domingo, dezembro 20, 2015

FRAGMENTOS XV - A conversão política de Maria Adelaide...


Vem agora, Maria Adelaide, mergulhemos neste perfume evanescente de uma solarenga tarde de Outono, deixemos que o rio passe e os ramos do salgueiro suspirem suas mágoas, entrelacemos os dedos como se Lydia foras e eu Caeiro e o calor das mãos que abandono em teu regaço nos baste como refrigério e ignoremos por momentos, ou horas, ou para sempre o Aspirante, aprendiz de Oficial de Cavalaria e fazedor de versos em segredo, o Assobio em seu doloroso percurso de “encomenda extraviada” a recruta, carne para canhão de uma castradora guerra sem fim vista, o grupinho de “reguilas” alfacinhas, com seu líder, o “Bonanza”, tipógrafo da Imprensa Nacional, ali à Rua da Escola Politécnica e, que um dia, Maria Adelaide, num tempo outro, já refeitas as mazelas da guerra, e abertas outras, ainda hoje por sarar, se é que vão sarar um dia, pois nesse tempo outro, o “Bonanza” nos causou o incómodo embaraço de confundir-te com minha Mulher, tu de óculos escuros disfarçando o choro e a mágoa e a marca negra no rosto, que os cremes mal encobriam, nesse dia te convenci que não podias admitir, que era forçoso o teu divórcio.

Esqueçamos, porém, por agora, esse dia e o João, teu marido e meu espúrio companheiro da adolescência e as personagens que por aqui se arrastam, sejam o “Bonanza” ou o “Assobio”, ou a “Papa Alferes” que espreita, ou a longínqua Lia, a gloriosa Lia, companheira das minhas brincadeiras de infância, ou o santo Padre Manuel e seu rebanho, roído pela “ferida ruim” na garganta, que o haveria de levar, não ao rebanho, que esse o levou o Demo pelos caminhos da emigração clandestina, mas a ele Padre, servo de Deus e seu ministro na Terra, a quem a ferida ruim levou garantidamente para o Céu, ou Tabanca com o “Camenino” e outros filhos da puta, com quem, por vezes, se tropeça no caminho, mas que para aqui não são chamados, ou Dona Rosalinda, em quem, Maria Adelaide, já todos percebemos, procuras, como numa imagem replicada, o “mistério” da tua vinda ao mundo, ou o senhor Gomes, que por aqui há-de passar, condenado não às galés, mas com a pena de degredo para a inóspita Guiné, ou o alferes Valentim, amigo de todas a horas, gravado no peito e que “jamais será possível, acender o meu no seu cigarro”, ou a “panache” do capitão Mascarenhas, comandante da Companhia e vagas pretensões a cavaleiro tauromáquico, ou o valente médico “Cartuchadas”, ou o coronel “Cuequinha”, comandante de Batalhão, de galões até ao sovaco e “borradinho” até aos tornozelos, todos eles se hão-de encontrar a final, em apoteose dantesca, cada um em sua barca, pó, cinza e nada, quando o veio que percorre estas linhas se extinguir e a narrativa implodir qual castelo de cartas mal-ajeitado e o autor (se autor houvesse) arder na fogueira, amarrado ao pelourinho, por entre os esgares e os impropérios do povoléu, ávido, não de sangue, mas de “sexo, mentiras e vídeo”, a escorrer na pantalha.

Mas, por enquanto, não, Maria Adelaide. Espraiemo-nos, hoje ainda, nesta onda que nos embala e nos mantém à tona e, sem cuidados, naveguemos por entre a espuma de nossos dias e os escolhos de nossos de (des)encontros e a caruma que alimenta o fogo, quase cinza, colhendo amoras tardias, sorvendo até ao âmago as limalhas que ainda queimam.

“Não te esqueças de votar no Domingo...” – soltas, inesperada, do outro lado do telefone, na tua voz aveludada, entre o sobressalto da emoção e o riso irónico.

