terça-feira, janeiro 17, 2017

O Discurso Sem Rosto...


Como se sabe, mais não seja que por saber de experiência feito, o rosto é o “espelho da alma”. O que significa que a história do rosto humano é a história do controle da expressão, das normas religiosas e éticas, sociais e políticas que, a partir do Renascimento e dos alvores do capitalismo, contribuíram para o surgimento de um certo tipo de comportamento social, sentimental e psicológico, baseado no afastamento dos “excessos” e no “silenciamento” dos corpos. E no recalcamento das paixões.

Estes constrangimentos físicos e morais, determinaram o aparecimento de um certo tipo de “persona”, que os autores designam por “homem sem rosto”, caracterizado por uma expressividade medida, reservada, prudente, circunspecta e calculada, por vezes, reticente ou mesmo silenciosa. Por exemplo, o uso de barbas servia  (serve), sobretudo, para esconder o rosto e as emoções que sobem ao rosto.

Assim, importa assinalar que a expressão do corpo e da face condensa sempre a interiorização por parte dos indivíduos das tensões, constrangimentos e dependências sociais, que modificam e deformam as sensibilidades humanas, mais íntimas e complexas.

É verdade que o desenvolvimento das sociedades modernas e a generalização dos cuidados de higiene, da institucionalização dos sistemas de saúde e de educação, da multiplicação das migrações e do aumento do bem-estar em geral, tem vindo a contribuir para homogeneizar os tipos físicos e a esbater lentamente, nas classes médias urbanas, as origens sociais de seus rostos e as marcas de seus misteres e trabalhos.

Pode dizer-se que, com o aparecimento das sociedades de massas, a identidade tende a apagar-se em cada individuo – os rostos tornam-se anónimos. Mas nem por isso “a arte de conhecer o carácter humano pelas feições do rosto” perdeu actualidade. A psiquiatria e a criminologia, sabem-no bem.

Bem desejaria eu poder dominar as subtilezas dessa nobre arte “conhecer o carácter humano pelas feições do rosto”, já que a Palavra é, tantas vezes, mera cortina de fumo, sobretudo, quando, como na net (e não apenas nos blogs) se trata de um “discurso sem rosto”

Manuel Veiga








12 comentários:

Odete Ferreira disse...

Bem desejaria eu poder dominar as subtilezas dessa nobre arte “conhecer o carácter humano pelas feições do rosto”, já que a Palavra é, tantas vezes, mera cortina de fumo, sobretudo, quando, como na net (e não apenas nos blogs) se trata de um “discurso sem rosto” - assim terminas esta explanação, muito bem estruturada e pertinente. E não é por acaso que a transcrevo. Na verdade, bem poderia ser o seu mote. Fosse introdução ou conclusão - como preferiste - expões, sem pruridos, a fatalidade que vem atingindo o ser humano, descaracterizando-o, robotizando-o, fabricando-o. Sabemos (espero que a maioria o saiba, pelo menos) como as figuras ditas públicas (ou personas, como dizes) são tudo menos ingénuas. Os consultores de imagem servem para isso mesmo. Contudo, o que de facto me/nos aflige é o facto do cálculo da forma como agir ser regra e não exceção entre as pessoas ditas comuns. Também devemos usar de cautela, pois, quantas vezes, somos mal interpretados. Em todo o caso, prefiro ter rosto e como não tenho barba, nem sequer posso usar esse artifício para disfarçar as emoções. Parabéns pela partilha.
Bjo, Manuel

Teresa Almeida disse...


Ao ler o teu texto, sinto o que disse J R. R. Tolkien: há algo bom neste mundo e vale a pena

lutar por isso.

Beijo.

LuísM Castanheira disse...

qualquer dia põem-nos um chip à nascença, seguem-nos para todo o lado, e controlam totalmente as nossas vidas.
já o fazem, em parte.
sou frontalmente contra qualquer invasão à mente e ao espírito individuais.(e à vida)
quando qualquer 'especialista', à frente de um terminal, poder definir o carácter e a personalidade de cada um, estaremos perdidos.
nada melhor que cada um avalie as pessoas e as intenções de cada olhar, palavra, expressão corporal, sejam feitas 'olhos nos olhos' e, mesmo assim, cometem-se erros de avaliação.
os amigos reconhecem-se.
daí, toda a informação concentrada, é um verdadeiro perigo, que haveremos de nos arrepender.
é essa também a razão porque os políticos (e outros) carregam a máscara do disfarce, escondendo emoções.
(máscaras e 'burkas' vão ser vendáveis...Ahah)
Um forte abraço, Manuel.

