sexta-feira, outubro 28, 2016

FRAGMENTOS XXXVI



Encurtemos razões, então, pois é mais que evidente o enfado. Maria Adelaide, o alfa e o ómega, o norte e o sul, a mão que fustiga e o braço que embala, de seu berço africano pouco lhe importa, neste agora de “África Minha”. Depois do sal das lágrimas e das amarguras e dos frustres dias, com a grande derrocada do retorno e as usuras de um tempo adverso que isto de Revoluções, tendo suas causas, razões e justiças e sonhos vivos no toque dos dedos e naquele abraço que muitos de nós guardamos, são também cratera aberta que devora e tudo igualha, ganhos e perdas no jogo da vida e, assim também nesse trepidante lance da história pátria de um “25 de Abril” alvoroçado, em que Maria Adelaide perdeu a fortuna e percurso lento de menina mimada e seus cuidados e ganhou, entretanto, o tempo maior de seu tempo de Mulher emancipada.

De África, pouco lhe resta. Memórias cálidas, que vêm à superfície e ela sacode, pois que a vida no seu presente infinitivo, é (agora) outra e não vale a pena chorarmos por leite derramado, de sorte que apenas a foto da bailarina seminua, no Maxime, sentada ao colo do pai, encontrada ao acaso, em caixa de papelão, por entre medalhas e distinções que Salazar lhe dispensava a ele, senhor seu pai e outras bugigangas também mortas, apenas tal foto a tem intrigado como mistério de verdade pressentida e replicada, sabe-se lá, a sépia e com moldura, na vida de Dona Rosalinda, no seu percurso de chinela no pé e canastra à cabeça, rua a baixo rua acima, a apregoar peixe fresco, fazendo uma perninha no fado e outros jeitinhos bem mais fogosos, num bar rasca do Cais Sodré, couto de marinheiros e vadios, antes de o seu Armando, para mal de seus pecados, a arrebatar num tango e presa a mil promessas e a um sonho de amor lindo e logo ela, Rosalinda, fartinha de conhecer crápulas e a levar num mar de promessas e enganos. Mas cada um é para o que nasce e uma mulher decente e trabalhadeira também ferve de cio e a lábia de alguns homens é bem capaz de transformar mulher séria em fêmea perdida. E assim Rosalinda se perdeu e deixou tudo para trás, mãe, irmãos, o bar e a vida pobre, mas limpa e até o sonho íntimo de ser cantadeira para se enfiar naquele buraco do fim do mundo, nos confins da Guiné e entregar-se aos caprichos de seu Armando em que mais tarde entrou também o diabólico Gaspar, que dela fizeram gato-sapato.

Cada um é para o que nasce é bem verdade, dona Rosalinda, capacho do Gaspar e do Armando, seu marido, mas com nome registado e pia baptismal. E uma história. Negra, bem se sabe, a história, mas a deixar rasto e pegada, ténue que seja, e uma vida também, simples, sonho ainda, a derramar-se na generosa dádiva de corpo e na maternal devoção ao Alferes que adoptou, “que lindo és, meu filho”, como tábua de salvação de um naufrágio, ou sublimação de afectos abortados.

Sim, Maria Adelaide, sei que é cruel expor assim descarnada, como fístula de alma, essa dor íntima e calada que trazes presa, o embaraço e a raiva que a recordação de tuas condiscípulas no Colégio de freiras, adolescentes como tu, a inquirirem, com sorrisinho maldoso afivelado nos lábios, elas com nomes frondosos, a escorrer da libré dos criados e, em seráfica postura de santidade, a soltarem precoce peçonha, “coitadinha não tem mãe” e “vive com os pretos”, “como são os pretos?” e tu a aguentares até ao limite do suportável as afrontas, a conteres a raiva e, com os nervos tensos e a lágrima em seco, a disparares, desbragada na tua rebeldia, como um murro de eloquência naqueles ardores feminis da adolescência: “queres saber como é preto? é homem como branco, mas tem c. maior” e a excitação dos gritinhos, e a Madre Superiora, e a reprimenda e a carta para teu querido pai, dando notícia de tua rebeldia e do teu mau aproveitamento escolar e o abandono compulsivo do Colégio e o apartamento nas “avenidas novas”, guardada por zelosos parentes da província, que de ti cuidaram, o Liceu Maria Amália, as tuas verduras e frescuras, a faculdade de Letras, os plenários na “Cantina Velha”, então apenas e tão só – a “Cantina” – as cargas da polícia, a propaganda clandestina do Movimento Estudantil transportada, sem teres verdadeira consciência da gravidade, no teu automóvel com chauffer fardado. as aulas, os exames medíocres e muita treta tua, o João, promissor advogado com lábia para teu pai e blandícias para ti, o casamento, o nascimento de teu filho, o momento de nosso encontro, claro que sim, Maria Adelaide, tudo o que és e tudo o que foste e essa dor maior, dissimulada no peito e denunciada nos teus olhos, a ausência de Mãe na tua vida, de que guardas apenas a cálida esperança de a veres vertida na foto gasta de uma mulher seminua no colo de um homem que sabes ser teu Pai, sem mais nada, apenas o nome próprio que te disseram, Amélia, sem apelido, nem registos, que assim te falaram, quando perguntavas, que morrera com teu parto. Sabe-se lá porque tramas da vida, a vida de uma mulher pobre! Do Maxime e de uma foto desbotada de uma mulher seminua e de um homem careca, de bigode e charuto que a tem ao colo, babado de gozo, e de uma menina, no percurso de dor e da sua vã evocação do sagrado nome de Mãe, ficamos a saber. E que mais? No buraco negro desse absurdo, que é nascer e morrer, e nos liames que à tona da vida nos mantêm, antes dona Rosalinda, não é verdade, Maria Adelaide? Sempre saberias onde escorar a tua perda e depositar a dor funda da tua orfandade.

Neste escarpado trilhar de pedras de Maria Adelaide em que seu pessoalíssimo itinerário de dor, tão íntimo e sofrido, se derramou, nenhum discurso narrativo poderá resistir à prova da verdade, nem autor, se autor houvesse, que não se vergue e arrepie caminho. Deixemos pois respirar o tempo e o modo deste luto e guardemos silêncio de outros personagens, pois que, nem Tabanca, nem Alferes, nem a vaidade ofendida de Sanhá Mané, filho de Régulo e Comandante-Chefe de Todas as Milícias e Tropas Auxiliares do Comando Territorial da Tabanca, nem sequer o “senhor Gomes”, que na sábia palavra de Dona Rosalinda os pretos respeitam e os brancos escutam ou escutavam, antes desta maldita guerra meter tudo “de pernas para o ar” têm agora ocasião ou momento no palco dorido da narrativa.


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