terça-feira, setembro 06, 2016

SOBRE A "FESTA DO AVANTE"


A Festa do Avante, promovida pelo jornal do Partido Comunista Português, celebra-se, anualmente, na Quinta da Atalaia, no Seixal, com a participação de milhares e milhares de pessoas, de todas as idades e condições sociais, vindas de todos os cantos do país (e muitas do estrangeiro) para três dias de encontro e confraternização.

“Não há festa como esta” dizem, com razão, os seus promotores e militantes. E não apenas pelos seus eventos culturais (com o melhor que se produz no domínio da música – para todos os gostos - das artes plásticas ou da literatura), ou por esse mosaico de gostos e paladares que são a culinária e os vinhos nacionais, ou pela multifacetada expressão do artesanato regional, ou pelos exaltantes momentos de participação política.

Claro que haverá sempre diversos olhares sobre a Festa. É natural que haja. Apenas a engrandecem aqueles que por preconceito, ou por função e missão, dela desdenham. Mas para quem, com olhar límpido, quiser ver não poderá ignorar o imenso sortilégio que a Festa do Avante exerce sobre quem a frequenta, independentemente, das opiniões políticas.

E é caso para nos interrogarmos sobre as razões de semelhante sucesso, numa sociedade eivada de um anticomunismo larvar, permanentemente instigado pelos aparelhos de dominação ideológica – na comunicação social, nos modelos de sociais, nos padrões de consumo, na política, na profusão das imagens que encharcam o nosso quotidiano.

Por que razão o “efeito” Festa do Avante excede o horizonte da mera militância política e seduz tanta gente? Tenho claro que a Festa do Avante é antítese perfeita da chamada “sociedade do espectáculo”, em que andamos mergulhados. Dai as razões do seu sucesso...
 
Deixem que tente explicar-me. Como sustenta Guy Debord, as modernas condições de produção apresentam-se como uma imensa acumulação de espectáculos, onde “tudo o que até então era directamente vivido se afastou numa representação”.

Assim, o espectáculo será, no dizer deste autor, “ao mesmo tempo o resultado e o projecto do modo de produção existente”. Sob todas as suas formas particulares - informação ou propaganda, publicidade ou consumo, ou divertimentos - o espectáculo constitui o modelo da vida socialmente dominante, numa “afirmação omnipresente da escolha já feita na produção e no consumo”.

Forma e conteúdo do espectáculo são, assim, a justificação total das condições e dos fins do sistema de produção existente. Numa frase lapidar, “o espectáculo será o discurso ininterrupto que a ordem dominante faz sobre si própria, ou seja, o seu monólogo elogioso” .

O processo de alienação será permanente: quanto mais o espectador contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. “A exterioridade do espectáculo em relação ao homem concreto revela-se nisto - os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta”.

Pois bem, a Festa do Avante escapa a tal lógica. A Festa do Avante pertence literalmente dos seus construtores. É trabalho voluntário que ergue os seus pilares. Trabalho livre, sem salário. Com o tempo e a forma que cada um escolha, motivado apenas pelo desejo de “fazer” a festa. Trabalho desalienado, portanto. Que subverte do sistema de produção dominante, pois é demonstração prática (precária que seja) de que outro modo de produção é possível.

Por outro lado, a Festa do Avante pode ser usufruída sem mediação, nem filtros, por todos aqueles que nela participem. O espectáculo, (que Festa do Avante também é) e as imagens que projecta na sociedade portuguesa e, em especial, em que têm o privilégio de nela participar e compreender, correspondem à vivência real dos homens concretos, como “discurso” alternativo à ordem social alienante.

Por momentos, nos três dias da festa, será a libertação do Desejo e do Sonho, (“de focinho pontiagudo”), sondando os dias do Futuro. E a vida real de milhares pessoas, alargando o horizonte da consciência social de cada um e o caudal da consciência colectiva de que é possível uma vida melhor.

Gosto, sim, da Festa do Avante. Muito. Como paradigma de uma sociedade diferente. Mais justa, solidária e fraterna. Como lampejo da Utopia, que as mãos, a luta e o suor dos homens, libertos das contingências de modo de produção dominante, um dia poderão erguer...

