quinta-feira, abril 06, 2017

DEAMBULAÇÕES - Donde Se Fala de Eça, de Viriato e do Asterix


Serpenteando a estrada, durante horas, sob o calor tórrido de Agosto, em processo inverso ao de Jacinto, nas “Cidades e as Serras”, a chegada ao restaurante é um momento glorioso e redentor…

Não pela fumegante canja de galinha que, decididamente, tem o amor do viajante, nem muito menos pelo horizonte literário (que bem conhece o viajante seus limites), nem sequer - vejam bem! - pelos cambiantes da paisagem, pois se o Jacinto arrostou seus martírios, trepando de mula, pela famosa serra de Tormes, o viajante, esse, afadigou-se circulando de automóvel (e ar condicionado) pelas fraldas da serra da Estrela, que ao outro dia haveria de subir até a majestade dos seus cumes.

Mas isso serão contas de outro rosário, se a tanto o viajante se dispuser a contá-las!...

No caso, a vaga similitude, que o viajante teima em encontrar com o enfastiado Jacinto, residirá tão-somente na benigna bênção da chegada, no alívio dos ossos doridos e na paz redentora, pois que, digam o que disserem estóicos e moralistas, um bom descanso e uma boa refeição reconfortam a alma.

Assim deveria ter sido, certamente, a beatífica emoção de Jacinto, após a canja!...

Não sabe o viajante se algum dia contou seu gosto por restaurantes. Não que seja expert ou requintado gourmet. Nada disso!... Mas desde que, em tempos idos, se aventurou pelas minudências antropológicas de “O Cru e o Cozido” sabe que a cozinha também “fala”, isto é, revela as idiossincrasias de um povo; e, sobretudo, aviva a memória de sabores e odores antigos, em que o viajante insiste em mergulhar …

Desceu, pois, o viajante as escadas interiores, que idas da recepção do pequeno hotel, levam ao desafogado restaurante, com janelas debruçadas sobre luxuriante paisagem. O viajante já ali estivera, em época de inverno. Quase deserto então o restaurante - com a lareira ao fundo, o ambiente dir-se-ia a reconstituição da sala de jantar de alguma dessas casas beirãs mais abastadas, que hoje são resquício apenas, submergidas pelo inexorável decurso das mutações sociais.

Mas desta vez não. O restaurante estava repleto. E o viajante, nesse seu jeito de dissolver contrariedades em ironia amarga, resmungou para os seus botões: - “Gosto de restaurantes cheios!...”

Porém, as palavras, que não deveriam extravasar o domínio de um desabafo íntimo, certamente impulsionadas pela veemência do desencanto, foram ecoar nos ouvidos atentos do gerente, que solicito se aproximava de carta em riste: - “Um restaurante cheio é sempre um bom sinal!...”, protestou ele com gentileza. - “Mais a mais - acrescentou – “não teria o viajante senão que esperar escassos minutos, pois estava a vagar uma mesa para duas pessoas, lá no fundo, junto à janela”…

Dulcificado um pouco no seu humor, pela sensatez da sentença e pela perspectiva de desfrutar cabrito e paisagem, o viajante amaciou o azedume. E a impulsiva réplica que, no calor das circunstâncias, procuraria saber se “o bom sinal” seria a benefício dos viajantes famintos ou do nutrido proprietário do hotel, não passou, por isso, de fingida provocação, sabe-se lá se a dissimular uma inquieta busca de cumplicidade…

Diga-se de passagem, que desde uma visita a Cuba, há uns bons anos atrás, o viajante tem excelente imagem da subtileza dos empregados de hotéis e restaurantes e da sua penetrante capacidade de lerem nas entrelinhas de um qualquer discurso.

Por isso, soltou então o viajante, carregando a ironia, ciente de que a palavra “crise” seria a chave no sentido e no fluir da conversa: - - “Pelo que se vê, por aqui não passa a crise!...”

O homem sorriu, fitando o viajante com seus olhos perspicazes. E bem percebeu então o viajante, que naquele sorriso e no (inter)dito das palavras se filtravam mensagens de (re)conhecimento mútuo, em ideário comum, imune aos percalços da vida...

- “Não se fie nas aparências, amigo!...” – E rematou, enquanto aviava uma conta: - “Hoje é dia de festa, os bárbaros desceram à cidade!”...

De facto, assim fora. Soube depois o viajante que, de manhã, uma luzidia comitiva ministerial havia percorrido as ruas da simpática cidadezinha…

Seja como for, também o viajante, por momentos, esqueceu a crise…

Haja Deus e promessas cumpridas!... Ainda os “escassos minutos” não haviam decorrido já o viajante estava sentado à mesa, no outro extremo da sala, que o seu ocasional amigo, despindo-se de cerimónias e salamaleques, que por bem achou dispensáveis, lhe apontou com o dedo, à distância.

A localização da mesa era de facto excelente, junto a uma janela rasgada, donde se alcançava todo o vale. E, do outro lado, toda a extensão do restaurante e seu infatigável borborinho. Tudo pois sinais promissores, tanto mais que a mesa fora coberta com imaculada toalha de linho, que a Mulher percorreu com os dedos, deliciada, na busca da textura do tecido e da delicadeza dos acabamentos…

Absorto na abordagem da ementa, entre um relance distraído pela sala e atracção da paisagem, o viajante não se dera ainda bem conta dos circunstantes comensais. Percebeu apenas que estava suficientemente afastado “dos bárbaros” para não ser confundido. E isso lhe bastou, de momento, perante a instância do estômago em protestos.

