terça-feira, fevereiro 09, 2016

FRAGMENTOS XIII - Um Diálogo Com Maria Adelaide...


Que patético, meu amigo!... Porventura te darás conta, Manuel, que a tua escrita, com a tua tendência em extremar sentimentos, mais que estimular, pode simplesmente provocar tédio! Nessa dicotomia de pensamento em que, por formação e devoção, estás instalado, limitaste a ver a vida conforme o padrão de luz e sombra, como se a vida vivida, assentassem sempre na tensão, que te comprazes em designar como “tensão dialéctica”, sem te dares conta dos matizes em que a vida se resolve e da relatividade de cada uma das nossas emoções e sentimentos, ou mesmo dos factos e acontecimentos que, em sua permanência, tendemos a considerar como absolutos.

Eu sei, eu sei... Tens dificuldade em aceitar a “décalage”! Os valores “absolutos”, as verdades tidas como “indiscutíveis” colapsaram e tu, meu querido Manuel, ainda não sei bem se por “cegueira”, se por acirrada teimosia de “moicano”, que não aceita o desmoronar do mundo à sua volta, projectas agora na literatura a expressão da vida que te fintou.

Mas, (admitindo que alguém, além de mim, irá ler-te) que ganhas com isso? Nada podes meu amigo contra a rasoira compressora que estabelece os caminhos por onde caminhamos!

Eu explico-me melhor e devolvo-te a pergunta, tão acintosamente formulada, que não fora eu conhecer bem o teu gosto pela “provocação”, me ofenderia seriamente, ao questionares a crueldade da “nódoa negra” no meu rosto, nódoa essa, bem real e bem concreta, e o sofrimento que meu divórcio me trouxe, face a brutalidade (meramente ficção literária, só pode) da guerra colonial em que te remóis, escrevendo.

E, então, a pergunta é esta: Que dizer da tua perplexidade indignada e da genuína dor do teu inseparável “Bonanza”, face à fatalidade da morte a sangue frio de uma criança de meses, em teatro de guerra, quando hoje estamos empanturrados de morte, aqui às portas da tua amável e civilizada Europa e quando o brilho das suas capitais se enegrece nas pulsões do medo e na abjuração dos princípios de liberdade e democracia, que lhe moldaram o rosto? Que dizer das dezenas, se não centenas de crianças, que flutuam mortas nas águas do Mediterrâneo, ali à nossa porta, algumas tão tenras como a tua criança, na savana de África, com o crânio esfacelado por de um “tiro de misericórdia”.

Quem se interessa por um “episódio de guerra” quando em tempo de paz, a violência espirra sangue e dor, na pantalha das televisões, num Espectáculo alucinado, que nos aprisiona. E que vamos, de uma maneira ou outra, aguentando sem fazer tragédias e vivendo a vida, nos seus cambiantes, afastando a monotonia do “preto e branco” em que tanto te comprazes

Se desejas tanto escrever, motivos não faltam, aqui e agora. Porque desenterrar traumas antigos e fissuras que ainda hoje atravessam a sociedade portuguesa. “O que passou é passado”, proclamavas, tempos atrás, tentado arrastar-me das minhas recaídas!

Por isso estranho, estranho-te... 

Muito bem, Maria Adelaide. Há muito tempo que assim não vinhas, grave e solícita, bafejando-me com a lucidez da tuas opiniões e fazendo vacilar minhas certezas, elas próprias tão frágeis e aptas a voarem ao primeiro confronto com a realidade. Fizeste uma bem-sucedida prova de vida!

Mas atenção, Maria Adelaide, o único critério de verdade é a nossa “autenticidade”, a tua e a minha, e o nosso corpo a corpo com a vida e não os clichés que, no mercado das opiniões, fazem passar gato por lebre. Que é isso de “décalage”, de “valores absolutas”, “verdades indiscutíveis”, “teimosia de moicano” (onde raio já ouvi isto?), ou “monotonia a preto e branco” e outros brilhantes epítetos com que me mimoseias, numa implícita crítica às minha inabaláveis convicções políticas? Isso é que eu estranho...

Não quero ofender-te, nem levemente que seja, mas não resisto à provocaçãozita, porventura de mau gosto, que me dança nos lábios: quer parecer-me que o Pedro, teu actual marido, que segundo dizes “navega nas minhas águas”, anda um pouco distraído na tua “educação sentimental”. Será que ainda faz milagres? Não precisas de responder. Eu saberei um dia destes...

Não quero, entretanto, passar em claro sobre as incómodas questões com que me confrontas e na aproximação que lucidamente fazes, ao devir da nossa actualidade e à violência que nos submerge.

Estamos, de facto, empanturrados de morte. E empanturrados de miséria e de fome. E também de consumo. E empanturrados de “efémero”. E da volatilidade dos acontecimentos que a si próprios se devoram, sem tempo para deles nos apossarmos, fugidios e “neutros” que são. E empanturrados também “da contemplação passiva das imagens” que substituem o “vivido” e o “poder de autodeterminação dos próprios indivíduos”, como alguns autores (heréticos) não se cansam de nos alertar...

Ora, minha querida amiga, ambos sabemos que, até em meus exageros e excessos, eu sou um tipo frugal e que os “empanturramentos” de todo o tipo me causam azia. Talvez, sim, talvez a minha fuga para o passado, que tanto te incomoda ou escandaliza, tenha por fundamento esse “trauma” ao empanturramento, quer dizer, talvez eu procure uma nesga, um estreito lugar, uma ligeira brisa no rosto, que nos salve desta lassidão que, como vírus, nos corrompem e mata, julgando nós “viver”. 

