quarta-feira, fevereiro 01, 2017

MEDIA E PODER - Anotações à margem


1 - A configuração do poder é multifacetada. Assume diversas máscaras numa encenação do Mesmo, quer dizer, da articulação dos interesses económicos dominantes, instância última onde reside o verdadeiro rosto (invisível) do Poder.

Primeira consequência: não há apenas um sistema formal de poder, mas uma multiplicidade de sistemas de poder, disseminados no interior da sociedade, muitos dos quais meros poderes fácticos, que dizer, sem qualquer estrutura (visível) que os suporte.

Segunda consequência: nenhum sistema de poder é, em si mesmo, autónomo e independente dos restantes: os diversos sistemas de poder desdobram-se uns nos outros, funcionando em rede, retroagindo nos respectivos chamamentos. Decorre, portanto, que o poder não é apenas o “lugar de poder” que se observe, se ocupe, máxime se conquiste, mas sobretudo uma “relação de poder” que se exerce e se sofre – não há poder, sem “exercício do poder”...

2 - Tradicionalmente o poder de Estado tem assumido o lugar por excelência do “exercício do poder”. Compreende-se. O Estado, nas sociedades politicamente organizadas, detém o monopólio da violência. É o único sistema de poder que se poderá impor pela força e pelo constrangimento físico. Quer dizer, o poder Estado é essencialmente coercivo...

Como é óbvio, a “domesticação” da violência através do poder de Estado representa um avanço histórico incalculável; tal não significa, porém, que a violência não faça parte da sociedade e, em determinados contextos histórico-sociais, não possa ser “parteira” do devir social.

3 - Outros sistemas de poder actuam na sociedade, porém. Não pela coerção, mas pela persuasão; não pela imposição da lei e da ordem ou pela violência física se necessário, mas pelas artimanhas da ideologia. De forma mais subtil. E em imbricada cumplicidade com o poder de Estado. Como acontece com o poder mediático.

É na propagação de uma ideologia que o “poder mediático” se cumpre. Poder mediático que excede o papel dos órgãos da comunicação social e quadro do constitucional direito à informação, para envolver a indústria do entretenimento, as agências de comunicação, a publicidade, o marketing, o consumo, o sistema de moda, o desporto e tantos mais - uma vasta panóplia de meios, que encenam aquilo que alguns designam por “Sociedade do Espectáculo”.

4 - Os meios são diversos. O fito, porém, é sempre o mesmo – a neutralização do poder dos cidadãos, pela aceitação acrítica da ideologia. Então as diversas configurações do poder mediático, em apoteose de efeitos, proclamam a “inevitabilidade” da vida quotidiana, sem qualquer hipótese de remissão.

Seja pela angústia ou pelo medo. Seja pelo hedonismo do consumo e do lazer. Seja pelo culto do “parecer” (mais que o “ser”, ou mesmo o “ter”) o que importa na dita “Sociedade do Espectáculo” é isolar e atomizar o individuo, massificá-lo, desmembra-lo da sua condição de cidadão, inibi-lo na sua autonomia, frustrar a fecundidade da participação social para assim o submeter voluntariamente aos ditames da ideologia dominante e dos interesses económico-financeiros que serve e a justificam.

Como romper o cerco?

Manuel Veiga




11 comentários:

jrd disse...

Um texto excelente. De largo espectro e vasta aplicabilidade. Uma verdadeira lição.
Abraço meu Irmão

Pedro Luso de Carvalho disse...

Gostei, amigo Manuel, deste seu texto sobre o poder. É um tema que sempre terá que o aborde, como acontece já a alguns séculos. Nos tempos modernos você dá o destaque necessário a alguns pontos, que fazem parte dessa "caixa preta" de tantos governos. A sorte que temos, tanto em Portugal como no Brasil, é que ainda temos a nosso favor a democracia. Aqui essa senhora está muito maltratada, com a saúde abalada, ma há a esperança que não morra.
Grande abraço.

vida entre margens disse...

A sede do poder desumaniza o homem...
Um texto por demais reflexivo e muito pertinente.

Abraço

LuísM Castanheira disse...

"Se queres saber o verdadeiro íntimo dum humano, dá-lhe poder." (cito de memória, não sei o autor)
Como dizes, Manuel, a verdade é esta: há tantas formas de poder e de tal maneira estão disseminados numa sociedade, que nos esmagam, pobres peões.
Gostei, deveras, deste texto/análise.
Um abraço, Amigo.

Anabela Jardim disse...

São gostos amargos da ideologia burguesa, do capitalismo selvagem, da devastação do ser pelo ter que ter.

Teresa Almeida disse...

O poder da palavra num texto de quem sabe do que fala e por onde vai.

São disse...

Excelente texto, sem dúvida.


A alienação das pessoas é algo que os Poderes pretendem sempre e utilizam todos os meios para isso.

Abraços

Odete Ferreira disse...

Algumas notas...
1 - Media e Poder: não é por acaso que se apelida de quarto poder.
2 - Muito interessante o que expões em 1 e 2.
3 - Em 3 e seguintes: este quarto poder está a tornar-se assustador visto ser um poder completamente desregulado e, cada vez mais, descarado, à mercê de critérios editoriais que servem determinados interesses, além da precarização dos jornalistas; acrescente-se a contaminação que acontece a partir de blogues políticos ou páginas em redes sociais; a par os ditos "fazedores de opinião".
4 - Romper o cerco? Já não há volta a dar. Com a vertigem da informação, resta pouco tempo para a formulação de juízos críticos.
Confiemos, em todo o caso.
Parabéns pelo texto, Manuel.
Bjo

Agostinho disse...

Cultiva-se o ego sabendo-se que o ser fica confinado irremediavelmente à cerca que o contém, pelas suas fragilidades naturais - o número mais reduzido - o um. Então, dispensa-lhes o simulacro do afago, que não passa da redução a zero (0) pela dependência.

Tens razão nesta excelente reflexão. O JMB devia ser mais ouvido.
Abraço.

Agostinho disse...

dispensa-se-lhe.

José Carlos Sant Anna disse...

Já estive e escrevi um comentário. Perdeu-se antes de chegar ao destinatário.
Voltei só para dizer-lhe o quanto você sabe o que diz. E o quanto nos assusta este poder que se dissemina e vai dizimando as últimas forças...
Urge romper o cerco mas não sabemos como.
Fraternal abraço, meu caro amigo!

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