quarta-feira, agosto 24, 2016

MÓNICA ou a Revisitação de Stefan Zweig


Entre os escritores de culto, na minha juventude, Stefan Zweig, tinha lugar de referência. Os romances “Amok ou Carta a Uma Desconhecida”, “Angústia”, “Confusão de Sentimentos” ou “24 Horas na Vida de Uma Mulher” povoavam então o meu imaginário, pela descrição de ambientes, pelo recorte dos personagens e pela subtil vibração dos sentimentos, que perpassa em toda a sua obra literária, testemunho do tempo crepuscular, entre as duas grandes guerras mundiais do século XX.
 
“Caçador de almas” como alguns estudiosos o consideram, Stefan Zweig revela grande fascínio por aqueles seres especiais que atravessam a vida com a inocência primordial dos sentidos, muitas vezes questionando a superioridade do génio face a “humana humanidade” do medíocre ou do vencido – o derrotado da vida, que, em sua redenção, atinge, um valor bem superior ao dos triunfadores.
 
Como se sabe, o escritor austríaco Stefan Zweig não foi apenas novelista. Foi também ensaísta, poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo de grandes figuras da história da humanidade, designadamente, de Dostoievski, de Nietzsche, Maria Antonieta, Fouché, Romain Rolland, entre outros.
 
Judeu, humanista, pacifista e crítico do nazi-fascismo, teve os seus livros proibidos e queimados na praça pública. Com o nazismo, Stefan Zweig foi assim obrigado a deixar a Áustria e iniciou então uma peregrinação pelo mundo, acabando por se fixar no Brasil.
 
Em 1942, deprimido com o crescimento da intolerância e do autoritarismo no seu país e o triunfo na Europa da besta nazi, descrente no futuro da humanidade, Stefan Zweig escreveu uma carta de despedida e suicidou-se, em Petrópolis, com a mulher.
 
Agradece ao Brasil “a gentil e hospitaleira guarida” e termina a sua carta de despedida do mundo: ”Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite - eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes".
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Nestes dias crepusculares de um final de Verão, na acolhedora paisagem da instância termal que, por uns breves dias, me acolheu, saindo como uma fantasmagoria de uma qualquer página da obra de Stefan Zweig, irrompe a personagem incontornável de Monika.
 
Fora eu “caçador de almas”, ou tivera um pouco do talento do grande escritor e a Monika entraria directamente para a galeria das grandes criações. Assim, permanecerá imperecível, no anonimato da vida que escolheu e no nostálgico gesto das minhas evocações literárias.
 
E no prazer de convosco compartilhar os impressivos traços que, perante o meu olhar, esboçam o perfil festivo de Monika e o seu status nas hierarquias e nas redes do espaço social daquela instância termal.
 
Vestida de longas e coloridas saias, com flores pintados no rosto e fitas de papel a enfeitar-lhe o cabelo, Monika oscila entre um arlequim e uma hippie dos gloriosos anos sessenta, que certamente viveu com intensidade.
 
Farmacêutica, cedo abandonou a profissão, mal compreendeu que os interesses da “indústria” se sobrepõem às necessidades sociais. Austríaca por nascimento (como o meu autor) e cultivada em Viena de Áustria, vive em Portugal (no topo da serra algarvia), onde chegou perseguindo ervas medicinais e o amorrrr, como confessa com um sorriso cândido, em sua pronúncia carregada de “rrrr”...
 
Hoje, rodeada de filhos e netos... E de galinhas e ovelhas (e do “filósofo”, velho burro carregado de anos) que amorosamente alimenta e cria nos escassos hectares que cultiva por suas mãos.
 
Na época estival, desce ao vale percorrido pelas águas termais e pelas instalações hoteleiras, onde numa acanhada arrecadação instalou o “Kids Club” um pequeno atelier de artes performativas, para glória da pequenada e descanso de pais e de avós. Ao mesmo tempo, vai mediando afinidades, que o seu olhar atento e arguto sabe descobrir entre hóspedes.
 