Acordou, pois, para a realidade circundante, apenas com o discreto murmúrio da Mulher: - “Aquela não é a Cremilde, ali na mesa ao lado?”. Entre o incrédulo e o irónico, o viajante girou meio corpo na cadeira, enquanto resmungava: “Que ideia! Isso é obsessão tua. Em cada uma mulher de bigode tu vês a Cremilde!”.

Verdade, verdadinha, a última coisa que o viajante desejaria era encontrar, naquelas paragens, a vizinha do 5º Direito (quem disse que o “pecado mora ao lado”?) do prédio onde habitam, nas proximidades de Lisboa.

Devo esclarecer que a Cremilde é viúva de um tipo da marinha, morenaça, sempre a explodir em seus tailleurs coleantes, que o viajante jurou um dia apresentar a seu amigo Zeca, alentejano de Beja, solteirão impenitente e protector de donzelas desvalidas, mas que, vá lá saber-se a razão, a Mulher detesta cordialmente, no que, advinha-se, é correspondida…

Não era, pois, a Cremilde na vizinhança, o que foi um alívio… No entanto, poderia sê-lo, tais as semelhanças dos traços fisionómicos, que remetiam de uma para a outra e que assumiam, na réplica rural, exageros de caricatura da Cremilde suburbana. E, não apenas no bigode, mas também na verruga do rosto, na expressão desconfiada do olhar, ou no porte avantajado de legionária …

O equívoco teve, pois, o condão de despertar o viajante de seu torpor. E, a partir dai, passou a prestar atenção aos comensais mais próximos, distribuídos por extensa mesa, a toda a largura do restaurante. Manifesto era terem descido da serra para os eufóricos festejos cívico-religiosos, certamente enfileirando nos arrebanhados (e por certo assanhados) aplausos à da comitiva ministerial…

Eram para cima de dezena e meia naquela mesa, se contarmos as irrequietas crianças, que exibiam o troféu das bandeirinhas, com que haviam, momentos antes, acenado, lá fora, à luzidia comitiva.

No topo da mesa, com o marido à ilharga, a “legionária Cremilde”, a quem nada escapava no horizonte do repasto - nem reclamações aos empregados, nem escolha dos pratos, nem recriminações às criancinhas, nem sequer a sequência das conversas e gargalhadas.

Luzia, pois, como um farol naquele mar de contentamento, em seu redor!... Uma "vera e fera" matriarca beirã, em seu esplendor de apascentar seu clã, sem fissuras aparentes, em sua heteróclita composição.
......................................................................

Chegado a este momento da narrativa, não sabe muito bem o viajante como prosseguir. E quando assim acontece, o viajante em vez de se calar, como o bom senso impõe, dá-lhe para transfigurar a realidade ao sabor da fantasia. Como caçador de imagens que acrescenta um ponto ao conto…

E é assim que o viajante, arrastado pela fibra e a imponência da “Cremilde”, se vê impulsionado para os Montes Hermínios e, num lance digno Asterix, reconhece a bravíssima heroína, nas hordas de Viriato, a desancar os “bárbaros do Império”, aqueles ignaros romanos, que sustentam sermos “um povo que não se governa, nem se deixa governar…”

Verdade ou mentira?

Seja como for, certo, certo é que o Céu teima “em cair sobre a nossa cabeça!...”

Manuel Veiga


6 comentários:

jrd disse...

Que maravilha de texto. Nem sabes da fome com que fiquei, mesmo com a visão desagradável do bigode da Cremilde.
Um abraço fraterno

José Carlos Sant Anna disse...

Também não sei o que dizer diante de narrativa tão límpida, tão sedutora, e não queria me calar, mas não vejo outra alternativa. Na crise da palavra, o melhor que faço é reler e me deliciar.
Forte abraço, meu caro amigo!

Suzete Brainer disse...

Reler esta tua crônica é satisfazer a minha
necessidade de literatura de qualidade.
Aprecio este senso de humor e ironia vestindo
a narrativa com a excelência textual, a expressividade
rica da linguagem de um escritor que domina esta arte.
Um equilíbrio na perfeição sem excessos caricaturais e na
simplicidade de um contador de historias...
A sofisticação e elegância sem o exibicionismo, porém
nos oferecendo a grande literatura. Aprecio imensamente
isso, a Clarice Lispector é um bom exemplo disso e o
Manuel Veiga também...rss
Grata pela partilha, meu amigo!
Beijo.

Odete Ferreira disse...

Asseguro-te que é verdade: apesar de não ser convidada, estive inteira nesta viagem e, por esse facto, posso atestar da excelência narrativa e descritiva!
(É curto o comentário porque já disso tudo, em anteriores publicações)
Bjo. Manuel

Teresa Almeida disse...

Deambulações maravilhosamente enquadradas.
Revelas-te um escritor muito agradável de acompanhar. Bem alicerçado culturalmente, deixas o teu cunho pessoal na análise do passado e da atualidade. Essa ironia fica-te tão bem, Manuel Veiga!

Beijinho.

Agostinho disse...

A leitura matinal diária deste naco faria bem aos estagiários da imprensa para aprenderem o ofício da escrita decente.
Quem assim se entranha na canja de galinha da Serra de Eça - cura dos excessos da sofisticação -, nas pelejas de legiões e lusitanos com Austerix em banda, na ideação de uma protótipo-ligionária-vizinha, feita para grandes estradas palmilhadas por muita sandália,e toca ainda na sociologia e política das gentes autóctones com este desembaraço, criatividade e sofisticação de verbo, tem de ser mesmo bom viajante e escritor.
O cabrito e seus abonos não terão ficado esquecidos. Serão apreciados noutra ocasião​, o mesmo é dizer, noutro capítulo, onde os pés da legionária terão oportunidade de se libertarem de apertos. Quem sabe? Eu só imagino.
Abraço.

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