Manuel Veiga
"Notícias de Babilónia e Outras Metáforas" - pág. 17
Edição Modocromia - Abril 2015



11 comentários:

Majo Dutra disse...

Também gosto, sim, da Festa do Avante. Muito.
Principalmente pela camaradagem, generosidade e altruísmo.
Também gosto sobremaneira desta estupenda crómica. Magnífica e magnificente!
Dias agradáveis.
Bj ~~~~~~

Suzete Brainer disse...

Manuel,

Um texto excelente, informativo e convidativo
para a real vivência fraternal de uma festa (evento),
com o privilégio da participação humana, no gesto
mais amplo do social, político e cultural neste
espelho da consciência coletiva.

Parabéns pelo texto que vejo (informação) publicado
no seu livro, meu amigo!
beijo.

Emília Pinto disse...

Antes de mais, Manuel, quero agradecer a visita feita ao Começar de Novo. Espero que tenha gostado e apareça mais vezes. Nunca participei da festa do Avante, mas sempre ouvi elogios acerca dela; gostei do seu texto e de tudo o que li . Voltarei com mais tempo e já me fiz sua seguidora. Mais uma vez muito obrigada e até breve. Um abraço
Emilia

Rogério G.V. Pereira disse...

Meu caro,
apenas um reparo
tua afirmação
trabalho "motivado apenas pelo desejo de “fazer” a festa."
é contraditado
pelo referido no teu último paragrafo
que refere a motivação exacta:

"Como paradigma de uma sociedade diferente. Mais justa, solidária e fraterna. Como lampejo da Utopia, que as mãos, a luta e o suor dos homens, libertos das contingências de modo de produção dominante, um dia poderão erguer..."


jrd disse...

Excelente serena e inteligente análise.
Abraço meu irmão

José Lopes disse...

A vida sem utopia não tem graça nenhuma...
Cumps

Anónimo disse...

Descobri que poderia tentar comentar na qualidade de "anónimo", contradizendo-me no final, através da assinatura possível...

Absolutamente de acordo com esta "visão", friso este ponto;

"O processo de alienação será permanente: quanto mais o espectador contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. “A exterioridade do espectáculo em relação ao homem concreto revela-se nisto - os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta”."

Abraço!


Maria João Brito de Sousa

Mar Arável disse...

Estive no lançamento do teu livro
em Festa de amigos

Abraço

Jorge Castro (OrCa) disse...

É sempre um prazer ouvir alguém falar do que sabe, do que aprecia e do que usufrui, rara combinação que dimensiona o ser humana de outro modo, um modo de ser que se enforma de saberes, o que culmina com o que solidariamente partilha.

Que queres que te diga? Gostei muito do que (te) li. Sabes, tem todo o ar de ser uma coisa assim do fundo da «alma» e, no entanto, pressentimos-lhe sabor, e cheiro e apetece-nos sentar à mesa a partilhar a «refeição». Tem gente assim, a lidar com as palavras... Talvez que, como dizia alguém conhecido, «il n'y a qu'un sur cent» e, contudo, eles existem. O adjectivo será, obviamente, a gosto... apesar de já irmos em setembro. ;-)»

José Carlos Sant Anna disse...

A primeira vez que ouvi falar da Festa do Avante foi numa publicação cujo lançamento ocorrerá no próximo dia 16 de setembro, aqui, em Salvador. Trata-se de um romance de escritor angolano, que viveu muitos anos em Portugal e, hoje, está radicado na Bahia. Chama-se Ricardo Ferreira.
Mas a forma como se refere à Festa do Avante é aliciadora, além de "ideológica".
Quem sabe se a minha próxima estada em Portugal não coincidirá com a próxima?
Forte abraço, caro amigo!

Odete Ferreira disse...

Não há como contraditar a afirmação "Não há festa como esta", apesar de nunca ter ido.
Quanto ao texto, bastam duas palavras: Excelente e eloquente.
(Devo-te tantas visitas, Manuel! A ver se me redimo...)
BJO :)

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...