segunda-feira, dezembro 26, 2016

FRAGMENTOS XXXIX


Vai abrir-se a “a caixa de Pandora” e soltarem-se as maldições. Não será espectáculo recomendável – talvez seja preferível, Maria Adelaide, ficares afastada uns tempos. Ou talvez não. Porventura possas, talvez, aparecer, mais tarde, trasvestida de senhora de impoluta conduta, temente a Deus amante dos pobrezinhos, qual dedicada activista do Movimento Nacional Feminino e de sua corte de “madrinhas de guerra”. Quem o poderá jurar, se o autor não existe?

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Então, nessa manhã madrugadora, quando os homens e os bichos eram apenas o perfil recortado das coisas físicas, contraponto entre o dia, ainda placenta, e a noite, que deslassava, antes mesmo de o Sargento-dia ter ordenado o toque de clarim “em alvorada”, dulcificava o Alferes o olhar e a alma na polissémica fusão da paisagem com as emoções em que se desprendia e eis que vislumbra, em recorte de contraluz, o soldado “Assobio” que, como se sabe, já não “apoucalhado” recruta, provindo das desolados cumes da Serra da Gardunha e de seus ermitérios de solidão, mas agora arvorado em “impedido” da messe dos oficiais, com reluzentes dragonas e casaca branca, acompanhado pelo “cabo da cifra”, militar interprete e depositário de todos os códigos e cifras de comunicação com o Comando da Companhia e com o resto do Mundo também, pois que o centro do mundo a Tabanca era, códigos e cifras secretos, conforme os regulamentos e normas, que mais não eram do que o estreito caminho entre segredo e a coscuvilhice.

Naquela inusitada aparição, saída do bojo das improbabilidades, pois que a vida no quartel era toda ela “ordenada” por toque de cornetim, ou voz de comando, fora da qual o tempo era simples passagem do tempo, a menos que algum acontecimento extraordinário viesse a perturbar o oscilar monótono do tempo real. Naquela aparição matinal, por tão improvável, agitou-se o Alferes que foi repassado por brevíssimo estremecimento, qual sismógrafo, que, premonitoriamente, advinha e antecipa o começo da derrocada e o fim dos dias faustos. Que faziam ali o soldado Assobio e, sobretudo, o “cabo da cifra”, quando o quartel ainda mal se espreguiçava e Tabanca era bocejo matinal? Assim, por momentos, o Alferes agourou o pior e o coração bateu várias vezes, cada vez mais acelerado, até ganhar serenidade, saltitando a sua ansiedade entre a morte ou doença de familiares ou amigos próximos, pois que, como como cada um sabe segundo a sua própria experiência, as boas notícias chegam sempre mais ronceiras e pelos meios mais morosos, enquanto as más notícias percorrem atalhos e trilhos escusos para mais depressa causarem o dano de que são infectadas, balançava pois o Alferes entre o mal e o bem, sendo que o bem se pode sempre mudar em mal, como seja, no caso, a possibilidade de algum desastre militar, sabe-se lá de que tamanho e com que perdas, pois bem se sabe que, para quem ocupa chão que não o seu, ou busca colher, sem consentimento, de mulher alheia, por exemplo, a flor de seus caprichos, ou seja o lá o que for que abusivamente se pretenda, melhor é estar preparado para o efeito boomerang e para suas funestas consequências, de sorte que o Alferes para aliviar a sua própria tensão sacudiu seus prenúncios e exorcizou o negrume de seus pensamentos e, decidido, antecipando desígnios e lances da sorte, foi ao encontro dos dois militares, certamente, naquela matutina hora, mensageiros infaustos, já que apenas urgência grave justificaria o zelo e a diligência de que vinham animados.

Dispensando o Alferes continências e outras formalidades militares, arrancou o papel das mãos do “cabo da cifra” e, com ligeiro aceno, afastou o brioso soldado “Assobio”, apoucalhado que fora e agora arvorado em garboso impedido da messe de oficiais, como ficou dito, por ordem serviço lida em parada, com todo o arsenal de deveres e direitos devidos à sua condição e, naquilo que a sua função se refere, o poder/dever de frequentar os aposentos dos oficiais da Companhia, designadamente, os quartos de dormir. E para isso viera o soldado Assobio, isto é, para fazer imediata entrega do pequeno papel amarelado, que encerrava o destino da guarnição da Tabanca e que, ao abrir-se nos dedos decididos do Alferes, abriria também, sem apelo ou agravo, as inquietas certezas, faustas ou infaustas, de que o apoucalhado, ora soldado Assobio, era portador e agente e que ele, militar brioso, embora apoucalhado, levaria “sua carta a Garcia”, ainda que o Alferes dormisse “blindado” pelos braços de Dona Rosalinda, em cama larga, nos aposentos mais amplos da vivenda, com rasgadas janelas, resguardadas da invasão de mosquitos e outra bicharada por espessa e fina rede de metal, pois bem se sabia em toda a guarnição militar da Tabanca e, do que sabido era, se dizia à boca pequena que Dona Rosalinda sofria de afrontamentos e que para acalmar seus suores e ânsias nocturnas que lhe subiam das coxas, em ondas de calores húmidos, durante a noite, se metia na cama do Alferes, - “és tão bonito, meu filho” - e, maternal, se desfazia em blandícias e carícias que o Alferes, quedo e mudo, aguentava até ao espasmo final e ali ficava então de olhos abertos, como estranho, suportando o peso das carnes flácidas, ou um novo assalto, até que de novo adormecia e Dona Rosalinda retomava seu leito, no outro lado da vivenda, pé ante pé, para não acordar o seu menino.

