sábado, julho 16, 2016

PROVA DE VIDA


Dizem-me que o teixo, árvore em vias de extinção (disse “árvore”, que de aves falaremos, se for o caso) acompanha as dores da humanidade desde tempos bíblicos. Garantem-me até (livros heréticos) que esta espécie arbórea foi o único de todos os seres criados que escapou às bem-aventuranças do Éden e que surgiu independente do sopro criador divino. Claro que a circunstância arredia de nascer fora dos cânones, determinou consequências funestas – o teixo não dá flor, nem fruto. Em compensação, as folhas são perenes e venenosas. E a madeira resistente e docilmente maleável.
 
De alguma forma pode dizer-se, que a maldição do teixo é o segredo da sua longevidade. O teixo reproduz-se nas suas raízes profundas que rebentam em caule e folhas à medida que a árvore mãe, centenas ou milhares de anos depois, se extingue.
 
Porque morre então o teixo? Conhecer o seu “mistério” é conhecer a sua história. Quando há milhares de anos, os orgulhosos predadores não passavam de humanóides assustadiços, o teixo era uma árvore sagrada. O veneno das folhas anestesiava os animais herbívoros, assim os transformando em presas fáceis. E a dócil e resistente madeira cedo evoluiu para zagaias e setas e outros utensílios e armas. Quem poderá garantir que o fogo não surgiu, à face da terra, na fricção da dureza do teixo?
 
A maldição da árvore aconteceu, apenas, largos séculos mais tarde, quando homúnculo tímido ousou a pastorícia e a agricultura. As apetitosas folhas dizimavam o gado e o teixo, por acção do “homo economicus”, foi então o remetido para os pináculos das serras, onde menos danos poderia causar na agricultura emergente e na pastorícia.
 
Na Idade Média, o teixo teve seus momentos de glória. As grandes pelejas militares, tantas vezes vencidas por acção de exércitos de archeiros, foram tributárias da elasticidade, resistência e da leveza do arco e da flecha, que a madeira do teixo permitia. Mas também as folhas, sobre as quais recaiu o interesse de ervanários e curandeiros, que, no seu veneno, descobriram mezinhas param muitos males, designadamente, para carecas e males de amores.
 
Aliás, algumas feiticeiras, foram zurzidas na praça pública, (ou mesmo queimadas) por má avaliação das doenças, ou por confundirem nome dos pacientes e, assim, se baralharem na dose do filtro adequada.
 
Perdida, passo a passo, na idade moderna, qualquer utilidade económica, a tendência da milenar árvore é, pois, de auto extinguir-se. Por quê sobreviver se já nem sequer bordão de romeiro? Nem, muito menos, como  varapau de varrer feira” (ou procissão). Hoje em dia as grandes bordoadas são apenas virtuais.
 
Quiseram os fados que eu fosse dono de um teixo. Nos cumes da minha serra adoptiva, onde, por vezes, o poeta “se derrama no horizonte que cega”.
 
Como se compreende trato com todo o esmero a minha árvore. Ainda agora, nestes dias de pastoreio de um tempo sem horas, a visitei em devoção e me senti compelido a vedar, com grade de ferro (como se Memorial fora) as duas graníticas rochas de arredondadas e simétricas formas, no meio das quais se ergue o corpo macerado de meu teixo, hirto e firme, ostentando, orgulhoso, tenros rebentos, como quem diz “venha o mais pimpão, que comigo se meça!...”
 
Não direi que o meu teixo seja um rei, pairando, lá do alto, sobre a paisagem. Em qualquer caso, não deixa de ter a dignidade de uma estátua do Cutileiro a dominar o Parque Eduardo VII, em Lisboa, que causa invejas por esse mundo fora.
 
Assim, decidi proteger meu teixo. Não por temer pela sua vida, mas por recear que alguma cabra atrevida lhe cobice o viço, lhe prove o veneno e venha, depois, de tamancos, um qualquer ocasional dono a pedir-me contas pelas dores da cabrinha.
 
Ou, então, que algum “vallet de chambre”, mais castiço e zeloso dos caprichos de sua dama, venha cobiçar as vergônteas do meu teixo para mutuamente se fustigarem (intelectualmente está bem de ver), enquanto, generosos, rogam pela paz eterna da minha alma perdida – ainda viva! ....

Ainda se, ao menos, fossem meus herdeiros!


 

14 comentários:

Tais Luso de Carvalho disse...

rss, que bom que abriu os comentários, pensei que fosse coisa no blogger ou nas minhas configurações.