- “Ah, és tu, Maria Adelaide! Não esquecerei. Celebraremos, de novo, juntos “a minha derrota?”... – Sorrio, com mal disfarçada ternura, bem sabendo eu o que ditava a tua preocupação cívica.

(Era assim, noutros tempos. Antes de tu, Maria Adelaide, em lucidez determinada, teres colocado ponto final na nossa relação sentimental. Marido e amante eram as duas faces da mesma moeda. A tua emancipação pressupunha a “morte” dos dois. Mas antes disso, quando tu saltavas de margem para margem, quando o João, teu marido, se afadigava em ambições políticas e, eu próprio, em campo oposto, me expunha na luta política, balançavas entre o dever e o voto do coração. E, prodigiosa, inventaste a fórmula exacta: “celebrar a minha derrota”!.. O meu campo, ainda que ganhasse, nunca ganharia!... A minha vitória seria a celebração contigo. E o João ganharia, claro, perdendo-te...

E celebrávamos, então. Retiravas da garrafeira o champanhe, acolhias-me, fremente, no apartamento da praia, em ritual de transgressão. Palpitava o desejo no brilho do olhar, no teu riso nervoso e, como gazela ferida, expunhas o gozo de beber comigo o champanhe de teu marido. Impúdica e excessiva, sempre! Como se a entrega do corpo fosse catarse da alma. Em ultraje às convenções.

O João, teu marido, não te merecia, bem cedo o compreendeste. Afinal, filho de quem era e com a promessa assumida, desde a juventude de que “haveria de casar rico” de ti se aproximou avaliando o dote, quer dizer, os “sinais exteriores de riqueza”, que tu, Maria Adelaide, ostensivamente, exibias, no decurso da tua vida académica, na Faculdade de Letras, com apartamento nas “avenidas novas”, automóvel à porta e chofer fardado. E nunca lhe perdoaste o logro. Sobretudo, quando, com a independência de Angola, a tua família regressou, ainda bem abonada, mas com o fundamental da fortuna, em café e imobiliário, perdidos no turbilhão da guerra civil e a independência da colónia. A partir daí, o João passou a ser “outro”, me confessavas, calando num sorriso amargo a mágoa e a raiva. E disso te vingavas no meu corpo.

E, quando, num momento irreflectido de maior tensão, lhe atiraste, numa estocada de ferir fundo, que, tu e eu, eramos amantes, o João, teu marido e meu “velho” compincha de férias na adolescência, passou da violência psicológica à agressão física. E garantia não te dar o divórcio, pois que nenhum “comuna lhe roubaria a mulher”, bem sabendo nós que a bombástica proclamação não passava de arruaça, com que pretendia camuflar o propósito de continuar na administração de teus bens. A situação era, porém, insustentável. Não podias admitir. Não podíamos consentir. O teu divórcio era inevitável e a melhor protecção para ti e o teu filho, que te amarrava ao casamento).

Despertei das minhas evocações, com a tua gargalhada:

- “Não, o champanhe esgotou! E o Pedro navega nas tuas águas. A tua derrota é a sua derrota”...

(Vi sinceridade na tua expressão de voz! Terias acertado, finalmente?! Depois do divórcio, duas ou três experiências de que saíste magoada! E isso doía-me. Agora o Pedro. Tremo por ti, Maria Adelaide. Oxalá...)

- “Então o Pedro não pode ser mau rapaz!”- gracejei.

(Surpreendendo-me, com a minha sinceridade):

- “Sou feliz com a tua felicidade, bem sabes!” – E, em íntimo temor:
-“E este te telefonema, Maria Adelaide!... Será que não “precisas” de falar comigo?” - Acrescentei, acentuando as sílabas.

(Que não!... Que está tudo bem. Que gostas de dar aulas e que o Pedro é carinhoso. E o teu filho gosta dele. São dois compinchas...)

Senti a tua voz embargada: -“Um dia destes falamos!” - Murmuraste, bem sabendo, tu e eu que “um dia destes” não tem prazo, nem horizonte...