Mas naquela noite, não. O Alferes acordara cedo. Lera até tarde “Les Danné de la Terre”, do argelino Franz Fanon que, numa quase clandestinidade, corria de mão em mão, pelos oficiais e sargentos do Batalhão de Cavalaria e o que lera lhe ficara a bailar no cérebro como revelação, a doer como lâmina surda, a acicatar a impúbere consciência cívica e colhia, então, o Alferes, naquela hora indecisa, daquela manhã polissémica, o conflito íntimo e a contradição “sistémica” entre fechar os olhos ante o que à sua volta se passava e percebia e sentia na pele, com conhecimento agudo e profundo da natureza exploradora do sistema colonial e de uma guerra que, além de injusta, não se almejava o fim, e o propósito, até então assumido, de levar as coisas da melhor maneira, sem fazer ondas, contar os dias até a “peluda” chegar e regressar então, são e salvo, à família, aos amigos, à Universidade e às esperanças legítimas de uma carreira na Magistratura e, do outro lado da equação, o salto no escuro que representaria a neófita decisão de desertar e colocar-se à disposição da guerrilha, ainda a germinar e que, por inesperada, o perturbava, numa angústia sufocante, qual poderosa tempestade para resguardo da qual não colhia abrigo. Assim fora o abalo interior que a leitura da noite lhe provocara, bem sabendo o Alferes que há momentos assim únicos, em que se joga tudo ou nada, e nesse rasgo, se revela a integridade e o carácter que define a grandeza dos homens. Mas também sabia o Alferes o caudal de certezas que o prendiam, as milhentas razões que o embaraçavam, o sacrilégio que seria ceifar esperanças, não dele, que, por ele, cedo aprendera a “diferenciar o nada de coisa nenhuma”, quer dizer, cedo aprendera a efemeridade coisas e o valor delas e a relativa importância do lugar social donde falamos, em todo caso esperanças que, laços de sangue, eram aguilhão a empurrar a sua vida e a forçar o destino.

Ainda se houvera ali, atormenta-se mentalmente o Alferes, a presença de alguém em que pudesse depositar, não a inóspita decisão que bem sabia ser sua, mas ao menos o pudesse apaziguar a sua angústia, mas quem? Dona Rosalinda? Nem pensar, nunca lhe perdoaria a “traição” de passar-se para os pretos. E, no entanto, o nome Rosalinda teimava em vir à tona, martelava-lhe o cérebro e ocupava toda a largura mental de sua momentânea inquirição – “vai, meu filho, vai falar com o senhor Gomes, ele é homem do mundo, saberá escutar-te” – assim o Alferes, em sua fantasmagoria, lhe parecera escutar o murmúrio sussurrante da excelsa senhora e, nessa “iluminação”, se decidira, iria sim falar com o “senhor Gomes”, degredado da heróica e frustrada Revolta dos Marinheiros de 1936, primeiro branco daquelas paragens que, na palavra sábia de Dona Rosalinda, os pretos respeitam e os brancos escutam ou escutavam, antes desta maldita guerra chegar, não para lhe pedir conselho, ou falar sobre si e o seu agudo conflito, mas dele e de sua experiência de África, influência que se estendia pelo Senegal até aos territórios, a norte, de Cassamansa, levada pelas trocas de panos e pelo marfim e outras mercadorias que vasta trupe de “Xilas”, que com ele, português das “sete partidas, comercializava, por certo dele colheria palavra, ensinamento ou “leitura” esclarecida dos presentes acontecimentos de guerra, que certamente o ajudariam na tomada de decisão firme sobre seus propósitos. Em suma, buscava o Alferes, ainda sem o saber, a alavanca das decisões sábias, alicerçadas no impulso da “razão teórica” e na fecundidade da “razão prática”, filosofia que, ao longo da vida, iria absorver, aprofundar e praticar com a naturalidade do ar que se respira.