Gostei de conhecer sobre essa árvore, rica história. Lembro que há anos atrás era usado aqui, o curare, uma droga paralisante usada em pequenas doses para relaxamento muscular, derivada de vários alcaloides principalmente da curarina e da tubocurarina, da floresta amazônica. Mas enormemente venenosa - como li sobre o teixo. Usavam em cirurgias. Houve um caso na minha família em que deram curare ao paciente e como paralisa todos os músculos, os médicos não notaram o término do curare e o paciente sentiu todas as suturas. Terrível. Por sorte não faleceu.
Boas férias!
Bjs, amigo Manuel!

luisa disse...

Se há maldição para o teixo, que tal não se aplique às férias que se desejam calmas e revigorantes. :)

AC disse...

Ao ler o teu texto lembrei-me, de imediato, do Teixoso (Covilhã). Apesar das muitas almas que o habitam, não estarão, com todo a certeza, tão bem protegidas como o teu teixo.

Abraço

Jorge Castro (OrCa) disse...

E assim, como em tudo, fica provado que ele há teixos e teixos. Há os desconsiderados, na margem de algum carreiro duvidoso, íngreme, por onde só cabras e bodes passam - como em alguns becos esconsos citadinos - e ele há o teixo do Herético! Árvore assim acarinhada, erguida em grito aos céus - por tal viceja! - e protegida de danos provocados por avulsos e intrometidos olhares de inveja. Abençoados. Ele e o seu «dono», ambos assim enraizados na terra-mãe que mais interessa.

Majo Dutra disse...

Li com a maior curiosidade a história do teixo,
Adoro árvores e sei como te deves sentir orgulhoso do teu exemplar
que te faz companhia, nos passeios ao cume que devem ser magníficos.
A ironia foi adensando-se e acabou por se tornar hilariante com a
alusão ao monumento do Cutileiro, contribuíndo para eu começar o meu
dia da melhor maneira.
Os revolucionários deste mundo ainda não descobriram o talento tão
especial do mestre para eternizar a comemoração de golpes de estado...
~~~ Beijo ~~~

Graça Pires disse...

Aproveito para lhe desejar umas férias maravilhosas. Gostei de saber que cuida de um teixo... Entendo o seu interesse por essa árvore que tem tanto de venenosa como de sobrevivente. Geralmente as árvores são discretas, mas essa não passará despercebida com certeza...
Um beijo, meu Amigo.

Mar Arável disse...

A vida e a morte propagam-se por estaca
Excelente texto
No nosso próximo encontro aguardo uma semente
talvez medre na margem esquerda do nosso Tejo
ou na Arrábida do nosso Sado

Abraço sempre

Manuel Veiga disse...

meu caro MarArável,

o teu entusiasmo levou-te a uma pequena imprecisão - o teixo não pega por estaca. apenas pela raiz, mesmo.

compreendo a tua boa intenção, mas não há maneira de transplantar o teixo.

agradeço, a amabilidade e amizade de teres interrompido as férias para saudar (salvo seja) o meu teixo.

assim fora todo o mundo e silêncio regressaria à montanha, para felicidade da vetusta árvore, pouco conforme com a exposição mediática.

abraço, meu caro. sempre.

Mar Arável disse...

O teixo reproduz-se por semente e por estaca
Abraço

Manuel Veiga disse...


tu és o maior!
se garantes que pega, lá terás a estaca! rss

abraço

Pedro Luso de Carvalho disse...

Caro Manoel,
Você sai de férias, mas antes deixa este texto tão interessante. Então, agora é curtir as merecidas férias. Ficamos aqui, no nosso inverno, esperando a volta do amigo. Aproveite as férias.
Grande abraço.

Fê blue bird disse...

Fui pesquisar (pois desconhecia) tão misteriosa árvore e acho que não sigo o teu conselho, não vá o diabo tecê-las :)


"PERIGO: Todas as partes da planta são altamente venenosas, excepto o arilo carnudo (fruto de cor vermelha ou rosada muito viva), tendo um efeito paralisante no coração."

beijinho

Manuel Veiga disse...

Fê, minha amiga,

o interesse dos venenos é descobri-lhes o antídoto.
até teixo é vulnerável.

beijo


José Carlos Sant Anna disse...

Caro Manuel,

Para histórias deliciosas não precisamos de antídoto: é entregar-se ao deleite e repetir a leitura. Como diria Jânio Quadros, o nosso ex-presidente: Fi-lo por prazer. Reinventamo-nos lendo os seus textos.
Um bom final de semana,

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