.
Um abraço.

AC disse...

Gosto da tua forma de escrever, sempre gostei. É pura literatura.
(A Serra da Gardunha, que me é muito cara, mudou, felizmente, de figurino. Já não é fermento de "apoucalhados", e para isso muito contribuiu Abril. Nos tempos que decorrem, apesar do seminarista coelho, caminhos e trilhos são percorridos por caminhantes e ciclistas, desfrutando de inspiradoras paisagens. Para além disso - ficou para o topo - é na Gardunha que se produzem as melhores cerejas deste ocidental rectângulo europeu).
Redigo, com toda a convicção: aqui forja-se literatura, da boa!

Forte abraço

Manuel Veiga disse...

Meu caro AC,

tenho enorme respeito pela Gardunha e pelas suas gentes. "O apoucalhado" bem poderia ter saído da Cabreira ou de Montezinho ou das planícies alentejanas...

a conversa é como as cerejas, não é verdade? sou grande apreciador das cerejas.. rss

grato pelas tuas palavras, que me resposabilizam muito, pois provêm de ti, que cultivas uma escrita original e muito sedutora.

forte abraço, meu amigo.

jrd disse...

Se não existissem apoucalhados o que seria dos outros?
Continuando a leitura.
Abraço fraterno.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...