LuísM Castanheira disse...

*... isto está tudo ligado...

José Carlos Sant Anna disse...

E eu que cuidei de uma barba por mais de 25 anos, de tal modo que a minha filha, ao ver-me sair da casa de banho (rs) sem a barba, disse-me: "Não és mais o meu pai". Ela nunca me tinha visto sem a barba. Só posso refletir sobre minha Persona (rs).
Brincadeira à parte, as palavras aqui, neste espaço, escorrem de tal maneira que nunca saímos ilesos. Isto porque elas nos tiram da letargia e das portas falsas. E todos nós sabemos que "pensar" é mais caro!
Um forte abraço, velho amigo!

Pedro Luso de Carvalho disse...

Caro Manuel, esse tema, desenvolvido em O Discurso Sem Rosto..., está ligado, no meu entender a biotipologia, matéria que me atraiu, pela primeira vez, quando, aos dezesseis anos. li o livro Curso de Integração Pessoal, obra de Mário Pereira dos Santos (ainda hoje, este livro está em minha biblioteca). Depois li outros autores nacionais e estrangeiros. No curso de Direito, na cadeira de Psicopatologia, estudávamos Biotipologia. É matéria muito importante para quem trabalha com do Direito, como para psicólogos e psiquiatras. Hoje sabemos, pela biotipologia - estudando o rosto da pessoa e também o corpo (maneira como fica parado, como caminha, seus gestos com os braços e as mãos etc. É um meio de se conhecer pessoas, na sua psiquê, quase sem erros.
Grande abraço.
Pedro.

Manuel Veiga disse...

É como diz, Pedro.
noções de Biotipologia integravam a cadeira de Medicina Legal, quando da minha
licenciatura pela Faculdade de Direito de Lisboa.

obrigado pelo seu esclarecimento complementar.

abraço, meu amigo

Tais Luso de Carvalho disse...

Essa sua excelente crônica foi assunto no nosso jantar, aqui em casa, Manuel. Lembramos de caras, e caras... Biotipologia ( biotipo ou biótipo) é matéria apaixonante a quem se propõe estudar a fundo ou ler sobre o assunto. Quase sempre temos noção de alguém, seus traços, sua boca, olhos, tipo físico, como também pelo seu andar, sua gesticulação etc. Aí já faz parte de outra seara. Mas é também reveladora certas atitudes da pessoa estudada. Na verdade estamos à mostra. Com frequência dizemos: que cara boa e de confiança tem essa pessoa! Como também o contrário: que figura terrível, que cara tem esse sujeito (ou mulher).
Beijo, meu amigo.

Suzete Brainer disse...

Este teu texto ensaísta, com referência científica, mesmo assim,
acredito eu, não tem a função de análise de traços de personalidades
que levem a diagnósticos de perfis psicopatológicos.
Mas, um alerta sobre um comportamento daqueles que tem um discurso sem
a essência do Ser, apenas o aparentar na construção de uma imagem e isto
os meios da net é um campo amplo destas fabricações de imagens.
Eu não gosto de redes sociais no geral e com o pouco tempo disponível,
limito a leituras de blogs de literatura e arte de qualidades.
O perigo do mundo de hoje (com esta ferramenta virtual...) é cada vez mais
impossibilidade de reconhecer pessoas de caráter e afetos genuínos de amizade.
O belo título "O discurso sem rosto..." é evidente a construção
original de um poeta.

Uma leitura muito importante e atual com este teu excelente texto, meu amigo.
Um beijo.

Graça Alves disse...

Belíssima reflexão!
Bj

Agostinho disse...

Boa crónica, amigo Manuel.
A vida cinzela, no rosto de cada um, a verdade da individualidade do homem; a causa e a consequência em trabalho constante, muitas vezes imperceptível, desenvolvem a escultura da verdade imutável. Acontece é que o ruído ensurdecedor que condiciona a nossa civilização reduz, de forma trágica, a leitura dos sinais. A centrifugadora da TV e da NET fazem esse trabalho tenebroso. Daí que o homem de hoje já não distinga a diferença de alimento e veneno.
Num estado de insensibilidade progressivo como hão-de ler-se os sinais?
Observem-se, com atenção, os figurões que nos entram pela casa. Para além das palavras.
Abraço.

jrd disse...

Enquanto leigo e fraco na análise de fisionomias, atrevo-me, mesmo assim a pensar que quem vê a cara percebe o que o coração diz.
Um forte abraço.

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