Detesta arrogâncias. Foi-lhe por isso penoso, quando a placidez do local foi invadida por grupo norte-americano, que o privilégio do dinheiro lhes permitiu escolher o lugar para um exuberante casamento. Quiseram, porém, os benignos deuses do lugar que a sobranceria fosse castigada por uma arreliadora quebra de energia eléctrica, que manifestamente lhes estragou a festa para gozo íntimo dos indígenas preteridos na esplanada e nas piscinas do hotel e o sorridente e irónico olhar de Monika...
 
Monika, na singeleza das suas escolhas, representa, porventura, talvez sem o saber, a realização prática da ideia de "vida boa" que, desde Aristóteles, os espíritos mais lúcidos perseguem. E que é a antítese do "deus-fetiche" - o dinheiro...
 
Há ainda seres assim, que planam sobre a vida. Tão reais, que mais parecem ficção...
 
Manuel Veiga
 
in "Notícias de Babilónia e Outras Metáforas"
Edição MODOCROMIA - Lisboa - Abril 2015
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Até breve. Vou visitar a minha amiga Mónika.
Beijos e Abraços

 
 

 

13 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

"Quiseram, porém, os benignos deuses do lugar que a sobranceria fosse castigada por uma arreliadora quebra de energia eléctrica, que manifestamente lhes estragou a festa para gozo íntimo dos indígenas preteridos na esplanada e nas piscinas do hotel e o sorridente e irónico olhar de Monika..."

Escrevem os deuses direito por linhas tortas

Beijos à Mónika

Ana Tapadas disse...

Boas visitas...que a personagem as merece!
Excelente recorte.
Beijos

Marta Vinhais disse...

O encontro com a Terra... O Amor pelas coisas simples, sem arrogância e egoísmo....
Obrigada pela visita... Também estarei ausente por alguns dias...
Até já..
Beijos e abraços
Marta

Graça Pires disse...

Que a sua "Monika" o deixe feliz.
Que bom que foi ouvir Léo Ferré. É sempre comovente...
Um beijo meu.

Agostinho disse...

Mo-ni-ka: só de ler, pela melodia do nome, é de crer.
Bom reencontro, caro MV.

Jaime Portela disse...

Também li o Stefan Zweig na minha juventude, mas já não me lembro de nada...
É sempre interessante conhecer dessas Monikas...
Gostei de ouvir o Léo Ferré (imortal).
Caro Veiga, tem um bom fim de semana.
Abraço.

Suzete Brainer disse...

Bela e excelente a tua crônica a descrever a Monika,
uma mulher especial na expressão de Ser, na contra mão
ao mundo de corrida capitalista e o modo exibicionista
da vida vitrine. O melhor é a essência e a natureza vida!...
Águas termais são tudo de bom para a saúde total (corpo, mente
e alma).
Aproveite deste precioso lugar, estes dias, meu querido amigo!
beijo.

Suzete Brainer disse...

Sim, meu amigo,
dizer adorei o vídeo e a música,
belíssima!!

Tais Luso de Carvalho disse...

Stefan Zweig... Na biblioteca de meu pai não faltou esse grande escritor. E também aqui moram alguns de seus livros.

“Minha vida está destruída há anos, e eu me sinto feliz por poder sair de um mundo que se tornou cruel e louco”.

Deixou uma obra que encantou gerações de leitores, uma obra compreensiva sobre as mulheres e o amor, explorando sentimentos obscuros e segredos devastadores. Um homem que sucumbiu às feridas de seu tempo, e que seus medos, impulsos e sonhos, ainda são os mesmos, os nossos.
Beijo, amigo!
Belíssima postagem.

tb disse...

Fico a sorrir com o que li e ouvi e deixo um beijo com votos de boas visitações!... :)

Graça Sampaio disse...

Que lindo texto, menino heretico!! Gostei. Oh como gostei! Uma prosa tão bela, tão suave, tão lisa, tão sentida!

Também li Stephan Zweig e lembro que gostei muito. (não sabia do seu suicídio, do desencanto!Que pena não ter visto o final da guerra...)

Beijinhos e boas férias!

José Carlos Sant Anna disse...

Que leveza você leva para a Monika.
Seria bom não se atrasar, imagino que ela esteja ansiosa pela tua chegada.
E bom que seja sem trégua e sem pressa (risos)!
Forte abraço,

Afrodite disse...

(eu fiquei aqui a escutar Leo Ferré)...

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