E, então, que a indignação seja algo mais que suspiro do sofá e a revolta seja propósito de acção colectiva.

Mas quem, face à violência em massa dos dias de hoje, se ergue, qual “Bonanza”, não digo para esganar, mas, ao menos, para interpelar o capitão?

A narrativa está a ficar coisa séria e seguir caminhos inesperados Teremos que aliviar o tom, Maria Adelaide senão ainda corremos o risco de ficarmos a falar sozinhos, não?

Entretanto, a anunciada “Papa Alferes” bate o pé de impaciência. Façamos-lhe a vontade e que suba ao palco. Porventura, nestes tempos de cenas espectaculares e comunicação “on line”, a ilustre menina seja uma metáfora antecipada dos dias de hoje.


13 comentários:

Gisa disse...

Diálogos internos necessários. Penso nas ponderações. Um bj querido amigo

Palavras soltas disse...

Maravilha, Manuel! Li de um folego só. Maria Adelaide é abusada e não deixa passar nada, mas vc respondeu a altura.

Beijinho.

MS disse...

Um texto dramático, apesar da tentativa de aligeiramento. O apontar o dedo à (des)humanidade. Sempre no teu tom de intervenção.

Sim, chocam-me as crianças afogadas, o olhar perdido, assustado, mas que os pais tentam 'salvar' de um outro mundo de pesadelo.

Mas, por cá, grita-me a alma, pelas crianças 'sacrificadas' vivas às mãos de um pai ou mãe. Maior desumanidade, não há.

Beijo,

Mar Arável disse...

A dona Maria Adelaide parece-me uma santa.
Inventaste-a para te amar no contraditório e a senhora cumpre
a tua vontade
Quer limpar-te a memória - mas eu sei - que não vais deixar.

Abraço sempre

Helena disse...

Um diálogo de titãs enfatizando uma voz que nunca irá se calar... Genial!
Sorrisos e estrelas em mais um dia a findar...

Suzete Brainer disse...

A tua narrativa sempre excelente, Amigo Querido!...
Tu entende tudo desta viagem literária, quando o uso da primeira
pessoa e ainda o personagem com o teu nome, quebra para o leitor
as barreiras entre o escritor e o leitor, respaldando o teu
conceito de que não existe o escritor. Nesta aproximação, a ficção
entra na voz da realidade narrativa como um diário de bordo de uma
viagem nas páginas (entranhas) da (tua) memória rica de escritor!...
Uma química explosiva da "presunçosa" Maria Adelaide e o
provocante Manuel. A insensibilidade e egoica Maria Adelaida em
relação a bela humanidade e valores políticos e sociais do Manuel.
"E, então, que a indignação seja algo mais que suspiro do sofá e
a revolta seja propósito de acção colectiva."
Compreendo muito bem este sentir do Manuel (personagem) e somo
a minha voz a dele no eco que tire a humanidade desta alienação!...
Amo ler e acompanhar a jornada desta história inscrita em
obra de arte literária, Manuel!
beijo.

Cristina Sousa disse...

Por vezes estes diálogos são necessários... gostei!!

Um beijo

Suzete Brainer disse...

Manuel (amigo querido!),

Permita-me fazer um esclarecimento no teu espaço,
já que aqui, agora, fiz este comentário longo e
analítico do seu texto e faço assim, em poucos
espaços e quando o texto me seduz a esse ponto
de explicitação e prolixidade.
Sem nenhuma intenção presunçosa de caráter
exibicionista de aparecer a "entendida de
literatura"...rss
apesar de não ligar para qualquer falso
julgamento que alguém possa ou faça
de mim!...rss
Tu sabes, amigo, que isto é apenas um olhar
de uma pessoa com o hábito (vício) da
leitura desde sempre e nada mais do que isso!...rss

Manuel Veiga disse...

Suzete Brainer, minha boa amiga,

agradeço sinceramente a gentileza do seu interesse pelos meus textos e as suas sempre oportunas e fundamentadas considerações, que muito me lisonjeiam, sobretudo, porque ditadas pelo seu amor literatura e pela análise literária - assim as considero - "vício" que modestamente também perfilho.

seja, pois, bem vinda. sempre.

beijo, grato

Genny Xavier disse...

Maria Adelaide, a personagem nascida do teu alter ego, poeta? As avessas, talvez, mas fico eu por aqui a sentir isso... O eco revez da tua alma na contrapartida da tua escrita, dos teus ideais e da forma como vives e como sentes as coisas do mundo... Criador e criatura, díspares e complementares...
Amei ler.

Beijo.
Genny

Jaime Portela disse...

A "carta" da Maria Adelaide e a resposta respectiva são deliciosas.
Excelente, meu amigo.
Bom fim de semana, Caro Veiga.
Um abraço.

AC disse...

A criação dum contexto que se socorre dos mais delicados materiais...
A sua mente fervilha, meu amigo. Parabéns!

Um abraço

Agostinho disse...

O duelo forjado pelo autor, ele próprio interveniente, dá relevo aos problemas da violência e injustiça que fustigam gerações sucessivas. Se nos dias de hoje a mediatizacão empola e comunica à velocidade da luz as "misérias" da humanidade, no passado elas não eram inócuas. Mas é o autor que na sua excelente narrativa desenrola o fio à meada.
E há a "Papa Alferes" que se anuncia ser personagem apetecivel. A temperatura lá para os lados de Castelo Branco irá subir.

Parabéns.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

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