segunda-feira, maio 29, 2017

UM DESTES DIAS...


Um destes dias um poeta, que muito estimo,
Meio por graça disse-me que minha poética caligrafia
Era escrita à mão ainda e, se por acaso, eu sabia
Que a poesia, toda ela, hoje em dia, salta
Das entranhas do computador e se derrama
Pelas ruas citadinas em gigantes placards
E montras, não de chocolates, mas de iguarias
Bem recicladas, como noticias esventradas,
Ou bombas por explodir algures em qualquer lugar
Ou esquina do mundo. E se consome sem sal
Em fulgor hiper-realista. E se ilumina consumista
Nas escórias do luxo. E do lixo.

Eu não sabia, por isso, saí da refrega com
O rabo entalado qual cachorro de feira enxotado
Pela cozinheira, a polvilhar a mistela do dia.

Mas fiquei a matutar na minha. E como no fado
Dedilhado em que o fadista se esganiça, fingindo
Que chora, o que então não disse, vou pois
Dizer-lhe agora que prefiro a poesia me venha
À mão como “dobrada fria” em vez do arrepio
Fervilhante dos bits a formigar nas teclas
Dos computadores. E que dispenso o incenso
E  trejeitos do hip-hop. E a borbulha tardia.
E que a culinária literária me faz azia a derreter-se
Nas bocas hipermodernistas.

Ou nas tretas da grande farra das letras.


Manuel Veiga

1 comentário:

Boop disse...

As palavras desenhadas, por um traço que é só seu, serão mais lentas, e mais vivas.
A caligrafia, tão idiossincrática. A apropriação das palavras, e com elas de conceitos e abstrações. Tornam-se pretença, prolongamento visível do pensamento.
Acho bonito (dito com ingenuidade, ou inocência, não sei bem...), que se escreva com lápis ou caneta, numa folha em branco.

Orquestração de Hinos

  Polpa dos lábios. E a interdita palavra Freme… E se acolhe Em fervor mudo E sílaba-a-sílaba Se inaugura… Percurso De euf...