-“Claro, Maria Adelaide, claro que falaremos. Sempre... Até lá, procuremos comemorar as nossas “vitórias” – acrescentei, em amarga ironia.

(Ficamos assim em silêncio. Minutos, de séculos. Depois, ambos recompostos, falamos de tudo e de nada. Dos amigos comuns. Das velhas e novas amizades. Do quotidiano. Inquiriste. Disse o que devia...)

Do outro lado, o veludo da tua voz. Excitada. Quente. Acolhedora:

-“Tenho que ir. Cuida-te...” - e, num assomo de provocação, que tanto cultivavas: -“Fica sabendo que, desta vez, vou votar no “teu” Partido. O Pedro merece...”

Despedes-te com uma gargalhada...

(Que posso dizer-te, Maria Adelaide? Que és sempre bem-vinda!...)



7 comentários:

Graça Pires disse...

Pois é, Maria Adelaide. Já tinha percebido que eras dada a "rituais de transgressão"... Mas é melhor escutares o teu velho amigo, apesar do muito que diz... Ele está do teu lado para não te deixar mudar a identidade dos teus sonhos...

Excelente, meu Amigo. Um beijo, meu, não da Maria Adelaide.

Manuel Veiga disse...

Graça, minha querida Amiga,

mas a Maria Adelaide é mera literatura! que graça teria um beijo dela? o teu beijo, sim. aprecio muito.

beijo meu.

Maria Eu disse...

Uma história de (des)amor muito bem contada.

Beijos, caro herético, e Festas Felizes. :)

Laura Santos disse...

Mal de quem não transgrida, quando a situação é de desajuste. Adelaide dividida entre um marido e um amante; trair o marido ainda vá que não vá, agora beber-lhe o champanhe...:-)
Um texto denso, que incorpora referências a violência doméstica, emigração, conjuntura política, e uma bem "metida" alusão ao poema "Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio" de A. Caeiro.
Feliz Natal.
xx

Mar Arável disse...

Avesso às tropas nunca discerni nos ombros de uma farda a hierarquia das divisas
mas em estação natalícia é delicioso adivinhar o apetite da dona Adelaide pela política.
Mais tarde ou mais cedo vai assobiar na parada
animada pelas tuas palavras

Abraço amigo poeta

lino disse...

Boas Festas!
Abraço

Suzete Brainer disse...

O autor que não se diz que é autor surpreendeu,
o uso gramatical na primeira pessoa
continua fazendo rebulício...rss
Surpreendente o leque aberto dos personagens todos
desta viagem (romance), gostei da pista sobre o
aspirante a oficial (Alferes?) no gosto da boa
poesia (Manuel Bandeira,Alberto Caeiro) e nessa citação
do poema do Alberto Caeiro o roteiro ambiental e
emocional do desfecho do fim do romance da Maria Adelaide
e Manuel (personagem) e o aprofundamento deste triângulo amoroso...
Toda triangulação tem uma fragilidade constante
da impossibilidade de ser dois.
Pois, bem. Vamos a personagem Maria Adelaide tão julgada,
hilário, por mulheres que a percebem como um comportamento
"transgressor" reprovável entre dois tão "inocentes e bons"
homens.Novamente o autor que não se diz autor revela
a transparência do sentir da Maria Adelaide de saber
que o marido e o amante eram duas faces da mesma moeda.
Quando a ruptura, ela encontra um "homem de verdade" em
que ela vive a fidelidade e curioso que os dois homens
tão "inocentes e bons" queriam continuar cada um
no seu posto neste triangulo. As mulheres são mais fiéis
(decorrente de sempre o afeto junto com o desejo) e os
homens, talvez, menos. Acredito na singularidade e nas
razões profundas de cada um.
Lamento a minha análise extensa, é o meu olhar na prática
profissional de Psicóloga que não julga pelas aparências...rss
Sempre um prazer ler-te, Grande Escritor!
beijo.

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