E neste balanço íntimo, nesse fervor de emoções contraditórias, que o empurraram fora da cama, nessa manhã madrugadora, no contraponto entre o dia, ainda placenta, e a noite, que deslassava, antes mesmo de o Sargento-dia ter ordenado o toque de clarim “em alvorada”, assim o Alferes foi ao encontro dos dois militares, o soldado Assobio, que “apoucalhado fora” e  o “cabo da cifra”, à vista dos quais seus pensamentos se deslocaram para outras direcções e à incógnita das suas decisões imediatas somou presságios e inquietações que, desde que o mundo é mundo, os mensageiros são portadores e hão-de levar ao seu destino, ainda que por vezes, em tempos rudes da História,  tivesse de pagar com a mão decepada, quando não mesmo a cabeça. Mas, apesar da crueldade dos tempos, disso estava livre o apoucalhado mensageiro , apenas objecto da brusquidão do Alferes, que, em sua ansiedade, arrebatou, sem condescendência, o descorado papel das mãos do soldado e abriu, num ímpeto: as notícias nuas e curtas – o capitão Mascarenhas chegaria nesse mesmo dia, com a escolta de dois grupos de combate. E todos os civis seriam imediatamente evacuados, regresso à sede do Batalhão de Cavalaria, escoltados no regresso por um dos grupos de combate, ora em trânsito. Essas eram as ordens. Havia que cumpri-las.

Veremos como um simples papel pardacento e meia dúzia de sinais (de) cifrados podem mudar o curso da vida e o rumo dos acontecimentos.

Manuel Veiga

12 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

“Les Danné de la Terre” correu de mão em mão, na "Universidade Livre do Real Reino da Roça", junto a Maquela.
Somos os livros que lemos...

Armando Sena disse...

Votos de um excelente 2017.
Das letras ser farão novos desafios.

Suzete Brainer disse...

Uma narrativa com a inscrição da tua competência de trazer
o leitor para o cenário na vivência de um laboratório
emocional, acionando a fragilidade humana diante do
absurdo que deve ser uma guerra (para que?...):
"Então, nessa manhã madrugadora, quando os homens e os
bichos eram apenas perfil recortado das coisas físicas,
contraponto entre o dia, ainda placenta"

Grata pela leitura ímpar da tua literatura.

Deixo os meus votos de 2017 harmonioso, pacífico
e pleno de realizações para ti e extensivos
a tua família, amigo Manuel!

LuísM Castanheira disse...

também somos aquilo que vivemos...
e muito mais quando os sentidos eram condicionados à preservação da própria vida.
Foram tempos difíceis e dessas memórias inigualáveis, dá-nos o autor a riqueza duma crónica, como se tivesse sido ontém: viva e rica.
A guerra na Guiné foi bem mais perigosa do que nos outros dois teatros [teatros (?),- termo militar que nunca compreendi o termo, quala peça em cena e quem a escreveu..ahah], Angola, e Moçambique.
Mas os actores fomos nós...e nem palmas tivemos, quando na boca da cena, o pano caiu...
Boa memória e bela escrita, Amigo Veiga,
Um Forte Abraço.

Agostinho disse...

Estas peças que MV vem publicando ao som do tiquetaque pendular revelam um tempo que urge guardar na memória.
A força que tem (tinha) uma ordem dada, cifrada, descifrada! Assim se fez e desfez o império do improviso. Os jovens iam e vinham nas caravelas sem rumo e pelo meio os alienados sem tino desapossados da vontade entregavam-se ao destino entre o ebúrneo medo e a indígena grafite.
Abraço.

Pata Negra disse...

para viver e para contar, também servem as guerras. mas também em outras coisas elas nos mudam e mudam o mundo. ah que como seriam boas guerras sem violência e sem razão!
Um abraço ainda a remoer a bela prosa - ou será poesia?

Teresa Almeida disse...

Sou transportada numa escrita com o seu quê de bélico, de poético, de reflexivo. É uma forma de trazer luz sobre uma época em que todos sofremos. Luz que agradeço. É que cada olhar traz uma nova dimensão, um aporte emocional que nunca se apagará.

Que o novo ano traga o que o teu coração deseja.

Grande abraço.

Pedro Luso de Carvalho disse...

Caro Manuel, gostei do seu FRAGMENTOS XXXIX. Um belo texto. Parabéns.
Desejo ao amigo um ótimo ano de 2017.
Grande abraço.
Pedro.

Tais Luso de Carvalho disse...

Textos, postagens ótimas como as suas é sempre bom ficar atenta, Manuel.
Também achei o vídeo de Joe Cocker fantástico!
Estamos quase na contagem regressiva para 2017, que se vá 2016. Feliz Ano Novo, meu amigo!
Beijos.

jrd disse...

De vez em quando pergunto-me: quantos fragmentos vou ter de esperar para me atrever a comentar?
Um grande abraço para um grande escritor.

Odete Ferreira disse...

A tua narrativa é plena de densidade; as personagens, os locais, os acontecimentos pulsam através do impulso da tua riquíssima expressão literária. Estes relatos são extremamente relevantes por tudo o que os enforma, mas, sem as tuas idiossincrasias, não teriam o impacto que têm, pois não são meros memoriais.
Bjo, com respeito e admiração, Manuel

Ana Freire disse...

Um magnifico texto, Manuel, em que a sua brilhante escrita, nos faz visualizar na perfeição, todo o cenário e contexto, em que decorre a acção...
Dando a sensação de que de leitores... passamos a assistentes, por sentirmos estar integrados no contexto, em que se passa a acção...
Gostei imenso! Beijinho
Ana

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